sábado, 3 de abril de 2021

O Bolo Podre

 Naquele tempo, na Páscoa, o bolo podre era o rei. Sobressaía quase a pedir meças ao cordeiro assado no forno. Um e outro não queriam saber do Natal, pois aí havia outros a distinguirem-se e a merecerem a humana atenção.
A atafona, que é um modo de dizer as canseiras, começava no Dia de Ramos com a escolha das pernadas de oliveira para se fazerem os ramos a levar à Missa. Não é que fosse algo para se ter vaidade, mas até nisso, cada qual procurava exibir o que resultava da sua arte para a coisa.
 
Era pois então o começo e o entranhar do período de Páscoa que se fazia de muito se sentir e muito se rezar, mas era também tempo de alegria pela alva e até ao escurecer do Domingo. Passada a Paixão, celebrava-se a Ressurreição com tudo a preceito.
Na Semana Santa o forno não parava comparado com o resto do ano, pois não era por dá cá aquela palha que ele se acendia. Não que não houvesse vontade, mas os comeres eram parcos. Forno quente e preceitos para o encher era luxo. Só em ocasiões especiais, tipo o dia do Padroeiro e pouco mais tirando a Páscoa.
Mas indo ao bolo podre. Antes de mais, havia que se arranjar lenha a preceito pois a empreitada não era fácil. O ventre do forno tinha que ser esquentado, mas não assim por aí além dada a fineza do produto em questão elaborado a partir de coisas e finas e a merecer todos os cuidados.
Sensíveis que eram e são, quentura a mais, e lá se ia a obra. Havia, pois, que se conhecer bem o forno sabendo-se da sua capacidade de se manter suficientemente brando e de mais o tempo necessário entre o tapar-se e o abrir-se.
Descuido resultava num monte de bolos mais pretos que pretos da Guiné, com o devido respeito, ou nuns amontoados de massa malcozida e pronta a ir para o lixo. Nem para a lavagem dos recos servia. Só mulher sem vergonha na cara se atreveria a ir à Missa de Páscoa se não lhe tivesse corrido bem o labor de fazer bolos poderes.
 
Quanto à lenha. Está-se mesmo a ver que era do mais importante, pois com o seu arder se consegue a temperatura certa. A de giestas era a mais recomendável logo antes das vides que eram pau para toda a colher e estavam sempre à mão. Ambas ardem facilmente e não se aguentam muito tempo a provocar escaldão.
Cuidada a lenha havia o resto. A farinha que se comprava ao moleiro de Alvelos com moinho estabelecido no rio Varosa, os ovos da criação mantida e sobrevivida no galinheiro, água da boa e pura, e pouco mais, digo eu que quanto a saber de tal cozinhado sou a rasar o zero.
Tudo misturado e feita a massa o importante era a aventura do forno feita espera e apreensão. No entanto, antes disso, havia trabalho e duro, pois amassar era obra com exigir de vontade e força. Mexia-se, removia-se, batia-se, socava-se. Podia até ser que na imaginação alguém fosse socado mesmo sem estar dentro da gamela. Mas não. Era época de paz e de amor.
Cortada, amontoada e arredonda a massa fechava-se a porta do forno com ternura e com uma benzedura. Chegada a hora, sustinha-se a respiração, acalmava-se o coração, controlava-se a emoção. Abria-se e soltava-se a alegria.
 
Notaram por certo que contei como se já tivesse sido. Salvaguarda-se, contudo, que ainda é e será. Não tanto como antes, mas mantém-se a tradição que vem de longe e não tem fim porque as coisas boas que são rosas nas nossas memórias deixam por aí as suas pétalas tocadas por suaves brisas.

Manuel Igreja

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