6. O Cabido da Diocese expropriou o Naso a Genísio e à Especiosa.
Nos séculos XIV e XV, quando os factos narrados nos pontos anteriores ocorreram, todo o Serro do Naso pertencia ao termo de Genísio e, dentro deste, à Especiosa, sua anexa. Quem hoje viajar de Miranda para S. Martinho, ao passar no Naso, tem à sua esquerda a aldeia da Especiosa, logo em baixo, a cerca de 500 metros de distância. Mas, se do Naso viajar para a Póvoa, tem de andar mais de 3 km. Ou seja, é seis vezes mais longe do Naso à Póvoa do que do Santuário à Especiosa. Só a estrada separa o Santuário do bairro cimeiro da Especiosa. Chegava a geografia para concluirmos que o Naso já fez parte do termo de Genísio e da Especiosa. Mas, se quisermos usar um bistouri mais fino para dissecar este ponto, podemos consultar os livros antigos do registo predial, elaborados no início do século passado. E o que concluímos? Só nos livros de Genísio temos sítios relacionados com a Senhora do Naso: Naso, Malhada do Naso, Serro do Naso e Eiricas do Naso.
Nos livros da Póvoa, não há locais indiciários do Santuário. Mas não podemos ficar surpreendidos com estes dados porque foi o Cabido da nova Diocese de Miranda que expropriou o Naso a Genísio e à Especiosa, nos meados do século XVI. As obras relativas ao crescimento da capela, referidas no ponto anterior, já foram executadas pelo Cabido, que geriu o Naso durante cerca de 150 anos. Só nos finais do século XVII, quando se fundou a confraria de Nossa Senhora do Naso, é que o Cabido precisou da Póvoa para recrutar aí alguns elementos da mesa. E, como a igreja da Póvoa também era do Cabido, iniciou-se então um percurso histórico conjunto. A paróquia da Póvoa tornara- -se parceira da confraria da Senhora do Naso (Capela et alii, 2007, 468/9). Mas, não obstante a constituição da irmandade, o Cabido não abriu mão de todos os seus privilégios anteriores, cativando alguns lugares da mesa, que lhe pertenciam sempre, como era o caso do secretário. O juiz manteve-se na dependência do Cabido, que o nomeava cada segundo ano.
Era também o Cabido que apresentava o padre-ermitão da Senhora do Naso. Ou seja, os cónegos da Sé de Miranda, apesar de terem distribuído algum poder, continuavam, com mão firme, a segurar o fio do controlo do Santuário (Capela et alii, ibidem). Há no Naso uma inscrição, muito delida pela erosão, que não conseguimos ler. Os investigadores têm feito vista grossa a este monumento epigráfico, assobiando para o ar. Foi esculpida na marra, junto do acesso à Especiosa. Deve traduzir os termos do acordo, que não deve ter sido fácil de obter, entre a Póvoa e a Especiosa, sobre os novos limites dos dois termos, depois do Cabido da Sé ter decidido colocar, sob a sua jurisdição, o Santuário do Naso, na segunda metade do século XVI. Foi Genísio recompensado por esta cedência? Não sabemos. Mas uma coisa sabemos: a paróquia de Genísio tinha sido anexada para sempre a Angueira, em 1459, como vimos atrás. Depois da criação da Diocese de Miranda, voltou a ser uma paróquia autónoma. E mais, subiu ao patamar cimeiro da hierarquia paroquial. Ficou entre as cinco paróquias mais fortes do concelho, constituídas em sede de Abadia. No caso de Genísio, Abadia de Santa Eulália, da qual Paradela ficou dependente, ao contrário do que acontecia durante a Idade Média. No documento do Arcebispo de Braga, Paradela tutelava Genísio. Ou como aí se refere: Genísio de Paradela. A subida atingiu o cume. O cura de Paradela ficou a depender do Abade de Genísio, que o nomeava (ibidem, 465). Mas, repetimos, não podemos confirmar que esta promoção paroquial de Genísio foi a contrapartida do Cabido para abondar a Senhora do Naso.
