sábado, 19 de junho de 2021

Viagem às raízes - 4ª parte

 No Pádua Freixo, minha mãe continuava a fazer algumas tropelias, sendo que a última tinha desagradado ao pai. Aquilo com que nunca contara acabou por acontecer. Meu avô resolveu bater na filha com catorze anos. Indignada com a situação, fugiu para casa de uns parentes que tinha no Casario, e, com a ajuda destes apanhou um carro de praça até à estação do comboio de Mirandela e daí partiu para Lisboa.

O meu avô, em vão, procurou minha mãe por todos os lados para a levar para casa. Sentiu aquela impotência de nada mais poder fazer perante o facto de se lhe ter escapado, como água entre os dedos, a sua tão adora filha América.

Em Santa Apolónia – Lisboa, tinha a irmã Maria e o cunhado Viriato à sua espera. Enviara um telegrama a avisá-los da chegada.

Para os seus olhos de menina, Lisboa era grande demais e a irmã Maria não parecia a mesma. Tinha rapidamente mudado.

- Como eras e te puseste, Maria! – pensava para consigo minha mãe.

Num ápice, minha mãe estava a servir numa casa de família. O trabalho não a incomodava. Bem sabia que teria de se sustentar, e jamais ficar a pesar à irmã.

A família era pequena. Um casal com um filho pequenito que era extremosamente cuidado pela mãe. A criança, de tantos zelos, vivia empalidecida e com problemas imunitários. A mãe passava algodão com álcool em tudo para que a criança não apanhasse nenhuma doença – talvez resquícios da peste espanhola de 1918.

Foram passando os dias e os meses, e o declínio português cada vez mais acentuado, até que entram as senhas de racionamento para acesso aos bens alimentares de primeira necessidade.

Minha mãe cheia de trabalho; e igualmente cheia de fome. A senhora retirava-lhe as senhas de racionamento, a que tinha direito, em benefício da família.

Todo o dinheiro que recebia era enviado numa carta à mãe para a ajudar com os irmãos mais novos. Bem sabia dos fígados do Lorde Inglês.

Meu avô era um tirano. Tinha uma divisão da casa onde guardava do bom e do melhor, só para consumo dele. Era lá que guardava os salpicões, alheiras, linguiças, a salgadeira com o presunto, etc. Fechava esse quarto à chave. Os filhos e a minha avó… viviam à míngua.

Um dia, os meus tios resolveram fazer uma incursão ao dito “armazém”. Discretamente tiraram uns salpicões, que com grande regalo foram saboreados. Meu avô deu conta e o caso resultou em festa rija. Deu uma tareia aos filhos.

Minha mãe ia sofrendo as duras penas da guerra na capital, e mais sofria com as atitudes do meu avô. Farta de tanto mourejar, tanta fome passar, da vil tirania do meu avô, resolveu mudar, totalmente, o rumo da sua vida na perspetiva de que tal ato pudesse converter o Lorde Inglês. Não sabia ainda, com dezasseis anos, de que os únicos que podemos mudar, somos nós mesmos.

Resolveu ingressar numa ordem religiosa – Casa de Santa Zita -, que fica na Rua de Santo António à Estrela em Lisboa. Despojou-se de tudo quando entrou para se entregar à conversão do pai.

Nesta ordem religiosa, aprendeu imenso sobre cozinha, tendo tirado vários cursos. E, como se fez uma grande oficiante, foi-lhe proposto dar aulas - repto que abraçou com enorme proa.

Passou pela Casa de Santa Zita em Coimbra, onde ministrou a sua arte e saber a outras religiosas e jovens que frequentavam a casa para aprenderem culinária. Adorou a cidade de Coimbra. E posso revelar-vos: foi tão impactante que quando eu estava para ir para a Faculdade me dizia – gostava tanto que fosses estudar para Coimbra. Lá, é que se vive a verdadeira vida de estudante e doutor!

Levou demasiado a peito a conversão e salvação do pai. A privação da liberdade, também, não lhe foi benéfica. Foi sendo sucessivamente submetida a cirurgias, até que, antes de professar os votos, a Madre Superior a chamou para uma conversa franca.

Seria melhor deixar a Ordem porque via nela uma alma carecida de liberdade e ali acabaria por definhar e morrer. Se queria continuar a ser boa pessoa e a ajudar o próximo, poderia fazê-lo fora da Ordem, não era obrigatório ser religiosa. Aceitou a orientação da Madre, mas pediu que a ajudasse a arranjar um trabalho onde pudesse ganhar a vida condignamente.  

Foi encaminhada para trabalhar na casa de um casal sem filhos, no Bairro Azul em Lisboa, gente muito rica e com ligações às mais altas instâncias do poder governativo.

Chegou com a humildade de uma religiosa e a tenacidade com que nascera. Logo foi avisada, por uma criada, para não desfazer a mala porque as raparigas não duravam mais do que duas semanas, ali em casa. Isso foi tido como um desafio a ultrapassar.

As semanas foram passando e minha mãe adaptando-se à casa, aos patrões, aos colegas de trabalho e, sobretudo, foi mostrando os seus dotes de excelente cozinheira e governanta. Subiu, degrau a degrau, com firmeza e sem atropelos. Conquistar as boas graças dos patrões, foi trabalho árduo e longo.

Nesta casa, eram recebidos os mais altos governantes da nação: Óscar Carmona, Craveiro Lopes, Américo Thomaz e outros. Grandes banquetes foram organizados e servidos pela minha mãe, pondo em prática tudo quanto aprendeu na Ordem religiosa. No final, os chefes de estado iam dar-lhe os parabéns e trocavam algumas palavras.

Esta família, Sr.ª Maria José Parreira e Sr. José Parreira, tinham imensas herdades no Alentejo. Eram grandes produtores de cortiça, que exportavam clandestinamente para a Rússia. Minha mãe via-os em reuniões lá no Alentejo, uma vez que os acompanhava nas deslocações.   

No verão, era um consolo nadar na piscina do Alentejo, quando temperaturas tórridas se abatiam no local. Os patrões achavam imensa graça à rebeldia, firmeza e alegria que a Bequinha, assim era chamada pelos patrões, tinha trazido à casa.

Com os colegas? Minha mãe foi ressuscitar a infância. Pregava-lhes partidas. O motorista, que ia com ela às compras, andava mais ou menos enrolado com a criada dos quartos. Depois havia mais criadas que a ajudavam na cozinha e na copa.

Um dia resolveu pregar uma partida ao casal de colegas. Meteu um sapo…

Texto:
Ⓒ Teresa do Amparo Ferreira, 18-06-2021

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