terça-feira, 20 de abril de 2021

Fialho de Almeida: "O Ninho de Águia"

 Na tarde anterior dirigira-me ao montado,  caía  a  noite.  Uma  contemplação  profunda fazia-se em  torno e  o  campo adormecia. Sobre as árvores,  o céu  côncavo tinha laivos rosa, como sorrisos de bocas que exalam o último adeus.  Por entre os  caules seculares  dos azinhais  e carvalheiras,  uns  acharoados de  incêndio  ardiam em apoteoses fúlgidas,  sobre  que os braços do arvoredo desenhavam em negro formas de estranhos esqueletos.  Caíam a  prumo,  de  uma banda e outra, formas de granitos áridos, mostrando nos recôncavos e na  profundeza  lôbrega  dos  barrancos os primeiros fantasmas da  noite,  com os  seus capuzes de sombra derrubados na cara, e um escorregamento de passadas  misteriosas,  como de  ronda  sinistra,  que desemboca  na quietação  de uma  viela, no silêncio da noite velha. Ao centro do abismo, a vereda serpenteava,  corcovando a sua fita saibrenta entre aglomerações bruscas de basalto e grés  vermelho,  donde  os  matagais  irrompiam  como hirsutos  cabelos de uma  cabeça decepada. Sob a vegetação agressiva dos espinheiros e zambujais, uma  linha de água corria, fazendo murmúrios tímidos de segredos trazidos de fraga  em fraga  —  e  essa  queixa  contínua  e  chorosa  das gotas caindo  manso  acrescentava  uma  nota  saliente à  sinfonia  em surdina  dos  vegetais  adormecidos e dos ninhos em rumor. O montado começava dali a subir pelo  irregular das colinas. Não podia enganar-me na marcha. Tinham-me dito —  vais pela vereda, chegas ao cotovelo da rocha, à esquerda, sobes a encosta.

— É a  última  azinheira,  tronco direito  e vermelho,  com a  cortiça  descascada. Leva corda para subires. Olhas para cima, aproximas-te sem fazer  ruído, ouve bem — sem fazer ruído! Dás com o ninho logo. Quando a noite  se  fecha, a  águia  chega,  asas abertas,  voo  circular  e gritinhos alegres  de  boa ménagere  que volta  com o dia  ganho e um  réptil no bico curvo,  para  os  pequeninos esfaimados.

Decorara todo este itinerário, prometendo não esquecer a menor cautela, iria  devagarinho, muito devagarinho, sem chapéu, descalço mesmo, olhando para  cima e em direitura  à  azinheira  de tronco  vermelho e nu de cortiça. Tinha  então doze anos, era rubro e selvagem, de grenha fulva, dentes pequeninos e  brancos, que eriçavam de gumes o meu riso escarlate e feroz — de korrigan  vingativo.  Achavam-me o orgulho de um rei  e a  pouca educação  de um  herdeiro presuntivo.  Era  de poucas palavras,  vinham-me ao sol  alegrias  colossais que trasbordavam de mim como o rufo de um tambor extravasa da  caixa  de ar;  todos os  meus músculos  amplos  e duros  na contração, contornados nas linhas altivas de um  atleta imberbe,  amavam a  luta e se  tonificavam na carreira.  Passara  até  ali  numa herdade,  entre boiadas de  que  uma  mansidão  poderosa  se abala  glorificando a  força,  à  rabeira dos  arados,  plena liberdade montesa, onde o homem regula as pancadas do seu coração  pelo ritmo tranquilo da grande natureza que desabrocha em evoés hilariantes.  Manhã nada, já eu estava a pé, sentado à banca da cozinha com os ganhões da  herdade,  diante da  açorda  patriarcal que o alho impregna  de odores  vermífugos. Vestia como eles a camisola de lã, o largo chapéu de borla e os  grossos sapatos cardados, pião na algibeira, uma cicatriz transversal na testa,  de pedradas antigas. Era imperioso e adorado; de resto abusava, dizia sempre  — quero, porque quero! Quando eu dormia, a minha mãe ia beijar-me, e de  uma vez, acordando sob um desses beijos, que são como ninfeias albas caídas  no mármore das epidermes frias, voltei-me e disse-lhe enraivecido:

—  Os homens não se beijam, apre!

