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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Fialho de Almeida: "O Ninho de Águia"

 Na tarde anterior dirigira-me ao montado,  caía  a  noite.  Uma  contemplação  profunda fazia-se em  torno e  o  campo adormecia. Sobre as árvores,  o céu  côncavo tinha laivos rosa, como sorrisos de bocas que exalam o último adeus.  Por entre os  caules seculares  dos azinhais  e carvalheiras,  uns  acharoados de  incêndio  ardiam em apoteoses fúlgidas,  sobre  que os braços do arvoredo desenhavam em negro formas de estranhos esqueletos.  Caíam a  prumo,  de  uma banda e outra, formas de granitos áridos, mostrando nos recôncavos e na  profundeza  lôbrega  dos  barrancos os primeiros fantasmas da  noite,  com os  seus capuzes de sombra derrubados na cara, e um escorregamento de passadas  misteriosas,  como de  ronda  sinistra,  que desemboca  na quietação  de uma  viela, no silêncio da noite velha. Ao centro do abismo, a vereda serpenteava,  corcovando a sua fita saibrenta entre aglomerações bruscas de basalto e grés  vermelho,  donde  os  matagais  irrompiam  como hirsutos  cabelos de uma  cabeça decepada. Sob a vegetação agressiva dos espinheiros e zambujais, uma  linha de água corria, fazendo murmúrios tímidos de segredos trazidos de fraga  em fraga  —  e  essa  queixa  contínua  e  chorosa  das gotas caindo  manso  acrescentava  uma  nota  saliente à  sinfonia  em surdina  dos  vegetais  adormecidos e dos ninhos em rumor. O montado começava dali a subir pelo  irregular das colinas. Não podia enganar-me na marcha. Tinham-me dito —  vais pela vereda, chegas ao cotovelo da rocha, à esquerda, sobes a encosta.

— É a  última  azinheira,  tronco direito  e vermelho,  com a  cortiça  descascada. Leva corda para subires. Olhas para cima, aproximas-te sem fazer  ruído, ouve bem — sem fazer ruído! Dás com o ninho logo. Quando a noite  se  fecha, a  águia  chega,  asas abertas,  voo  circular  e gritinhos alegres  de  boa ménagere  que volta  com o dia  ganho e um  réptil no bico curvo,  para  os  pequeninos esfaimados.

Decorara todo este itinerário, prometendo não esquecer a menor cautela, iria  devagarinho, muito devagarinho, sem chapéu, descalço mesmo, olhando para  cima e em direitura  à  azinheira  de tronco  vermelho e nu de cortiça. Tinha  então doze anos, era rubro e selvagem, de grenha fulva, dentes pequeninos e  brancos, que eriçavam de gumes o meu riso escarlate e feroz — de korrigan  vingativo.  Achavam-me o orgulho de um rei  e a  pouca educação  de um  herdeiro presuntivo.  Era  de poucas palavras,  vinham-me ao sol  alegrias  colossais que trasbordavam de mim como o rufo de um tambor extravasa da  caixa  de ar;  todos os  meus músculos  amplos  e duros  na contração, contornados nas linhas altivas de um  atleta imberbe,  amavam a  luta e se  tonificavam na carreira.  Passara  até  ali  numa herdade,  entre boiadas de  que  uma  mansidão  poderosa  se abala  glorificando a  força,  à  rabeira dos  arados,  plena liberdade montesa, onde o homem regula as pancadas do seu coração  pelo ritmo tranquilo da grande natureza que desabrocha em evoés hilariantes.  Manhã nada, já eu estava a pé, sentado à banca da cozinha com os ganhões da  herdade,  diante da  açorda  patriarcal que o alho impregna  de odores  vermífugos. Vestia como eles a camisola de lã, o largo chapéu de borla e os  grossos sapatos cardados, pião na algibeira, uma cicatriz transversal na testa,  de pedradas antigas. Era imperioso e adorado; de resto abusava, dizia sempre  — quero, porque quero! Quando eu dormia, a minha mãe ia beijar-me, e de  uma vez, acordando sob um desses beijos, que são como ninfeias albas caídas  no mármore das epidermes frias, voltei-me e disse-lhe enraivecido:

—  Os homens não se beijam, apre!

