quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O LENÇO

Por: José Mário Leite
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

A recordação mais antiga que tenho é do lenço da minha avó, Sofia Amélia, negro, da cor da sua viuvez, prematura, sofrida e escura, igual ao da minha outra avó, Felicidade do Céu, também ela viúva desde jovem, determinada, paciente e perseverante. Cobria-lhes a cabeça desde que se levantavam, cedo, até que se deitavam, fatigadas de dias de canseira, sem descanso. Era substituído, episodicamente por um xaile, também negro, nos dias de maior frio.

Menos austero, mais leve e de cores menos escuras era o lenço da minha mãe quando protegia a cabeça das inclemências solares, nos verões abafantes da Vilariça e que, quando mais fino, normalmente em tons cinzentos e de seda, tomava a forma de véu, tapando-lhe completamente o cabelo, quando, respeitosa e devotamente participava na missa dominical.
Garridos eram os lenços das raparigas da minha aldeia quando, na primavera pululavam no meio das searas verdes, mondando, no verão, formigavam nos campos e nas eiras, ajudando na segada e na malhada e, no outono, escorregavam pelos valados das vinhas cortando uvas e carregando-as, à cabeça, em cestas de vime. Também elas cobriam os cabelos com os retângulos coloridos, dobrados em triângulo, nas cerimónias religiosas e os faziam descer para os ombros nas romarias e, não raro, os atavam com destreza e arte, ao pescoço adornando-lhes o seio e emoldurando-lhes o rosto.
Com o tempo, foram caindo em desuso.
Havia também os lenços das mãos, de cambraia, pequenos e bordados, os das mulheres, de algodão, em cores fortes de xadrez, ou brancos, os mais finos, quando a serviço de mãos masculinas. 
– Oh homem, olha o lenço! Já ias sem ele… – recordo, com saudade, a recorrente recomendação da minha mãe, para o meu pai.
Também esses foram já desalojados pelas carteirinhas de plástico com meia dúzia de lenços de papel, de usar e deitar fora.
Na minha juventude, terminavam os anos sessenta e floresciam os setenta, voltou a moda dos lenços de pescoço. Comprei um, roxo, de seda que, invariavelmente, dobrava, com cuidado e empenho, por dentro do colarinho da camisa domingueira, como preparativo indispensável  para o passeio pela cidade de Bragança, na saída semanal permitida aos alunos do Seminário Maior de S. José, na Avenida do Sabor. Nada resta dele, para além desta recordação esbatida. Nem um fragmento, nem um registo escrito, nem tão pouco qualquer fotografia. Perdeu-se na transferência para o Colégio de S. João de Brito, do outro lado do Fervença, juntamente com a evolução da tendência da vestimenta.
Dos tempos do Seminário, guardo a lembrança da referência a um outro lenço, lendário, místico, sagrado. O célebre Lenço de Berenice ou, por outras palavras, mais conhecidas, o Véu de Verónica onde ficou gravada a imagem de Jesus Cristo quando, carregando a sua cruz, a caminho do Gólgota, enxugou o rosto ensanguentado no alvo pano de linho que lhe foi oferecido pela condoída mulher de Cesareia.
De cariz igualmente religioso são as referências a outros lenços femininos. Na altura apenas estranhos, apesar de, curiosamente, ter a mesmíssima origem dos que quer a minha mãe, quer as mulheres suas contemporâneas e anteriores usavam, obrigatoriamente, quando transpunham a porta principal de qualquer igreja. Refiro-me, obviamente, ao lenço árabe que cobre, na íntegra, os cabelos das mulheres muçulmanas. Tão natural me parecia o uso do véu católico, como inusitado o que rodeava a face das seguidoras de Maomé. 
Com o tempo habituei-me a desvalorizar, do meu ponto de vista, a significação rígida que lhes subjazem, levando-os à simples condição de opções pessoais, legítimas e respeitáveis.
Há, historicamente, um lenço com grande significado para a minha terra, Torre de Moncorvo. O lenço que, no primeiro quartel do século XVI, a moncorvense Violante Gomes, a mulher mais bela do reino, no seu tempo, usava na cabeça, com a imagem de um pelicano estampada e que lhe conferiu o cognome de “Pelicana” e que, igualmente, terá encantado o infante D. Luís de Portugal, filho d’El Rei D. Manuel I, o Venturoso.
Os lenços brancos no futebol, nada me dizem, por muitos que sejam e ainda menos pela intensidade com que possam ser brandidos. Mais impressionantes são os lenços acenados em Fátima, na Cova da Iria, não só pela grandiosidade admirável da plasticidade daquela singular imagem de milhares de asas brancas de paz a esvoaçarem, a rivalizar com um monumental e nunca visto bando de mansas pombas, mas também e sobretudo pelo gesto simples, quase rude, mas de uma fé que ignora limites, da maior parte dos crentes que demandam as imediações de Ourém, no décimo terceiro dia de todos meses entre maio e outubro. 