Queimava, em podendo, as bonecas da minha irmã, gostava de a ver chorar e  de a fazer sofrer para me rir depois.

—  Bem feito! Bem feito!  

Duma vez bateram-me. Enquanto eu berrava, o galo, cantando, fazia apoteose  da  postura  recente  de uma  galinha  amarela,  que desposara.  Fui-me  a  ele e  torci-lhe o pescoço.

—  Para não gozares comigo. Toma!

A eira,  diante  do monte  da  herdade,  era  em plano inclinado, dura e polida,  sem ervas. Deitava-me no cimo e vinha rolando até baixo. Nunca conseguiam  trazer-me  limpo  —  que tinha  um  ódio  insofrido  pelos fatos novos e pelos  peitos engomados, considerando a gravata um traste inútil, de que me servia  para amarrar chocalhos ao pescoço das ovelhas. Só anos depois acreditei que  o mundo que eu não conhecia, o outro, fazia dessa tira de seda uma  caraira  perigosa — por muito infestada pelo contrabando.  

Nesse dia, mal deram cinco horas e me apanhei fora da escola, deitei caminho  do montado.  Tinha  à  cintura  uma  corda  de linho com aselha,  para  subir  à  árvore,  e no  bolso uma  navalha  de podar  com gume de fouce.  Todas as   precauções foram por mim empregadas.  Ao dobrar da  rocha,  descalcei os  sapatos  e tirei  o chapéu. Meti a  navalha  no peito e desenrolei  da  cintura  a corda.  Depois,  resolutamente,  dirigi-me  à  azinheira. Lá  estava  o ninho, era  enorme e construído  sobre  três pernadas  robustas —  como  sobre  os três  dentes de uma forquilha. Eu nunca vira coisa igual, a falar sinceramente. Tinha  o feitio oval de um berço e ficava tão alto, tão alto que fazia vertigens. Era  preciso subir até lá. Atirei a laçada à primeira bifurcação do tronco, icei-me.  

Depois, escarranchado na pernada mais sólida, joguei com o laço às ramarias  superiores  e fui subindo.  À medida  que me elevava,  a  ascensão entrava  a  dificultar-se;  folhas em tufos compactos  prendiam-me os cabelos,  os ramos  oscilavam sob o peso do meu corpo, e de vez em quando soavam estalidos  ameaçadores. Mas viaja bem o ninho de águia; primeiro um alicerce de quatro  ou cinco ramos de sobro, cruzados;  depois um  leito  de  folhas secas e  pequenas hastes; sobre o leito, folhas macias de trevos, de tamujes e fenos —  e,  forrando delicadamente o estojo,  uma  colcha  de penugens  brancas que a  águia arrancava do peito, nos seus transportes de mãe. Com insano trabalho  cheguei-lhe  ao pé.  Pulava-me o coração no  peito,  e qual não  foi a  minha  alegria ao ver aconchegadas no ninho, uma de encontro à outra, adormecidas  e tremendo  de frio,  duas aguiazinhas  implumes,  disformes  ainda,  mas de  vigorosas proporções! Cerrara-se de todo a noite. Um claro luar com reflexos  metálicos atravessava  as vaporizações  do arvoredo,  penetrando-as de uma  poeira de átomos cintilantes.  Nas faias da  ribeira,  os  rouxinóis faziam jogos  florais arremessando-se os sonetos mais rítmicos; o veio cristalino dos regatos  ia contando às folhagens úmidas dos balceiros e canaviais uma lenda antiga  de fadas azuis e tesouros maurescos,  narrativa  muito  em segredo,  entre  murmúrios de beijos que ao longe mansamente se perdiam.