Queimava, em podendo, as bonecas da minha irmã, gostava de a ver chorar e  de a fazer sofrer para me rir depois.

—  Bem feito! Bem feito!  

Duma vez bateram-me. Enquanto eu berrava, o galo, cantando, fazia apoteose  da  postura  recente  de uma  galinha  amarela,  que desposara.  Fui-me  a  ele e  torci-lhe o pescoço.

—  Para não gozares comigo. Toma!

A eira,  diante  do monte  da  herdade,  era  em plano inclinado, dura e polida,  sem ervas. Deitava-me no cimo e vinha rolando até baixo. Nunca conseguiam  trazer-me  limpo  —  que tinha  um  ódio  insofrido  pelos fatos novos e pelos  peitos engomados, considerando a gravata um traste inútil, de que me servia  para amarrar chocalhos ao pescoço das ovelhas. Só anos depois acreditei que  o mundo que eu não conhecia, o outro, fazia dessa tira de seda uma  caraira  perigosa — por muito infestada pelo contrabando.  

Nesse dia, mal deram cinco horas e me apanhei fora da escola, deitei caminho  do montado.  Tinha  à  cintura  uma  corda  de linho com aselha,  para  subir  à  árvore,  e no  bolso uma  navalha  de podar  com gume de fouce.  Todas as   precauções foram por mim empregadas.  Ao dobrar da  rocha,  descalcei os  sapatos  e tirei  o chapéu. Meti a  navalha  no peito e desenrolei  da  cintura  a corda.  Depois,  resolutamente,  dirigi-me  à  azinheira. Lá  estava  o ninho, era  enorme e construído  sobre  três pernadas  robustas —  como  sobre  os três  dentes de uma forquilha. Eu nunca vira coisa igual, a falar sinceramente. Tinha  o feitio oval de um berço e ficava tão alto, tão alto que fazia vertigens. Era  preciso subir até lá. Atirei a laçada à primeira bifurcação do tronco, icei-me.  

Depois, escarranchado na pernada mais sólida, joguei com o laço às ramarias  superiores  e fui subindo.  À medida  que me elevava,  a  ascensão entrava  a  dificultar-se;  folhas em tufos compactos  prendiam-me os cabelos,  os ramos  oscilavam sob o peso do meu corpo, e de vez em quando soavam estalidos  ameaçadores. Mas viaja bem o ninho de águia; primeiro um alicerce de quatro  ou cinco ramos de sobro, cruzados;  depois um  leito  de  folhas secas e  pequenas hastes; sobre o leito, folhas macias de trevos, de tamujes e fenos —  e,  forrando delicadamente o estojo,  uma  colcha  de penugens  brancas que a  águia arrancava do peito, nos seus transportes de mãe. Com insano trabalho  cheguei-lhe  ao pé.  Pulava-me o coração no  peito,  e qual não  foi a  minha  alegria ao ver aconchegadas no ninho, uma de encontro à outra, adormecidas  e tremendo  de frio,  duas aguiazinhas  implumes,  disformes  ainda,  mas de  vigorosas proporções! Cerrara-se de todo a noite. Um claro luar com reflexos  metálicos atravessava  as vaporizações  do arvoredo,  penetrando-as de uma  poeira de átomos cintilantes.  Nas faias da  ribeira,  os  rouxinóis faziam jogos  florais arremessando-se os sonetos mais rítmicos; o veio cristalino dos regatos  ia contando às folhagens úmidas dos balceiros e canaviais uma lenda antiga  de fadas azuis e tesouros maurescos,  narrativa  muito  em segredo,  entre  murmúrios de beijos que ao longe mansamente se perdiam.

