quarta-feira, 28 de abril de 2021

Florbela Espanca: "Mamã"

Noite negra e tempestuosa! No céu não luzia uma estrela, o   vento soprava com violência, e flocos de neve envolviam, como  em alva mortalha, a aldeia adormecida. Só ao longe milhares de   luzes ardiam no soberbo castelo. Perfumes, flores, sedas, rendas e cá fora, numa humilde choupana à beira da estrada, fome, miséria e lamentos. Vivia ali uma pobre camponesa com dois filhinhos. Magros, doentes, pediam esmola pelos casais.  Agora choravam. Tinham fome e não tinham pão, os míseros   pequeninos.  

 No único aposento via-se apenas uma enxerga onde, com a cabeça  entre as mãos, a pobre mãe pensava, talvez, no futuro bem   negro dos filhinhos.  

 A contrastar, porém, singularmente com a miséria do casebre, via-se um berço elegante e lindo. Envolviam-no rendas e arminhos. Dentro um pequeno gentil dormia, com a linda cabecita emoldurada nos anéis doirados do seu cabelo loiro. Nos lábios pairava-lhe um sorriso meigo de anjo dormente.   

 Abre-se a porta de repente. Uma mulher divinalmente formosa,   envolta em ondas de rendas e sedas, arrastando altiva a longa   cauda, entra na choupana.

A camponesa ergue-se admirada, enquanto a fidalga adulada,  invejada, que tinha a seus pés um mundo de adoradores, não receando amarrotar as rendas caras do seu opulento vestido de   baile, ajoelhou humilde ante o bercito do filho do crime, que  tinha de beijar furtivamente; inclinou a cabeça, e duas lágrimas brilhantes como gotas de orvalho se desprenderam dos olhos, resvalando-lhe pelas faces, que foram cair nas do pequenito que, a sorrir no seu sorriso de anjo, balbuciou   mimoso:

 - Mamã!

Nota:
Florbela Espanca: "Dominó Preto" (1982)  

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