Dava trindades o sino da aldeia — e as aspirações pairavam naquele calado ar  em que borboletas  negras saltitavam,  traçando sinais  de mulheres  predestinadas.  A Lua,  na  tela  do céu esmaiado,  lembrava,  com as suas  ranhuras, a máscara da Comédia no pano de uma ópera cômica, que a luz da  ribalta ilumina. Ergui os olhos — acabava de ouvir um grito. Vi a águia pairar  um  momento por  sobre a  minha  cabeça,  de asas abertas,  cujas  rémiges em cutelo siflavam como velas de um moinho em atividade. Depois aquele vulto  negro desceu perpendicularmente, raivoso da minha audácia e estendendo o  bico de gumes  curvos,  para  me ferir.  Agarrado à  corda  dei  um  salto,  abandonando o ninho, e fiquei suspenso da árvore um instante, a dez metros  do chão pedregoso, batendo os dentes de terror. Que fazer? A corda por curta  não chegava  ao chão.  Deixar-me cair era  morrer.  De repente,  porém,  a  enorme pernada dá um estalido seco, houve um atrito de folhas e lentamente  vim baixando. Quando pousei no chão, com os dois filhos da águia no peito  da  camisola  e a  navalha  nos  dentes,  senti um  prazer sem limites.  Tinha  destruído uma felicidade e praticado a façanha de subir à azinheira, sem outro  auxílio mais que o de uma pequena corda nodosa e fina. Levaria os implumes  para  a  herdade e criá-los-ia  com carne  e sangue fresco de cordeiro.  E eles  cresceriam,  alcançando as poderosas  formas  dos  pais  —  bico  adunco e  córneo,  a  terrível garra  contráctil,  simetria  elegante  nas asas,  que um  jogo  muscular movimenta com inexplicável destreza. E pertencer-me-iam, estariam  na  gaiola  pela  minha vontade,  comeriam se  eu quisesse.  Esta  ideia  de ter  alguém sob a minha obediência encheu-me de orgulho. Podia fazer mal sem  ter medo das queixas que arrancasse. E vinham-me tendências para oprimir,  para  espicaçar,  para  expor  à  tortura.  Também o meu pai me batia! Que  sofressem!  Na azinheira,  a  águia  ia  de ramo em ramo,  soltando,  a  cada  investigação inútil,  o  seu grito  melancólico.  Corria  as árvores próximas,  voejava  quase à  flor  do terreno,  batendo com as asas nos tojais  da  selva,  e  indo em todos os  sentidos como alucinada.  Depois abriu as asas  horizontalmente com um pulo, susteve-se nas penas como um para-quedas, e  com firmeza cortou o ar obliquamente, subindo à região das nuvens. De vez  em quando, na calada do campo morto, o seu grito de mãe roubada ouvia-se  na escuridade, como o silvo de um barco em perigo que pede socorro.

A minha paixão daquela noite foram os filhos da águia.

Persistia na ideia de criá-los — de os fazer gente, dizia eu. Tinham os olhos quase fechados, com uma orla amarela e a nictitante espessa, meio descida. O  pescoço nu oferecia um desenho esguio, andavam de rojo, dando pequeninos  gritos em busca da penugem quente da mãe. Meti-lhes à força miolos de pão  pelo bico,  que eles bolçaram escancarando  a  goela  em carantonhas de uma  graça infinita. Em seguida, servi-lhes água, mas recusavam tudo, os biltres, e se  os  deixava  um  momento punham-se a  girar de cabeça  alta,  à  procura  do  aconchego que não sentiam. A minha irmã, que, apesar do mistério em que eu  envolvia as minhas operações, conseguira espreitar o que eu fazia, trouxe-me  então a  ideia  de meter as aguiazinhas  debaixo da  galinha que na  capoeira  chocava os ovos que fora pondo.

—  Ela pensa que são já pintainhos, e as águias vão crescendo, crescendo... E dás-me a mais pequenina, sim?

—  Dá!... uma figa.

Quando nos mandaram deitar  às oito  horas,  tudo  estava  feito —  a  galinha  consentira em adotar os dois órfãos e a coisa ia bem! Não pude dormir em  toda a noite com a ideia nos pequenos. Se a galinha os picasse, se os deixasse  cair  do cesto!...  Os gatos lançar-se-iam  furiosos contra  esses  dois  desamparados e devorá-los-iam, rosnando. — Aplicava o ouvido: se ouvisse  chiar saltava  logo da  cama.  Quanto  tempo  levariam  a  crescer? Um mês ou dois — estávamos a catorze. E contava pelos dedos — era tanto tempo ainda!  Mandaria fazer um carro, que os filhos da águia puxariam. E com que inveja  ficariam os rapazes da escola, vendo-me arrebatado pelos voláteis, com esses  deuses que representava o Manual Enciclopédico! No dia seguinte, ergui-me  cedíssimo,  havia  estrelas ainda.  E mesmo  descalço  fui,  pé  ante pé,  até à   capoeira, para investigar do que havia. Os moços, na eira, faziam já girar os  bois na  retraçagem dos  calcadouros,  e ouvia-se  na  altura  o ângelus  vibrado pela  cotovia.  Acocorei-me devagarinho  ao pé  do cesto,  estendendo as duas  mãos ao longo da palha.