Dava trindades o sino da aldeia — e as aspirações pairavam naquele calado ar  em que borboletas  negras saltitavam,  traçando sinais  de mulheres  predestinadas.  A Lua,  na  tela  do céu esmaiado,  lembrava,  com as suas  ranhuras, a máscara da Comédia no pano de uma ópera cômica, que a luz da  ribalta ilumina. Ergui os olhos — acabava de ouvir um grito. Vi a águia pairar  um  momento por  sobre a  minha  cabeça,  de asas abertas,  cujas  rémiges em cutelo siflavam como velas de um moinho em atividade. Depois aquele vulto  negro desceu perpendicularmente, raivoso da minha audácia e estendendo o  bico de gumes  curvos,  para  me ferir.  Agarrado à  corda  dei  um  salto,  abandonando o ninho, e fiquei suspenso da árvore um instante, a dez metros  do chão pedregoso, batendo os dentes de terror. Que fazer? A corda por curta  não chegava  ao chão.  Deixar-me cair era  morrer.  De repente,  porém,  a  enorme pernada dá um estalido seco, houve um atrito de folhas e lentamente  vim baixando. Quando pousei no chão, com os dois filhos da águia no peito  da  camisola  e a  navalha  nos  dentes,  senti um  prazer sem limites.  Tinha  destruído uma felicidade e praticado a façanha de subir à azinheira, sem outro  auxílio mais que o de uma pequena corda nodosa e fina. Levaria os implumes  para  a  herdade e criá-los-ia  com carne  e sangue fresco de cordeiro.  E eles  cresceriam,  alcançando as poderosas  formas  dos  pais  —  bico  adunco e  córneo,  a  terrível garra  contráctil,  simetria  elegante  nas asas,  que um  jogo  muscular movimenta com inexplicável destreza. E pertencer-me-iam, estariam  na  gaiola  pela  minha vontade,  comeriam se  eu quisesse.  Esta  ideia  de ter  alguém sob a minha obediência encheu-me de orgulho. Podia fazer mal sem  ter medo das queixas que arrancasse. E vinham-me tendências para oprimir,  para  espicaçar,  para  expor  à  tortura.  Também o meu pai me batia! Que  sofressem!  Na azinheira,  a  águia  ia  de ramo em ramo,  soltando,  a  cada  investigação inútil,  o  seu grito  melancólico.  Corria  as árvores próximas,  voejava  quase à  flor  do terreno,  batendo com as asas nos tojais  da  selva,  e  indo em todos os  sentidos como alucinada.  Depois abriu as asas  horizontalmente com um pulo, susteve-se nas penas como um para-quedas, e  com firmeza cortou o ar obliquamente, subindo à região das nuvens. De vez  em quando, na calada do campo morto, o seu grito de mãe roubada ouvia-se  na escuridade, como o silvo de um barco em perigo que pede socorro.

A minha paixão daquela noite foram os filhos da águia.

Persistia na ideia de criá-los — de os fazer gente, dizia eu. Tinham os olhos quase fechados, com uma orla amarela e a nictitante espessa, meio descida. O  pescoço nu oferecia um desenho esguio, andavam de rojo, dando pequeninos  gritos em busca da penugem quente da mãe. Meti-lhes à força miolos de pão  pelo bico,  que eles bolçaram escancarando  a  goela  em carantonhas de uma  graça infinita. Em seguida, servi-lhes água, mas recusavam tudo, os biltres, e se  os  deixava  um  momento punham-se a  girar de cabeça  alta,  à  procura  do  aconchego que não sentiam. A minha irmã, que, apesar do mistério em que eu  envolvia as minhas operações, conseguira espreitar o que eu fazia, trouxe-me  então a  ideia  de meter as aguiazinhas  debaixo da  galinha que na  capoeira  chocava os ovos que fora pondo.

—  Ela pensa que são já pintainhos, e as águias vão crescendo, crescendo... E dás-me a mais pequenina, sim?

—  Dá!... uma figa.

Quando nos mandaram deitar  às oito  horas,  tudo  estava  feito —  a  galinha  consentira em adotar os dois órfãos e a coisa ia bem! Não pude dormir em  toda a noite com a ideia nos pequenos. Se a galinha os picasse, se os deixasse  cair  do cesto!...  Os gatos lançar-se-iam  furiosos contra  esses  dois  desamparados e devorá-los-iam, rosnando. — Aplicava o ouvido: se ouvisse  chiar saltava  logo da  cama.  Quanto  tempo  levariam  a  crescer? Um mês ou dois — estávamos a catorze. E contava pelos dedos — era tanto tempo ainda!  Mandaria fazer um carro, que os filhos da águia puxariam. E com que inveja  ficariam os rapazes da escola, vendo-me arrebatado pelos voláteis, com esses  deuses que representava o Manual Enciclopédico! No dia seguinte, ergui-me  cedíssimo,  havia  estrelas ainda.  E mesmo  descalço  fui,  pé  ante pé,  até à   capoeira, para investigar do que havia. Os moços, na eira, faziam já girar os  bois na  retraçagem dos  calcadouros,  e ouvia-se  na  altura  o ângelus  vibrado pela  cotovia.  Acocorei-me devagarinho  ao pé  do cesto,  estendendo as duas  mãos ao longo da palha.

