terça-feira, 3 de agosto de 2021

José Régio: “Maria de Ahú”

 Muitas vezes me lembra a Maria do Ahú, que ainda conheci. Viveu em Retorta, aldeia ou sítio na margem esquerda do Ave, quase em frente de Vila do Conde. Aí se conhece a história que lhes vou contar. Não digo que seja muito divertida: nem muito palpitante, embora um pouco estranha. Mas quase todas as histórias verídicas são mais ou menos assim.

O pai de Maria era um pobre cabouqueiro que trabalhava de vez em vez, se embebedava quando podia, e não tinha o que se diz mau fundo. Acabara por ficar viúvo com dois gandulos e cachopita.

Criados aqueles, mortos dois, a cachopita nascera quando já se não esperavam mais filhos. De aí não terem grandes manifestações de regozijo saudado a sua entrada no mundo. Ao ser-lhe apresentada a recém-nascida, a mãe dissera:

— Escusava-se cá este emplastro!

Era uma triste mulher azedada pela miséria, o vinho do marido, as dores no baço, os nascimentos e mortes dos filhos, o trabalho contínuo. O pai mais ou menos estava formulando consigo opinião idêntica à da consorte. Acabou por ter um alçar de ombros e um movimento do queixo, como quem aventa qualquer coisa ao destino:

— Há de se criar p’r’aí...

E criou. Mas era urna rapariguita escanzelada, esverdeada, olheirenta, muito mexida não obstante e com grandes olhos inquietos, ao mesmo tempo assustados e como sôfregos, ao fundo do bioco sempre repuxado à frente da testa. Sim, esta era uma sua santa mania! Fosse ele um velho lenço, um bocado de xale, uma roda de saia rota, fosse o que fosse, sempre Maria havia de trazer qualquer coisa pela cabeça, puxada para diante, achegada à cara, — e os olhos salientes a escabulhar lá dentro. A mão esquerda prendia o capuz sob o queixo, muitas vezes por cima da boca; e a direita é que varria, é que esfregava, é que arrastava, é que arrumava, é que fazia todo o serviço: aliás serviço de pobres, que não exige grandes apuros de higiene. Quando, muito raramente, lhe eram indispensáveis as mãos ambas, dava um nó no lenço, ou quer que fosse, por baixo do nariz. “Tens dores de dentes?” — perguntavam-lhe ironicamente. Abanava a cabeça com energia, a responder que não. A mãe dissera-lhe uma vez:

— Oh, mulher, que nem te posso ver! Pareces uma Maria do Ahú...

E, tendo-lhe vindo tal figuração à idéia, repetia muitas vezes:

— Não que és mesmo uma Maria do Ahú!

Olhava-a com amargor e desprezo, desgostosa daquele seu último rebento. Mentalmente, repetia a frase que logo lhe saíra no dia em que se aliviara: — “Escusava-se cá este emplastro!”

E assim ficou a Maria do Ahú. As Marias do Ahú estavam pintadas em painéis, nos altares, ou faziam parte do figurado nas procissões da Semana Santa. Eram, na mitologia do povo, as bentas mulheres que, chorosas e encolhidas nos mantos, acompanharam a paixão e morte de Cristo. Talvez por isso, Maria não desgostou de ficar a Maria do Ahú. Dava perfeitamente por esse nome, e até só pelo apelido: — Ó Ahú!.

Algumas vezes ainda quis a mãe, aos domingos, torná-la mais apresentável.

És a vergonha da minha casa, desinfeliz!

— Da nossa! — sorria, sarcasticamente o pai.

Dava-lhe o vinho, geralmente, para encarar o mundo e os seres dum ponto de vista sarcástico.

— Toda a gente faz escárnio de ti... — continuava a mãe. Arrancava-lhe o bioco, lavava-lhe o rosto, passava-lhe o pente nos cabelos riçados. Afinal, não era feia que metesse medo! E mandava-a prá porta da rua, ou passear com as mais. Nem as mais, porém, faziam grande empenho na sua companhia, nem Maria do Ahú na delas. Errava pelos cantos e congostas; e voltava com a cara encafuada nas mãos, a maldita!, como se não tivera cara que pudesse andar à mostra, ou sofrera de moléstia ruim! Diziam-lhe então uma palavra, desfazia-se em choro. Acabaram por abandoná-la. A rapariga tinha aduela de menos.

