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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Florbela Espanca: "Em Busca de um Novo Rumo"

 Já homenzinho, nas longas noites de Inverno, acocorado à chaminé onde o madeiro  crepite, lê embevecido, horas a fio, todo o Júlio Verne, histórias de piratas e  corsários; o navio-fantasma enfeitiça-o; os naufrágios heróicos entusiasmam-no;  foi durante anos todos os capitães de navios naufragados, morrendo no seu posto,  aos vivas a Portugal!

No liceu sonha com a Escola Naval: é uma ideia fixa. Põe a um gato abandonado,  repelente, todo pelado, encontrado numa suja travessa das imediações do liceu, o  nome de "Marujo"; a uma galinha, a quem endireitara uma perna quebrada,  ficou-lhe chamando "Canhoneira"; o cão, seu companheiro de folias, chamava-se  "Almirante".

No dia em que pela primeira vez envergou a linda farda da Escola, quando o  estreito galão de aspirante lhe atravessou a manga do dólman azul escuro, foi como  se S. Pedro abrisse, diante dele, de par em par, as bem-aventuradas portas do  paraíso. Era marinheiro! Sabe lá a outra gente o que é ser marinheiro! Para ele,  ser marinheiro era a única maneira de ser homem, era viver a vida mais ampla,  mais livre, mais sã, mais alta que nenhuma outra neste mundo! O seu forte  coração, sedento de liberdade, era, no seu rude arcabouço de marujo, como um  pequeno jaguar saltando do fundo da jaula, estreita e lôbrega, contra as barras de  ferro que o retêm afastado da selva rumorosa.

Ao pôr pela primeira vez o pé num navio, lembrou-se do tanque da sua infância e  sorriu; o mesmo clarão de antes, de fascinação e de triunfal alegria, iluminou-lhe  os olhos garços; as pálpebras tiveram o mesmo estremecimento de voluptuosidade  e cobiça. O rio sempre era maior que o tanque de outrora... Quando viu fugir  Lisboa, afogada nas sombras violetas do crepúsculo, e deparou com todo o mar na  sua frente, a sua alma audaciosa, rubra do sangue a escachoar dos seus irrequietos  vinte anos, tomou posse do mundo, num olhar de desafio!

Quando voltou, porém, meses depois, vinha desiludido, furioso contra o seu sonho,  que se tinha ido quebrar, como todos os sonhos, insulso e embusteiro, de encontro  à banalidade ambiente. Aquilo, afinal, era uma maçada, uma tremendíssima  maçada! O mar, todo igual, monótono embalador de indolências. Não havia  corsários nem piratas; o navio-fantasma era um fantasma dos seus sonhos de  outrora. O mar era mais lindo nos livros e nos quadros. Os poetas e os artistas  tinham-no feito maior do que ele era; afinal, era pequenino como o tanque,  acabava ali perto... Não tinha sido preciso arriscar nem uma só parcela de vida;  não havia no seu navio mulheres e crianças a salvar; não havia naufrágios  heróicos; o capitão nem uma só vez teve ocasião de ir ao fundo, no seu posto, aos  vivas a Portugal! E sorria, com uma grande ironia nos olhos claros de expressivo  olhar de lutador.

Renegou o seu culto sem pesar nem remorsos, com a mais completa das  indiferenças e, dum dia para o outro, o mar que tinha sido a grande quimera da  sua ardente imaginação de meridional, que tinha sido a sua nova, a sua amante nos  dias felizes da adolescência, foi atirado para o lado, no gesto negligente de um bebê  que atira pela janela fora uma concha vazia.

"Aquilo afinal era uma maçada, uma tremendíssima maçada!" e os olhos claros,  investigadores, de olhar acerado como o das aves de rapina, procuraram  ardentemente outra coisa. Franziu os sobrolhos, no ar recolhido e concentrado de  quem excogita, de quem procura uma solução difícil... Olhou o céu profundo... e  achou! Um avião! Era aquilo mesmo. Ser aviador é melhor que ser marinheiro! É  abraçar no mesmo braço o céu e o mar! na linguagem dos símbolos, a âncora,  definindo a esperança, nunca poderá valer as asas, que são a libertação. A âncora  agarra-se ao fundo e fica, as asas abrem-se no espaço e penetram no céu. Seria  aviador! E foi.

Nota:
Florbela Espanca: "Dominó Preto" (1982) 

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