A galinha  dera  sinal e,  cheia  de cólera,  as  penas alvoraçadas,  precipitou-se  contra  mim à  bicada,  implacavelmente,  até  me fazer  sangue.  Às  apalpadelas  percorria a cama de palha em que os ovos se aninhavam; achara apenas uma  das aguiazinhas. Diabo!...

Então,  sem medo já  que dessem por mim,  corri a  abrir a  lucarna, e o dia  entrou humedecido pela neblina cheirosa da manhã. Estava apenas uma águia,  era certo!... Dei um berro de novilho marcado a ferro candente, que ressoou   por toda a casa. Queria a outra águia por força, por força, por força! Queria-a,  então? Queria, porque queria. Era minha, tinha-a eu achado, então? E, como  ninguém dava  resposta,  entrei  ao pontapé  a  tudo,  ébrio de  uma  raiva  sanguínea. E num formidável choro rolava-me pelo ladrilho todo nu. Todo o  meu grande desejo era  que  me  atendessem  e viessem todos,  surpreendidos,  saber o que havia. A voz da minha mãe chamava pelas criadas; entrei a sentir  nos quartos ruídos bruscos de sapatos que se arrastavam e saias que se enfiam  á pressa. Já gritava menos, conseguira o meu fim, tinha incomodado e metido  susto  a  todos  de casa.  Era bastante!  Agora,  iriam todos procurar a  minha  águia, tinham de ma encontrar por força, ou arranjar-me outra novazinha em  folha, como aquela. Apre!  

Quando de repente me chegou o grito da mãe roubada, grito brusco e quase  surdo, como se o coasse uma laringe extinta. Toda a noite o ouvira, ora perto  ou distante, sempre com uma nota de ira impotente e suplicação desprezada,  na tenebrosa calada do matagal. Fui para a lucarna, instintivamente atraído, à  escuta. Era um grito intermitente, primeiro muito fraco e repetido, como de  alguém a  gemer —  gri!  gri!  gri!  —;  após,  subitamente,  essa  voz  dilatava-se,  enrouquecida,  fazendo quase  um  bramido.  Uma  mulher  não  expressaria  melhor  a  angústia, o  desespero e a  morte.  Corava  o oriente como uma  epiderme sadia traduzindo a comoção de um beijo; nas moradas dos ninhos,  entre decorações  de folhagens  e carícias de poética  doçura,  as  famílias de  pássaros,  de melros,  de  pintassilgos,  rolas e poupas,  chilreavam felizes e  singelas, deslumbradas na irradiação do céu.

Só ela, a águia, ia chamando embalde pelo seus, através da vastidão do éter,  em que a vibração luminosa ondulava, e apunhalada no seu único amor como  essas cruéis imperatrizes que Deus castiga no único ponto vulnerável da sua  alma.

Com os olhos  alongados,  via-a  rastejar à  flor do solo,  pelas chapadas  e  penhascos,  extenuada  e rouca, despregando as asas oblíquas,  de enormes  rémiges em cutelo, como tetos de lares despovoados pela assolação da morte.  

—  Coitadinha! — dizia eu comovido. — Coitadinha!...  

Então fiquei  entorpecido num constrangimento  profundo  e  singular,  que  nunca  tinha  experimentado.  Sentia  na  goela  o embaraço  inexprimível  que  é  nas crianças o  prólogo do choro soluçante  e inconsolável,  sob que a  alma  germina  em bons impulsos  e leais  dedicações,  como  na  terra  se abrem as  flores primaveris, sob o influxo das primeiras chuvas.  