— Deixem essa castanha pilada no saco! — disse o pai.

E mais ou menos ficou assente por todos: a garota não era certa, coitadita! “Faltavam-lhe telhas no telhado.” Mas como trabalhava, trabalhava que nem moira, fazia os recados a toda gente, parecia ter gosto cm ser criada de quem quer que fosse, quem a não estimaria? E quem quer se servia dela:

Maria do hú, vais-me ali ao Zé Manco?

— Maria do Ahú, viste o meu Neca? Vais procurar-mo, vais?

— Maria do Ahú, custava-te ir buscar-me uma pinga de água?

E Maria do Ahú num foguete, as baquetas das pernas zumba que zumba, a mão esquerda, senão ambas, prendendo o bioco — radiante! Às vezes, a mãe disparatava:

— Você é criada de todo o povo, sua palerma? Não vê que ainda fazem pouco de si?

— Não fazem, não senhora.

— Cale-se, que você não entende nada! E aí! não sai de aí! Vão mandar as filhas delas, ora as fidalgas de...

Dizia uma palavra muito feia. E era uma negrura para Maria do Ahú: ali sentada na arca, sem fazer nada, sem poder obsequiar!

Quando a mãe morreu, ficou a servir o pai e os irmãos. Com o sarro da velhice, da miséria, do vício, o pai ia-se tornando insuportável. Os irmãos eram rapazes exigentes e ásperos, cheios de saúde, e, portanto, de brutalidade e pegas. Pai e irmãos pensavam que ela nascera para sua escrava; e ela pensava exatamente o mesmo. Às vezes, brigavam uns com os outros: ora irmão com irmão, ora filhos com pai. Maria intrometia-se a querer pacificar — e era o pandeiro da festa.

Repartia ainda os seus cuidados pelos animais sem dono, para quem guardava os restos das suas magras refeições. Cães e gatos mais ou menos esqueléticos e sujos andavam sempre atrás dela. Comprava aos garotos da rua, por uma côdea de broa, os passarinhos que tinham aprisionado, às vezes estropiado. E bem se enganara quem lamentara Maria do Ahú! Era feliz assim.

Por esse tempo se deu um curioso episódio na sua vida. Como andasse, então, na flor dos seus dezoito anos, costumavam certas comadres picarem-na a respeito de rapazes:

— Quando arranjas um namorado, Maria do Ahú?

Vai sendo tempo, Maria do Ahú...

— Acautela-te com os moços, Maria do Ahú!...

E até alguns malandretes chegavam a cochichar-lhe coisas muito mais atrevidas.

Ora um ralaço aparecera no sítio, vagabundo sem eira nem beira, a quem chamavam o Zé Bicho por ser todo peludo e mazombo. Alguma vez veria o Zé Bicho rentar a porta de Maria, quando esta ficava só? ou rondá-la de largo, noutras ocasiões? Veriam. Começou o falatório: “Então não querem lá ver? o Zé Bicho namora a Maria do Ahú!” Falavam por galhofa, já se vê. Mas o caso é que uma tarde, indo à fonte quando já escurecia, a Josefa Marcada vira o Zê Bicho e a Maria do Ahú desembocando do atalho do Cruzeiro. Estão a ver... a Josefa Marcada! Quem mais tem que se lhe ponha é que mais gosta de pôr quês nos mais. A notícia correu como bichinha de rabiar. Aquela hora, do atalho do Cruzeiro, e derretidos um no outro, os safados!... E toda a gente de roda do pobre bioco:

— Maria do Ahú, já tens o enxoval?

— Quando são os confeitos, Maria do Ahú?

— Isso é pra bô fim, Maria do Ahú?

Mas o mais inesperado, o que dava mais riso e, por outro lado, quase fazia impressão, é que Maria parecia não ir muito fora dos ajustes! Não dizia que sim nem que não; e fazia umas divertidas gaifonas com a cabeça, escondendo mais a cara no bioco, a modos de quem, ao mesmo tempo, quere e não ousa confirmar a verdade. Só o nariz afilado vinha à tona; e os olhos buliçosos escabichavam ao fundo.

— Tu a ele mostras-lhe a cara, Maria do Ahú?