A galinha  dera  sinal e,  cheia  de cólera,  as  penas alvoraçadas,  precipitou-se  contra  mim à  bicada,  implacavelmente,  até  me fazer  sangue.  Às  apalpadelas  percorria a cama de palha em que os ovos se aninhavam; achara apenas uma  das aguiazinhas. Diabo!...

Então,  sem medo já  que dessem por mim,  corri a  abrir a  lucarna, e o dia  entrou humedecido pela neblina cheirosa da manhã. Estava apenas uma águia,  era certo!... Dei um berro de novilho marcado a ferro candente, que ressoou   por toda a casa. Queria a outra águia por força, por força, por força! Queria-a,  então? Queria, porque queria. Era minha, tinha-a eu achado, então? E, como  ninguém dava  resposta,  entrei  ao pontapé  a  tudo,  ébrio de  uma  raiva  sanguínea. E num formidável choro rolava-me pelo ladrilho todo nu. Todo o  meu grande desejo era  que  me  atendessem  e viessem todos,  surpreendidos,  saber o que havia. A voz da minha mãe chamava pelas criadas; entrei a sentir  nos quartos ruídos bruscos de sapatos que se arrastavam e saias que se enfiam  á pressa. Já gritava menos, conseguira o meu fim, tinha incomodado e metido  susto  a  todos  de casa.  Era bastante!  Agora,  iriam todos procurar a  minha  águia, tinham de ma encontrar por força, ou arranjar-me outra novazinha em  folha, como aquela. Apre!  

Quando de repente me chegou o grito da mãe roubada, grito brusco e quase  surdo, como se o coasse uma laringe extinta. Toda a noite o ouvira, ora perto  ou distante, sempre com uma nota de ira impotente e suplicação desprezada,  na tenebrosa calada do matagal. Fui para a lucarna, instintivamente atraído, à  escuta. Era um grito intermitente, primeiro muito fraco e repetido, como de  alguém a  gemer —  gri!  gri!  gri!  —;  após,  subitamente,  essa  voz  dilatava-se,  enrouquecida,  fazendo quase  um  bramido.  Uma  mulher  não  expressaria  melhor  a  angústia, o  desespero e a  morte.  Corava  o oriente como uma  epiderme sadia traduzindo a comoção de um beijo; nas moradas dos ninhos,  entre decorações  de folhagens  e carícias de poética  doçura,  as  famílias de  pássaros,  de melros,  de  pintassilgos,  rolas e poupas,  chilreavam felizes e  singelas, deslumbradas na irradiação do céu.

Só ela, a águia, ia chamando embalde pelo seus, através da vastidão do éter,  em que a vibração luminosa ondulava, e apunhalada no seu único amor como  essas cruéis imperatrizes que Deus castiga no único ponto vulnerável da sua  alma.

Com os olhos  alongados,  via-a  rastejar à  flor do solo,  pelas chapadas  e  penhascos,  extenuada  e rouca, despregando as asas oblíquas,  de enormes  rémiges em cutelo, como tetos de lares despovoados pela assolação da morte.  

—  Coitadinha! — dizia eu comovido. — Coitadinha!...  

Então fiquei  entorpecido num constrangimento  profundo  e  singular,  que  nunca  tinha  experimentado.  Sentia  na  goela  o embaraço  inexprimível  que  é  nas crianças o  prólogo do choro soluçante  e inconsolável,  sob que a  alma  germina  em bons impulsos  e leais  dedicações,  como  na  terra  se abrem as  flores primaveris, sob o influxo das primeiras chuvas.  