Antes  que viessem surpreender-me corri a  vestir-me,  e resoluto,  os olhos cheios de lágrimas e a corda à cintura, voltei a buscar depois a aguiazinha. A  minha irmã chamou-me, soluçava.  

—  Olha,  morreu!...  —  disse-me toda aflita,  mostrando-me o cadáver da  outra  águia,  que,  durante  a  noite,  com mil  precauções,  tinha  ido roubar ao  cesto.

—  Por isso  achei falta  —  gritei  colérico,  batendo o pé.  E aos urros,  crescendo contra ela de punhos cerrados, dizia-lhe golfando impropérios:  

—  Maldita! Má! Peste! Nosso Senhor há de castigar-te, deixa estar.   

Ai de mim! Na capoeira, a galinha raivosa, reconhecendo o outro enjeitado à  luz da manhã, acabava de o matar à bicada, lançando-o fora do cesto.

Então desatei a chorar. Nunca fora tão desgraçado, nunca!... Nem quando me  davam açoites com o chinelo, o que estava debaixo da cama do meu pai, a rir-se de mim pelo buraco ignóbil da tomba. E agora, que fazer?  

Meti no seio da camisola os dois enjeitadinhos mortos, e a correr atravessei a  eira, sem dar bons-dias a ninguém. O dia começava. Rasgando as escuridões  em que se envolveria, o panorama saía das nebrinas dissipadas a golpes de sol  aqui e além,  nas cristas  dos  outeiros.  Desci a  correr a  ladeira  do monte,  pendores suaves donde o olhar abrangia, para todos os lados, perspetivas do  mais belo matiz, montados, restolhos de searas, regatos orlados de choupos e  faias,  mais para  além,  hortejos alegres onde chiavam noras e se  espiralava o  fumo dos casais, vinhedo sem fim bordando sinuosidades bucólicas, brancas  ermidas pousadas nas montanhas, e, perdendo-se na serenidade esfumosa do  horizonte,  povoações  que  na  luz iam fazendo mais  e mais  nítidos os seus  delineamentos. A paisagem  tinha  agora  uma nitidez  de gravura.  As aldeias  sorriam para o noivado da natureza em festa, enquanto, de uma banda e outra,  grandes massas de arvoredo abriam destaques surpreendentes.  

Iam tranquilamente  pelos  terrenos ceifados os carneiros  dos rebanhos,  alongando o pescoço, a  fofa  corpulência  tufada  de lã  patente em camas de  espiraizinhas miúdas.

Alguns velhos guias experientes e graves, focinho erguido, a grossa cornadura  em anéis de diâmetros crescentes, enrolada como o arrepio da cabeleira de um  dandy,  chocalho pendente  por correias de couro cru,  a  orelha  inquieta,  olhavam vivamente  o largo,  bebendo os  sons  e procurando-lhe  a  origem  solícitos, como quem tem sobre si a responsabilidade da tribo e o futuro dos  pequeninos. Acima da redondeza das ancas de alguns, cabritinhos fulvos, de  grandes  orelhas horizontais,  uma  meiguice  cândida na  vista,  erguiam-se  a  prumo furando caminho,  as  maxilas  entreabertas,  por  onde se escapava  um  queixume tenuíssimo —  mé!  mé!  —  alguma coisa  como os rudimentos da  cartilha  do rebanho.  Vários preguiçosos,  estacados a  meio da  corrente,  mergulhavam o focinho na  água,  bebendo.  Poucos  tinham já  passado e  cortavam a  dente  as  gramíneas  alastradas  nas barranceiras. O  velho cão  descansa,  numa  postura séria  de patriarca, enquanto, nas  meias-tintas dos  planos secundários, o pastor, de manta ao ombro e polainas encarquilhando  na  tomba  dos sapatos  cardados,  tinha o  seu ar pasmado de  montanhês,  olhando a  catarata  de ouro  fundido que o sol jorrava  do nascente,  numa  apoteose de cáusticas vivas — olhar em que se estagnava a silenciosa doçura  dos olivais cinzentos e se  refletia  a conceção  panteísta  de um  Deus  amantíssimo, que fecunda os trigos das searas, preside às crias e vem de noite,  mansamente,  com o seu capuz  de estrelas  derrubado para  diante,  lançar a  bênção ao gado que dorme, inoculando no sonho do pastor o esmalte de um  sorriso de ceifeira, vermelho como as cerejas úmidas de Junho.  