Passaram-se uns tempos; e pareceu que Maria andava caída: Não obsequiava com tanta presteza, aos domingos amodorrava todo santo dia na igreja; dir-se-ia esquivar às pessoas... Fosse mal natural ou- que fosse, a rapariga abatia.

Até algumas línguas danadas chegaram a deitar maus futuros! A Josefa Marcada sorria de esguelha, com um aceno de cabeça cheio de insídia.

— Tu tens alguma coisa, Maria do Ahú?

— Não senhora.

— Maria do Ahú, tu andas doente!

— Não ando, não senhora.

Até que se lembraram:

— Maria do Ahú, aquilo acabaria?...

E vai ela, depois duma breve hesitação, com desespero:

Olhe, acabou, sim senhora! Não era pra bô fim.

Este caso da Maria do Ahú, foi rido e contado anos a fio. Tal a espertalhona, han? Chamassem-lhe parva! Não era pra bô fim, cortou. E tão instintiva honestidade daquela pobre de Cristo encantou todas as velhas, e era apontada como exemplo às novas com mais instrução e menos siso. O Zê Bicho teve de desaparecer como aparecera, pois a cada passo era desfeiteado à conta das suas perversas intenções. Retorta repelia-o.

Após o que, nunca Maria do Ahú tornou a ter qualquer veleidade amorosa. Entrementes, o pai morreu de vez. Os irmãos casaram, um em Vila do Conde, outro na Azurara. Generosidade incrível!, esses brutinhos fora a alma tiveram um lampejo de gratidão: Deixaram à irmã o casebre em que todos haviam nascido, e os pais morrido, como já os pais de seus pais.

Maria do Ahú começou a envelhecer. E não ia envelhecendo feliz? Tinha umas telhas suas que a cobrissem; davam- lhe umas roupinhas usadas as mais senhoras do sítio; ia à lenha, e os lavradores não na enxotavam; comia de esmolas e dos serviços que fazia a toda gente; e nem os garotos da rua se metiam com ela, a uma porque já estavam afeitos à sua figura, por outra porque ela a todos paparicava: Aprendera a tratá-los, de bom grado se prestava aos seus caprichos, e mendigava nas casas dos fidalgos quaisquer lambarices que lhes trouxesse. Pena, haver tão poucos fidalgos em Retorta! Era o senhor Abade, eram as senhoras Limas... eram as senhoras Limas... era o senhor Abade...

Nem sempre Maria do Ahú andava muito limpa, coitada! Principalmente por causa dos garotos, dos cães, dos gatos e do tempo que passava na rua. Mas, quando trazia gulodices aos seus pequenos (e era uma grande calúnia aventar-se que alguma vez as furtasse!), trazia-as embrulhadas em fino papel de seda, ou branco de escrever.. Não ia, pois, envelhecendo feliz? Todavia, não! Maria do Ahú não era feliz como pudera. Servia toda a gente, bem verdade; tinha preferidos a quem dispensava afetos especiais; mas faltava-lhe alguém de particularmente seu, ou de quem fosse particularmente escrava. Por esta falta vivia bastante só e triste, apesar de tudo. Frequentava muito as capelas, ouvia tudo o que os senhores padres declamavam. Até que ponto os entendia... - mistério! Mas várias vezes repetia com acerto, em circunstâncias oportunas, coisas ditas pelo sacerdote na explicação dos Evangelhos, à missa do domingo. Até que o Nosso Pai que está nos céus, à força de a ver rojando as lajes das igrejas, reparou na desolação daquela alma. Teve uma lembrança de pai, e vai de aí...

Sim, então sucedeu a Maria do Ahú a grande aventura da sua vida: Certa manhã, ao abrir o portelo que dava para uns palmos de quintal já desmurado, topou no chão à moda dum embrulho feito de trapos e um, velho xale. Acocorou-se em terra, entreabriu receosa o xale que parecia resguardar qualquer coisa... E viu mexer-se uma pequenina forma viva, como um animalzinho arroxeado, que tinha os punhozitos fechados e vagia. A vizinhança foi alarmada pelo espalhafato de Maria do Ahú.

— Ai o meu riquinho que parece mesmo o Menino Jesus! — clamava eia. — Ai que me vieram pôr um Menino Jesus à porta! Ai o meu rico anjinho que esta serva de Deus não merecia tal prenda!