7. A Senhora do Nardo que passou a Senhora do Naso.
Muitos estudiosos da Senhora do Naso, como o Abade de Baçal e o Dr. António Maria Mourinho, espremendo o substantivo “naso”, concluíram, através de uma incursão no latim, que derivava de nasus, nariz em português (citados por Mourinho, 2010, 9). No processo científico, o que parece óbvio nunca acerta. Ambos, apesar da sua preeminência filológica, se esqueceram que a fonética comanda a grafia das palavras, através da pronúncia. Por isso, de muitos substantivos, não podemos, através da grafia presente, deduzir a do passado – a etimologia. Ao contrário, temos de os apanhar em etapas muito anteriores, antes da pronúncia ter feito os seus estragos gráficos. A palavra “Naso”, como já vamos saber, antes de se generalizar durante o século XVIII, parecendo pura, acabada de sair da ovulação original latina, já tinha dado um tombo ortográfico, enganando o crivo da etimologia. Na memória da paróquia de 1 de Maio de 1758, o padre da Póvoa, Domingos Martim, escreve (…) Hé esta capella da Senhora do Naso ou Nardo (…). Mais à frente, volta a repetir (…) capela da Senhora do Naso, ou Nardo, como alguns dizem. (Capela et alii, 2007, 468/469 e sublinhados nossos). O padre escreveu duas vezes Nardo. Não foi um lapsus calami. A sua pena não se enganou. O que ele quis fazer foi testemunhar que a Senhora, antes de se chamar Senhora do Naso, chamara-se Senhora do Nardo.
Esta limpidez do texto não deixa lugar a dúvidas. Ficamos assim a saber que, há 263 anos, alguns devotos ainda se referiam à Senhora do Nardo. Ou seja, apesar da maioria lhe chamar Naso, os mais velhos, de memória mais ampla, continuavam a pronunciar Nardo -- o primeiro nome do santuário. Temos, portanto, a certeza que os fugitivos de Genísio às pestes dos séculos XIV e XV criaram uma profunda devoção à Senhora do Nardo, erguendo-lhe uma ermida em pleno Serro do Nardo. E atribuíram-lhe o milagre de terem escapado com vida aos sucessivos golpes da grande pestilência. Mas também os seus gados não foram esquecidos pela Senhora do Nardo, como já vamos saber. A herbácea “nardo” remete-nos para a espécie Nardus stricta. Quando os fugitivos de Genísio se engolfaram no Serro, para escaparem à peste negra, acabavam de descobrir que os gados tinham, também ali, à sua disposição, a melhor manjedoura. Suculenta e nutritiva: era só pastar e ruminar. E lamberem-se de gozo, concluído o processo digestivo. É que, de entre as gramíneas mais tenras e frescas, oferecia-se, solícito, em tufos compactos, o nardo (cervum) – o maior regalo do gado (Ribeiro, 1991, 91). E, como guloseima de sobremesa, os rebanhos ainda podiam meter o dente num acepipe, debicando sossegadamente a bolota, que pingava das frondas dos carvalhos. Aquela gramínea, muito resistente à invernia, cresce a partir dos 700 metros, sendo o mimo dos ovinos nas pastagens naturais de montanha. E, no contexto de um clima mais frio do que o actual, durante a Pequena Idade do Gelo na Europa, entre 1300 e 1800, o “nardo” tinha no Serro do Naso, onde altitude sobe acima dos 800 metros, o seu nicho ecológico perfeito.
Ora, os mirandeses foram sempre mais criadores de gado do que agricultores. Na fuga à peste negra, não podendo trazer as searas e as cortinhas, tornaram-se ainda mais pastores. Dependendo quase exclusivamente dos recursos pastoris, os relvados de nardo, de gramíneas brandas e viçosas, constituíram o pasto farto do gado. A Senhora do Nardo salvara os refugiados da pandemia. Mas também não se esquecera dos seus rebanhos. Que outro nome, mais expressivo, poderiam os fugitivos de Genísio ter atribuído a uma Senhora tão disponível e acolhedora para homens e animais? A gramínea do nardo não baptizou só a toponímia mirandesa, neste caso a hagiotoponímia. O nome da Quinta de Vale no Nardo, no concelho de Mogadouro, saiu do mesmo embrião etimológico (Capela et alii, ibidem, 539).
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