Correndo através do montado, cheguei à ribeira, que pude salvar num pulo de  lobo,  e,  sem me  deter,  entrei  a  trepar a  pedregosa  encosta,  na  direitura do  ninho. Faziam-se ali acumulações selváticas de tojeiros e silvados, cabeças de  rochedos pardacentos, espinhais de luxuriante amplitude, que tolhiam o passo  a  quem  ia. E aquele  recanto,  plutônico e brusco, desenhava-se  numa como  penumbra  de floresta,  que de cima caía  filtrada  pelos amontoados  da  folhagem. Deixara de ouvir a águia, e era pungente o sossego daquela região,  equiparado ao orfeão gigantesco de voláteis, que na planície entoava o poema  sinfônico da manhã. Por duas ou três vezes ergui a voz para insuflar a vida  nos ecos do desfiladeiro. De rocha em rocha, quando muito, o eco repetia a  última sílaba,  num murmúrio tímido,  como rezado à  roda  de um  féretro, e  morria.

Pela  montanha, troncos  penitentes e negros orando de braços abertos.  Nos  pegos da  ribeira,  as reticulações verde-negras dos limos  deixando evolar a  putrilagem das febres más. Silêncio abrasado, pesando.

Quando cheguei ao ninho, arquejava.  E,  antes de erguer a  vista sobre ele,  detive-me um  instante,  olhando à  roda com um  terror  sombrio,  que  o  remorso  envenenava.  Se a  águia  desse  comigo podia  matar-me  à  bicada.  E  teria razão — ai de mim!

Estava  sozinho. Não  se  via  dali o monte  já.  De repente,  casualmente,  sem  mesmo querer, dei com a águia, que, de cima do ninho, abria as asas e sobre  mim estendia o seu pescoço ávido. Fiquei tremendo ante a raiva silenciosa que  paralisava a terrível rainha. Ela ia decerto formar voo e cair sobre mim,  para  dilacerar-me com as suas garras de três gumes implacáveis de uma vingança  cruel.  

Olhamo-nos por tempo. As asas da águia abriram os seus leques enormes de  varetas curvas.  A imobilização porém continuava  e o pescoço permanecia  caído à borda do ninho. Veio-me a ideia de que podia estar morta. Atirei-lhe com uma pedra — a mesma indiferença.

Sem querer saber de mais, desenrolei a corda e atirei-a à primeira pernada da  árvore.  Quando atingi a  altura do ninho, pude olhar bem de perto  a  águia  agonizante,  que  um frêmito  vago'  percorria.  Era  poderosa  e  magnífica,  de  enormes asas pardacentas, cujas fortes rémiges se aguçavam como punhais, na  ponta. Estava de bruços sobre o ninho, como se quisera aquecer o peito de  encontro aos frouxéis alvinitentes em que os filhinhos tinham visto a primeira luz.   cabeça um pouco chata descaía adiante num bico de bordos dentados, e   sobre a íris de oiro a nictitante ia descainho na sombra da agonia, como um  apagador sobre a luz do círio pascal.  

A águia  morreu nesse dia,  à  mesma  hora  em que as outras aves  voltavam  cantando aos ninhos, para dormir com a prole. Por muito tempo, cruzando o montado atrás dos rebanhos do  meu  pai,  pude  ver nos  cimos  da  azinheira  gigante, suspenso, o berço-túmulo, a que o esqueleto da águia fazia guarda, dia e noite, de asas estendidas, branquejando na sombria folhagem da árvore. E  vinham-me então remorsos, que fora eu o assassino daquela dinastia real!

Vai  completar-se um  ano  que a  tua  filha  desceu à  cova,  Ó  minha mãe!  E,  vendo-te curvada no teu luto, pobre mulher envelhecida de lágrimas, sublime  por toda uma vida de abnegação sem exemplo, para mim fico pensando que  deve ser cruel  o Deus que tu  adoras,  se  nunca  teve remorsos de haver  roubado também — o Ninho de Águia.

1881 — Vila de Frades. 

Fialho de Almeida - Contos (1881)

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