E assim por diante. Tudo neste teor. Ainda antes de ver se era menino ou menina. Maria do Ahú estava fora de si! Pela primeira vez a viam sem o bioco, os bastos cabelos encrespados no ar, babada de riso e ternura, os olhos cheios de relâmpagos. Não havia dúvida: era uma cabeça de louca. Mas a quem poderia fazer mal a loucura de Maria de Ahú? e quem já, teria alma de lhe arrancar o seu tesoiro? O senhor Abade batizou o menino (pois sempre era menino), dando-lhe o nome de Porfírio por ser o santo do dia. Ele mesmo, senhor Abade, lidou com as autoridades. Ele tratou com a mulher do Bento Fornadas, que ainda estava de cama, pelo menos parte da alimentação do enjeitadinho. E a Maria do Ahú sempre foi entregue o crianço, visto que à sua porta lho tinham ido pôr embora, claro, sob certas reservas e a vigilância do mesmo senhor Abade.

— Nem que ponha a cara... — repetia Maria do Ahú nem que ponha a cara onde aquele santo põe os pés!...

Queria dizer que nem assim lhe pagaria. Tinha a pobre por grande mercê darem-lhe aquele carrego — que outra alijara de si.

Quem seria essoutra? Perguntavam por mofa: — “Quem será a mãe do Menino Jesus?” Mas nunca se soube. Debalde se farejou Fulana, Beltrana, Sicraninha... Quem quer fora — fizera tudo bem resguardado. Quanto ao pai, ao ver-se a diligência com que “aquele santo” lidara com as autoridades, contratara a mulher do Bento Fornadas -... Mas cala-te, boca malvada! E tudo ficou por ali.

Correram anos calmos, iguais, felizes. Se fora instinto de mãe desgraçada, mas amorável, o que guiara a verdadeira mãe de Porfírio ao portelo de Maria, esse instinto a não iludira: uma admirável maternidade se revelava, enfim, plenamente, na pobre tonta. O que ela andava, desandava, pedinchava, se chisnava, para trazer o seu Menino Jesus bem comidinho e bem cobertinho! E nem por isso Maria do Ahú descurava as suas obrigações para com o resto do mundo. Pelo contrário! Não estava ela agradecida a toda a gente, e a este mundo e ao outro, por aquela graça que lhe fora feita? Todos os filhos das outras, os próprios pais, os animais sem dono, os pobres de pedir como ela — tinham sempre em Maria do Ahú a mespa boa amiga e serva. A sua diligência dava para todos. E certo, certo, nunca ninguém soube até que ponto, na ideia de Maria do Ahú era realmente o Menino Jesus (ou uma espécie de sua representação, sua prefiguração), aquele menino que uma vez se lhe deparara, num primeiro raio de sol, ao descerrar a porta para o quintalejo. Nunca ninguém soube em que medida se julgava ela obrigada, tendo merecido tal milagre, a seguir e progredir na via da perfeição. Vão lá saber que jogos de luzes e sombras, confusão e verdade, podem alternar-se num cérebro assim!

O triste caso, porém, é o que tal Menino Jesus do Porfírio crescia molengão e vadio, pouco simpático. Só o senhor Abade conseguiu ensinar-lhe as primeiras letras, a conta de somar e uns rudimentos da doutrina. Não que fosse inteiramente estúpido! Mas não queria aprender; não queria fazer nada; e era de más inclinações: Aos doze anos, por dá cá aquela palha, ameaçava os companheiros de canivete e os companheiros temiam-no, até os mais velhos, porque lhe sentiam instinto de executar a ameaça. Isto, nunca Maria do Ahú o pôde crer. E o que se passou com o senhor Abade, nunca chegou a sabê-lo. Foi pouco, mas elucidativo: uma vez, desesperado com a relutância do rapaz a fixar uma coisa tão simples, como eram as três pessoas da Santíssima Trindade, o senhor Abade dera-lhe um safanão... Mas ficou estarrecido ante a reação do garoto: no seu olhar havia aquele ódio fito, selvagem, e a terrível inconsciência do olhar das feras. Ao mesmo tempo, a sua mão fechara-se, convulsa, chegando a ergue-se involuntariamente contra o mestre, O mestre fingiu nem ver.