De entre todos os lenços, em concreto, de que tenho memória, há um com um significado pessoal muito especial. Comprei-o em Lisboa, onde fui em viagem de estudo de fim de curso e levei-o de presente à minha namorada de então, minha mulher, um ano depois, por saber ser do seu agrado tal adereço. 
Estas lembranças ocorrem-me, não de forma espontânea ou instintiva mas porque as evoco, de forma consciente e propositada.
Têm anos estas memórias e repousariam, tranquilamente, no sótão do subconsciente, adormecidas se não fosse o rumo que a minha carreira profissional tomou, desde há uns anos.
Em 2018, a convite da Administração, fui trabalhar para a Fundação Champalimaud, como gestor de ciência e dos ensaios clínicos. A minha ligação à Clínica, para além dos referidos ensaios, limitou-se ao acompanhamento e apoio aos projetos de investigação direta de alguns clínicos e de investigação translacional de cientistas, sobretudo da área do cancro. De resto era apenas uma convivência diária, cimentada e temperada pelos vários conhecimentos pessoais de alguns dos responsáveis operacionais e inspiradores científicos. 
Apesar da partilha de instalações, não são muitas as zonas de espaços comuns, com exceção do refeitório onde almoço com regularidade bem como a grande maioria dos cientistas, técnicos de laboratório, administrativos, quadro de enfermagem, médicos… e alguns pacientes. E é aqui que reside o gatilho que despoletou o fio das recordações e trouxe para o consciente quadros e imagens adormecidas pelo tempo e pelo desuso. 
Passam pela Clínica de Pedrouços muitos e variados doentes com muitas e diversas patologias. São mais frequentes os que padecem de cancro, nos mais diversos estágios da doença ou, felizmente, da sua recuperação. Sensibilizaram-me, desde o primeiro dia, e não deixaram de me impressionar, as mulheres que, imitando as que eu conheci na infância, na minha distante Vilariça, envolvem a cabeça com lenços, de cores variadas, algumas berrantes, outras discretas, com formas inventivas, de acordo com o gosto e disposição de cada uma delas. Os adornos têxteis, cuidadosamente enrolados sobre o crânio, ao contrário dos seus congéneres orientais não se destinam já a esconder o cabelo mas, pelo contrário, destinam-se, precisamente, a ocultar a falta dele. 
Obviamente que as portadoras destes enfeites não procuram, na sua maioria, chamar sobre si, qualquer tipo de atenção. Pretendem, nota-se, facilmente, passar despercebidas quando se aproximam do balcão do “self-service”, ou quando deambulam por entre as mesas, à procura de um lugar para, sozinhas ou com algum acompanhante (não me recordo de ter visto mais do que duplas), saborearem a refeição, pausada e refletidamente ou, tantas outras vezes, com alguma ligeireza, para regressarem aos quartos onde estão internadas ou às salas onde estão em tratamento mais demorado. 
Há uma miríade de sentimentos, de histórias, de passados, de dramas, de alegrias, também, e, igualmente, desilusões, anseios frustrações, expectativas, goradas umas, confirmadas outras, relações familiares e de amizade, vidas que se constroem e que se desfazem, por baixo dos panos coloridos e leves, de seda ou algo parecido e que transparecem em cada ruga, que se expressam em cada movimento muscular facial, que se escapam em cada olhar… 
São os olhos, precisamente, que mais impressionam.
Lânguidos ou despertos, tristes ou prazenteiros, serenos ou inquiridores, desfocados ou concentrados, displicentes ou empenhados, curiosos ou distraídos, trazem todos um mundo inteiro de esperança, de confiança, de crença.
Por trás de todos eles existe uma vivência única, uma família especial, uma existência complexa, uma realidade original, diferente de todas as outras.
Os distintos dramas são normalizados com um único objeto comum, que, em diferentes cores, padrões, tamanhos e arranjos é sempre um lenço e, com ele na cabeça, tudo fica diferente, tudo passa a ser possível. 
Não alegra tristezas desconhecidas, não elimina sofrimentos bem presentes, não ultrapassa duras etapas, mas restitui a beleza de um sorriso, aumenta a autoconfiança e resgata o encanto feminino, clareando os dias escuros e iluminando os ambientes mais sombrios.

José Mário Leite
, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia) e A Morte de Germano Trancoso (Romance) tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.

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