Quando os rapazes terminavam a instrução primária, seus pais não tendo condições de os mandar prosseguir os estudos, procuravam-lhes emprego de aprendiz nas diversas ofertas que havia na terra. As meninas, normalmente, iam servir nas casas mais abastadas.
Toninho, rapaz feliz e inteligente, terminara a quarta classe com boas notas. Dava gosto ver o pequeno, hirto e cheio de brio com os resultados obtidos! Mas o tempo de estudo tinha terminado para ele. Seus pais, depois de muito meditarem sobre a futura profissão, que haviam de escolher para o filho, decidiram-se por aprendiz de serralheiro. Certa noite, à ceia, ficou combinado que, no dia seguinte, a mãe iria levar o rapaz à serralharia do Ti Manel.
Ora bem… O mestre serralheiro, mal os viu chegar à soleira da porta, deu-se logo conta ao que vinham:
- Fruto da época! - disse-o com um meneio da cabeça.
Assim que terminava a escola, pululavam os rapazitos, franzinos - alguns ainda a cheirar a cueiros!
Num gesto repleto de doçura maternal, Ti Ana dava a mão ao seu rebento, fazendo lembrar a divina representação escultórica da Madona de Bruges, de Michelangelo. Quanta ternura brotava desta mãe, oferecendo o seu tesouro, para também ele ser esculpido às mãos do mestre.
Enquanto esperavam, especados à soleira da porta, longos e intermináveis minutos – são-no sempre para quem espera de pé - Ti Manel terminava um conserto. De soslaio, fingindo não dar qualquer importância ao caso, deitava-lhes o olho como que a ver se tirava algum pormenor importante, remoendo entre dentes:
- Mais um à procura de pão pra boca!
A contragosto - por insistência da extremosa mãe – aceitou ouvir o caso. Depois de tantas recomendações e elogios, que a doce Ti Ana debulhava sobre o seu menino, decidiu ficar com o rapaz. Que aparecesse no dia seguinte - bem cedo - recomendava o mestre.
Na época, os aprendizes não ganhavam nada, apenas o almoço que a esposa do patrão lhes oferecia. A desculpa… ora, a desculpa! Diziam aos pais que os aprendizes estragavam muito material durante a aprendizagem, e o que haviam de ganhar não cobria as despesas.
O alegre Toninho, assim que escutou o galo cantar, deu um pulo da cama, vestiu-se num ápice, deitou água no lavatório, que mal dava para molhar o rosto, e de pronto apresentou-se na cozinha, onde já estava a mãe a preparar o café da manhã. Comeu na sofreguidão das almas apressadas e tratou de ir, canelha fora, até à oficina de serralharia. Madrugara para chegar antes de a oficina abrir, apresentando-se entusiasmado e cheio de vontade de se fazer um bom oficiante. Era o seu primeiro dia, o primeiro emprego, talvez um grande passo para se afirmar junto dos outros rapazes da terra.
Os dias eram vaticinados por montes de tarefas: cada qual, mais desafiante; cada qual, mais pesada que a anterior. Respondia, sempre, com alegria a todos os pedidos do mestre. O pior era o almoço! O rapaz não era biqueiro - bem pelo contrário, um Jó d’alma - aceitava de bom agrado tudo quanto lhe pusessem no prato. Só que Ti Joaquina, esposa do mestre – ora fosse acanhada de mão, ou a época que não lhe permitisse larguezas - mal punha comida no prato dos aprendizes. Pobres rapazes! O Toninho passava o dia com o estômago a roncar de fome, dores de cabeça e fraqueza.
Na corda das horas, os dias arrastavam-se lentamente, a alegria esmorecendo, e a prontidão, com que o novo oficiante respondia às solicitações do mestre, foi decaindo.
Para não causar desgosto aos pais, este bravo rapaz, foi aguentando estoicamente a situação até ao limite. Em sua casa a fartura também não era muita, mas não se lembrava de passar tamanha fome. Isto perturbava-o sobremaneira. Se por um lado queria aprender uma arte; por outro, sentia-se demasiado fraco para continuar este projeto de vida. Quando à noitinha se recolhia no quarto, deitava-se e ficava preso a fitar o teto. Era, então, nestes momentos que se punha a imaginar uma saída para o caso e nas consequências da decisão que viesse a tomar. A solução que encontrasse teria de ser apaziguadora, principalmente, da sua alma. Foi pesando na balança o que mais conviria: ficar a definhar lentamente, ou sair dali de forma airosa?
Um dia, acordou cheio de vigor e resoluto a mudar o rumo à vida. Esperou pelo almoço. Parco almoço! Daqueles a fazer lembrar os restaurantes chiques que há agora, sabeis? Onde não põem nada no prato, e a gente ainda paga uma fortuna à saída. Olé se paga!
Terminado, o almoço, o mestre e alguns empregados tinham de sair para irem assentar uma obra. Antes de abalar, Ti Manel, desfiou um monte de recomendações, ao Toninho e a outro aprendiz:
- Tratai de fazer esse trabalho pro Ti João Cuco. Cuidado com isso, rapazes! Se não ele mói-me o juízo. Estais a ver esse ferro aí? É para acarretar lá para dentro. Ponde tudo no lugar. Tomai conta de algum recado que… - e abalou.
Eis o tempo e o espaço que o Toninho precisava. Cheio de fome, mas com uma inabalável coragem, tomou então a resolução que há muito andava a magicar. Foi buscar uma chapa de ferro, de bom tamanho, um ponteiro bem afiado e escreveu...
Fica-te, maldita forje.
Maldita sejas tu!
Levo nos dentes ferrugem,
E teias no olho do cú.
Tratou de colocar a chapa à porta da serralharia - em lugar bem visível - e pôs-se a milhas num instante, não fosse o diabo tecê-las!
Quem por lá passou - e leu a quadra - de imediato percebeu, que os aprendizes não eram bem tratados nestas paragens.
E vós, caros leitores, ficai sabendo que esta história ainda mora na viva lembrança de quem, com alegria e candura, amavelmente ma contou; uma encantadora senhora com 85 primaveras.
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