Ora, ainda vigoroso, o senhor Abade baqueou com umas febres intestinais. Veio um abadezinho novo, bonito. Era todo perliquitete de maneiras, perfumava-se, tinha mui honrosas relações na Vila, na Póvoa, no Porto, só pensava em erguer mais altos voos — e queria lá saber de águas passadas e enjeitados e velhas mendigas tontas! E a Maria do Ahú pouco se lhe deu, porque tinha mais seu o seu menino.

Simplesmente, o seu menino era agora o Porfírio Moinante: um matulão que se dava à madracice, à vadiagem, à mendicidade, à pilhagem, ao jogo na taberna e ao vinho. Uma virtude tinha o traste, Deus louvado! Respeitava e até certo ponto estimava, a pobre velha que se desunhava para o sustentar. Assim, não havia para Maria do Ahú espelho de perfeições como o seu mancebo. Revia-se nele, que de menino se fizera um mocetão, e criadinho ali com ela, aquele cravo! E ninguém lhe fosse dizer palavra a deslustrar em tal joia! Também já ninguém lha dizia, por caridade.

Mas há que fiar no vinho dum homem de maus instintos? Uma noite, chegando ébrio e topando a velha a pé, Porfírio enraiveceu-se e faltou-lhe ao respeito: empurrou-a; mais: bateu-lhe; sim, bateu-lhe. A princípio, Maria do Ahú não entendeu: Bater-lhe... o seu menino? O seu Menino Jesus? a sua flor, o seu filhinho? Não seria a brincar? não seria para experimentar? Calou-se muito calada, não gemeu nem se queixou, não tocou no assunto a ninguém. Ao outro dia, Porfírio andava como envergonhado. Falava-lhe de cabeça baixa, com um modo como repeso e, ao mesmo tempo, ofendido. “Que lhe teria ela feito?” — cismava Maria do Ahú. — “Valha-me Deus! ter-lhe-ia feito alguma coisa?”

Mas Porfírio tornou a bater-lhe, outras noites. Metera-se- lhe em cabeça que ela tinha dinheiro escondido, exigia-o ali, ali já!, barafustava de modo que os vizinhos perceberam e se indignavam. E era isso o que mais lhe custava, a ela. Porque bater-lhe, no fim de contas, também sua mãe e seu pai que Deus lá tinha lhe batiam; ou os irmãos, quando se iravam; e sua mãe, seu pai, seus irmãos, eram seus amigos, pois não eram? O pior era Porfírio não proceder assim de seu livre alvedrio, Pois no dia seguinte, não andava sempre acabrunhado? Como é que ninguém compreendia que o Mafarrico se metera no corpo do Porfírio? Não dissera o senhor Abade, de cima cio púlpito, que os demônios entram no corpo da gente? O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, não fora tentado por Satanás? Quem lhe batia era o Porco Sujo, abrenúncio!, não o seu cravo, que esse lhe queria como nunca lhe tinham querido.

E, posto exacerbasse os furores do bêbado, defumava-o com alecrim, salpicava-o com água benta que trazia da igreja, em frasquinhos, salmeava-lhe esconjuros que, por caridade, lhe ensinara a Rita Bruxa. Passava muito tempo de rastos nas pedras da igreja, orando. E, no meio de tudo isto, não vão pensar que Maria do Ahú fosse excessivamente infeliz! Não, porque tinha fé. Sabia que tudo havia de passar, e o seu Porfírio ficar são. Sofreria com paciência para o merecer. A verdade é que, em certos dizeres que assombravam toda a gente, Maria do Ahú mostrava uns discernimentos que nunca, antes, revelara.

Até que, um dia, o diabo que se metera em Porfírio arrastou-o a coisa ainda mais grave, (ainda mais grave... pelo menos aos olhos da justiça humana): Foi na venda do Zé Manco, mai-lo Sebastião Bouças, a bem dizer por uma brincadeira; mas tinham chegado a termos de se atirarem à cara o pior de cada um. O Sebastião disse: “Olha tu, que até espancas a velha!” E vai o Porfírio, maldito costume da navalha à unha! caiu sobre ele com um movimento rápido, intenso, que o apanhava do baixo ventre ao estômago. Sebastião oscilou, arregalando uns olhos espantados e agônicos; levara as mãos abaixo, como para ainda apanhar nelas os intestinos... Dobrou sobre os joelhos aos pés do agressor. De aí a nada, estava morto.