Antes  que viessem surpreender-me corri a  vestir-me,  e resoluto,  os olhos cheios de lágrimas e a corda à cintura, voltei a buscar depois a aguiazinha. A  minha irmã chamou-me, soluçava.  

—  Olha,  morreu!...  —  disse-me toda aflita,  mostrando-me o cadáver da  outra  águia,  que,  durante  a  noite,  com mil  precauções,  tinha  ido roubar ao  cesto.

—  Por isso  achei falta  —  gritei  colérico,  batendo o pé.  E aos urros,  crescendo contra ela de punhos cerrados, dizia-lhe golfando impropérios:  

—  Maldita! Má! Peste! Nosso Senhor há de castigar-te, deixa estar.   

Ai de mim! Na capoeira, a galinha raivosa, reconhecendo o outro enjeitado à  luz da manhã, acabava de o matar à bicada, lançando-o fora do cesto.

Então desatei a chorar. Nunca fora tão desgraçado, nunca!... Nem quando me  davam açoites com o chinelo, o que estava debaixo da cama do meu pai, a rir-se de mim pelo buraco ignóbil da tomba. E agora, que fazer?  

Meti no seio da camisola os dois enjeitadinhos mortos, e a correr atravessei a  eira, sem dar bons-dias a ninguém. O dia começava. Rasgando as escuridões  em que se envolveria, o panorama saía das nebrinas dissipadas a golpes de sol  aqui e além,  nas cristas  dos  outeiros.  Desci a  correr a  ladeira  do monte,  pendores suaves donde o olhar abrangia, para todos os lados, perspetivas do  mais belo matiz, montados, restolhos de searas, regatos orlados de choupos e  faias,  mais para  além,  hortejos alegres onde chiavam noras e se  espiralava o  fumo dos casais, vinhedo sem fim bordando sinuosidades bucólicas, brancas  ermidas pousadas nas montanhas, e, perdendo-se na serenidade esfumosa do  horizonte,  povoações  que  na  luz iam fazendo mais  e mais  nítidos os seus  delineamentos. A paisagem  tinha  agora  uma nitidez  de gravura.  As aldeias  sorriam para o noivado da natureza em festa, enquanto, de uma banda e outra,  grandes massas de arvoredo abriam destaques surpreendentes.  

Iam tranquilamente  pelos  terrenos ceifados os carneiros  dos rebanhos,  alongando o pescoço, a  fofa  corpulência  tufada  de lã  patente em camas de  espiraizinhas miúdas.

Alguns velhos guias experientes e graves, focinho erguido, a grossa cornadura  em anéis de diâmetros crescentes, enrolada como o arrepio da cabeleira de um  dandy,  chocalho pendente  por correias de couro cru,  a  orelha  inquieta,  olhavam vivamente  o largo,  bebendo os  sons  e procurando-lhe  a  origem  solícitos, como quem tem sobre si a responsabilidade da tribo e o futuro dos  pequeninos. Acima da redondeza das ancas de alguns, cabritinhos fulvos, de  grandes  orelhas horizontais,  uma  meiguice  cândida na  vista,  erguiam-se  a  prumo furando caminho,  as  maxilas  entreabertas,  por  onde se escapava  um  queixume tenuíssimo —  mé!  mé!  —  alguma coisa  como os rudimentos da  cartilha  do rebanho.  Vários preguiçosos,  estacados a  meio da  corrente,  mergulhavam o focinho na  água,  bebendo.  Poucos  tinham já  passado e  cortavam a  dente  as  gramíneas  alastradas  nas barranceiras. O  velho cão  descansa,  numa  postura séria  de patriarca, enquanto, nas  meias-tintas dos  planos secundários, o pastor, de manta ao ombro e polainas encarquilhando  na  tomba  dos sapatos  cardados,  tinha o  seu ar pasmado de  montanhês,  olhando a  catarata  de ouro  fundido que o sol jorrava  do nascente,  numa  apoteose de cáusticas vivas — olhar em que se estagnava a silenciosa doçura  dos olivais cinzentos e se  refletia  a conceção  panteísta  de um  Deus  amantíssimo, que fecunda os trigos das searas, preside às crias e vem de noite,  mansamente,  com o seu capuz  de estrelas  derrubado para  diante,  lançar a  bênção ao gado que dorme, inoculando no sonho do pastor o esmalte de um  sorriso de ceifeira, vermelho como as cerejas úmidas de Junho.  

