sexta-feira, 30 de abril de 2021

Florbela Espanca: "Em Busca de um Novo Rumo"

 Já homenzinho, nas longas noites de Inverno, acocorado à chaminé onde o madeiro  crepite, lê embevecido, horas a fio, todo o Júlio Verne, histórias de piratas e  corsários; o navio-fantasma enfeitiça-o; os naufrágios heróicos entusiasmam-no;  foi durante anos todos os capitães de navios naufragados, morrendo no seu posto,  aos vivas a Portugal!

No liceu sonha com a Escola Naval: é uma ideia fixa. Põe a um gato abandonado,  repelente, todo pelado, encontrado numa suja travessa das imediações do liceu, o  nome de "Marujo"; a uma galinha, a quem endireitara uma perna quebrada,  ficou-lhe chamando "Canhoneira"; o cão, seu companheiro de folias, chamava-se  "Almirante".

No dia em que pela primeira vez envergou a linda farda da Escola, quando o  estreito galão de aspirante lhe atravessou a manga do dólman azul escuro, foi como  se S. Pedro abrisse, diante dele, de par em par, as bem-aventuradas portas do  paraíso. Era marinheiro! Sabe lá a outra gente o que é ser marinheiro! Para ele,  ser marinheiro era a única maneira de ser homem, era viver a vida mais ampla,  mais livre, mais sã, mais alta que nenhuma outra neste mundo! O seu forte  coração, sedento de liberdade, era, no seu rude arcabouço de marujo, como um  pequeno jaguar saltando do fundo da jaula, estreita e lôbrega, contra as barras de  ferro que o retêm afastado da selva rumorosa.

Ao pôr pela primeira vez o pé num navio, lembrou-se do tanque da sua infância e  sorriu; o mesmo clarão de antes, de fascinação e de triunfal alegria, iluminou-lhe  os olhos garços; as pálpebras tiveram o mesmo estremecimento de voluptuosidade  e cobiça. O rio sempre era maior que o tanque de outrora... Quando viu fugir  Lisboa, afogada nas sombras violetas do crepúsculo, e deparou com todo o mar na  sua frente, a sua alma audaciosa, rubra do sangue a escachoar dos seus irrequietos  vinte anos, tomou posse do mundo, num olhar de desafio!

Quando voltou, porém, meses depois, vinha desiludido, furioso contra o seu sonho,  que se tinha ido quebrar, como todos os sonhos, insulso e embusteiro, de encontro  à banalidade ambiente. Aquilo, afinal, era uma maçada, uma tremendíssima  maçada! O mar, todo igual, monótono embalador de indolências. Não havia  corsários nem piratas; o navio-fantasma era um fantasma dos seus sonhos de  outrora. O mar era mais lindo nos livros e nos quadros. Os poetas e os artistas  tinham-no feito maior do que ele era; afinal, era pequenino como o tanque,  acabava ali perto... Não tinha sido preciso arriscar nem uma só parcela de vida;  não havia no seu navio mulheres e crianças a salvar; não havia naufrágios  heróicos; o capitão nem uma só vez teve ocasião de ir ao fundo, no seu posto, aos  vivas a Portugal! E sorria, com uma grande ironia nos olhos claros de expressivo  olhar de lutador.

Renegou o seu culto sem pesar nem remorsos, com a mais completa das  indiferenças e, dum dia para o outro, o mar que tinha sido a grande quimera da  sua ardente imaginação de meridional, que tinha sido a sua nova, a sua amante nos  dias felizes da adolescência, foi atirado para o lado, no gesto negligente de um bebê  que atira pela janela fora uma concha vazia.

"Aquilo afinal era uma maçada, uma tremendíssima maçada!" e os olhos claros,  investigadores, de olhar acerado como o das aves de rapina, procuraram  ardentemente outra coisa. Franziu os sobrolhos, no ar recolhido e concentrado de  quem excogita, de quem procura uma solução difícil... Olhou o céu profundo... e  achou! Um avião! Era aquilo mesmo. Ser aviador é melhor que ser marinheiro! É  abraçar no mesmo braço o céu e o mar! na linguagem dos símbolos, a âncora,  definindo a esperança, nunca poderá valer as asas, que são a libertação. A âncora  agarra-se ao fundo e fica, as asas abrem-se no espaço e penetram no céu. Seria  aviador! E foi.

Nota:
Florbela Espanca: "Dominó Preto" (1982) 

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