Foi uma sublevação no sítio. Ainda maltrataram o Porfírio; e também ali teria ficado, se não fossem as autoridades. Levaram-no para a cadeia de Vila do Conde. De Vila do Conde, para o Porto. Do Porto, sabe-se lá! para Lisboa ou pela barra fora. Houvera julgamentos, fora gente ser testemunha, viera à baila o bater ele na velha.

Tudo isso levou tempo. “Tinha de acabar assim!” — foi o que a maioria da gente disse do Porfírio. A falar a verdade, Retorta sentiu um alívio com o seu desaparecimento.

E, entretanto, Maria do Ahú? De começo, Maria do Ahú andara por’i aos gritos, os braços no ar como a Senhora da Assunção da Póvoa! Já se nem embuçava nem penteava: os seus cabelos brancos riçados caíam-lhe nos ombros e açoitavam o ar. De noite, ouviam-na gemer pelas ruas e implicar com as árvores ou os muros. E ora cantava o Bendito, numa toada lúgubre que ia arrepiar as pessoas nas suas camas, ora rompia em imprecações imitantes às dos padres no púlpito: — “Ai mundo, mundo!, que te deixas afundar por tapares os ouvidos à palavra de Deus! O céu vai tornar a vomitar fogo, um novo dilúvio vai cobrir a terra...”, etc. Assim por diante. Agarrava-se a quem passava, contava mais uma vez a sua desgraça e a história do seu Menino Jesus achado uma vez de manhãzinha, à porta do quintalejo... E ao mesmo tempo ria e chorava, fazendo momices que também eram grotescas e tristes.

O que ela não podia entender é que os outros não compreendessem, nem os doutores! que o seu Porfírio não era culpado de nada. Matar, o seu Porfírio?! matar?! Os demônios é que tinham matado, por não terem achado outra maneira de o perder. Não, matar, — só Deus, que nos dá a vida.

Fora ver o Porfírio à cadeia, e ele abraçara-a chorando. Há muito que o seu Porfírio a não abraçava. Atirou-se-lhe aos joelhos com grandes demonstrações de alegria! Aquilo era prova de que Deus a ouvira, e o seu Porfírio estava limpinho, salvo, livre dos espíritos malignos que o tinham perseguido. Mas quando ele ficara são é que o queriam levar?! agora que ele estava puro?! Então ninguém entendia? Essa gente que tinha o poder não via nada? Não ouvia o padre do púlpito? Não sabia que Satanás viera experimentar o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo? E Deus, Deus não iluminava essa gente? Deus fizera tão grande milagre, libertara o seu Porfírio dos demônios, e não mostrava agora a sua inocência? Não confundia os hereges e os incrédulos? Mas quem era ela, a mais baixa das servas de Deus, para ver o que ninguém via, perceber o que ninguém parecia perceber?...

Todas as suas ideias giravam nesta órbita. E ninguém a julgara tão eloquente. Via-se que aprendera muitas palavras e comparações nas práticas dos domingos ou sermões das festividades. “Coitada!” — diziam, apesar dessa eloquência — “agora é que fica doidinha de todo!” Não obstante, sentiam que nunca ela dissera coisas tão acertadas, de mistura com os seus desvarios.

Depois, porém, foi serenando. Quando, pela última vez, se despediu do Porfírio, disse-lhe assim: — “Tem paciência, meu filhinho. Não te desesperes, que isso é que o demônio quere! Tudo se há de ver claro; hás de tornar! Lembra-te que Nosso Senhor Jesus Cristo ainda sofreu mais. .. e perdoou aos seus algozes! sim, perdoou aos seus algozes!” — repetia, circunvagando olhares angustiados pelos presentes. “Perdoe-me Vossemecê...” — gaguejou o Porfírio. Ela agarrou-se desesperadamente a ele, molhando-lhe a cara de beijos e de lágrimas.