Correndo através do montado, cheguei à ribeira, que pude salvar num pulo de  lobo,  e,  sem me  deter,  entrei  a  trepar a  pedregosa  encosta,  na  direitura do  ninho. Faziam-se ali acumulações selváticas de tojeiros e silvados, cabeças de  rochedos pardacentos, espinhais de luxuriante amplitude, que tolhiam o passo  a  quem  ia. E aquele  recanto,  plutônico e brusco, desenhava-se  numa como  penumbra  de floresta,  que de cima caía  filtrada  pelos amontoados  da  folhagem. Deixara de ouvir a águia, e era pungente o sossego daquela região,  equiparado ao orfeão gigantesco de voláteis, que na planície entoava o poema  sinfônico da manhã. Por duas ou três vezes ergui a voz para insuflar a vida  nos ecos do desfiladeiro. De rocha em rocha, quando muito, o eco repetia a  última sílaba,  num murmúrio tímido,  como rezado à  roda  de um  féretro, e  morria.

Pela  montanha, troncos  penitentes e negros orando de braços abertos.  Nos  pegos da  ribeira,  as reticulações verde-negras dos limos  deixando evolar a  putrilagem das febres más. Silêncio abrasado, pesando.

Quando cheguei ao ninho, arquejava.  E,  antes de erguer a  vista sobre ele,  detive-me um  instante,  olhando à  roda com um  terror  sombrio,  que  o  remorso  envenenava.  Se a  águia  desse  comigo podia  matar-me  à  bicada.  E  teria razão — ai de mim!

Estava  sozinho. Não  se  via  dali o monte  já.  De repente,  casualmente,  sem  mesmo querer, dei com a águia, que, de cima do ninho, abria as asas e sobre  mim estendia o seu pescoço ávido. Fiquei tremendo ante a raiva silenciosa que  paralisava a terrível rainha. Ela ia decerto formar voo e cair sobre mim,  para  dilacerar-me com as suas garras de três gumes implacáveis de uma vingança  cruel.  

Olhamo-nos por tempo. As asas da águia abriram os seus leques enormes de  varetas curvas.  A imobilização porém continuava  e o pescoço permanecia  caído à borda do ninho. Veio-me a ideia de que podia estar morta. Atirei-lhe com uma pedra — a mesma indiferença.

Sem querer saber de mais, desenrolei a corda e atirei-a à primeira pernada da  árvore.  Quando atingi a  altura do ninho, pude olhar bem de perto  a  águia  agonizante,  que  um frêmito  vago'  percorria.  Era  poderosa  e  magnífica,  de  enormes asas pardacentas, cujas fortes rémiges se aguçavam como punhais, na  ponta. Estava de bruços sobre o ninho, como se quisera aquecer o peito de  encontro aos frouxéis alvinitentes em que os filhinhos tinham visto a primeira luz.   cabeça um pouco chata descaía adiante num bico de bordos dentados, e   sobre a íris de oiro a nictitante ia descainho na sombra da agonia, como um  apagador sobre a luz do círio pascal.  

A águia  morreu nesse dia,  à  mesma  hora  em que as outras aves  voltavam  cantando aos ninhos, para dormir com a prole. Por muito tempo, cruzando o montado atrás dos rebanhos do  meu  pai,  pude  ver nos  cimos  da  azinheira  gigante, suspenso, o berço-túmulo, a que o esqueleto da águia fazia guarda, dia e noite, de asas estendidas, branquejando na sombria folhagem da árvore. E  vinham-me então remorsos, que fora eu o assassino daquela dinastia real!

Vai  completar-se um  ano  que a  tua  filha  desceu à  cova,  Ó  minha mãe!  E,  vendo-te curvada no teu luto, pobre mulher envelhecida de lágrimas, sublime  por toda uma vida de abnegação sem exemplo, para mim fico pensando que  deve ser cruel  o Deus que tu  adoras,  se  nunca  teve remorsos de haver  roubado também — o Ninho de Águia.

1881 — Vila de Frades. 

Fialho de Almeida - Contos (1881)

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