Voltou para o seu cacifo, onde esteve encerrada uns dias. Só recebia ao postigo a malga de caldo que, por caridade, lhe levavam. Depois surgiu outra vez. Mostrava-se humilhada e arrependida das cenas que fizera, vagueando de noite, por congostas, como uma doida. Manifestou o desejo de pedir perdão, em público, do escândalo em que toda gente dera com a sua falta de conformação. Foi preciso o padre dissuadi-la. Como estava muito esvaída de forças, já não podia, agora, fazer recados a ninguém. Nem sequer podia ir pedir. Mas sempre havia umas almas caridosas que lhe estendessem qualquer tigela de caldo, um naco de presigo numa côdea de pão de milho. Dessas esmolas repartia ainda com os outros pobres; e sempre, é de ver, com os gatos e cães sem dono que lhe continuavam de volta das saias. Forçada a limitar muito a sua atividade, cultivava cravos, manjericos e sardinheiras em velhos potes ao longo do muro. E o resto do tempo estava sentada na pedra gasta da soleira, muito encolhida no seu bioco e nas velhas roupas pretas, verdes de coçadas. Quase só se lhe via o nariz, e os ossos dos dedos passando infatigavelmente as camândulas do rosário.

— Como vai isso, Ti’ Maria do Ahú?

— Como Deus Nosso Senhor é servido.

— Pois tem aí um belo jardim, Ti’ Maria do Ahú!

— Deus Nosso Senhor seja louvado! Leva um cravinho, se quiseres...

E, mais uma vez, bem se enganara quem julgara Maria do Ahú desgraçada. “Desgraçado é o demônio!” - dizia Maria do Ahú. Ela ia sofrendo, rezando, esperando... E tão conformada, que se julgou ir perdendo a memória, e quase haver esquecido a tragédia que lhe atravessara a vida. Há uns tempos, já, que não voltava ao assunto.

Mas, um dia, Maria do Ahú amanheceu quase risonha: Aliviara, até, o bioco. Via-se-lhe grande parte da cara aberta numa expressão mui aprazível. É espantoso, não é?; mas o certo é que a idade e os infortúnios a tinham tornado mais bonita; ou menos feia.

À vizinha que lhe levava a malga do caldo, contou que um Anjo do Senhor lhe aparecera essa noite, fazendo tal clarão em todo o casebre que parecia haver a lua cheia entrado pelas telhas. Era de admirar que ninguém tivesse dado tento dessa luzerna! Horas e horas o Anjo do Senhor conversara com ela, tu cá, tu lá, contando-lhe como tudo ia acontecer. Porque tudo ia acontecer breve, agora era certo! Ela é que não podia dizer mais nada. Pois do mais o Anjo do Senhor lhe pedira segredo, pondo o dedo nos lábios, assim... E chegava a imitar o Anjo.

Mas tudo o que, Ti’ Maria do Ahú? — perguntou a vizinha. — O que é que vai acontecer?

Maria do Ahú, largando o bioco, olhou nela quase indignada:

— O que é que há de ser? Então de que falo eu? Tudo foi esclarecido! Vou ver o meu Porfírio.

— Ora ainda bem! — disse a vizinha, consternada, e com um grande esforço para se mostrar alegre. — Nem sabe quanto estimo, Ti’ Maria do Ahú!

Na manhã seguinte, já era sol nado e criado e ela sem aparecer. A vizinha empurrou a porta que só ficava encostada. Maria do Ahú estava amochadinha no chão, contra a parede, a cabeça dobrada ao peito e o rosário caído ao lado.

Ti’ Maria do Ahú...

Ela não respondeu porque estava morta. Mas, quando lhe descobriram a cara, acharam-lhe um ar de grande serenidade e satisfação. Decerto o Anjo do Senhor voltara essa noite, e lhe levara a alma enquanto praticavam tu cá, tu lá

Por esse tempo, quem sabe se Porfírio era vivo ou morto? Talvez ela tivesse tido razão dizendo ir ver o seu Porfírio. E, a ser assim, lá onde se encontraram, por certo já o seu Porfírio não rapava da navalha, nem erguia a mão contra a sua santa mãe adotiva.

Deste modo viveu e morreu Maria do Ahú, cuja história tive a honra de lhes contar. Não prevenira que não era muito divertida, nem muito palpitante, embora um pouco estranha? Mas quase todas as histórias verídicas são mais ou menos assim.

Fonte:
Contos Portugueses - Volume I.Poeteiro Editor Digital. 2014.

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