sábado, 23 de outubro de 2021

A solidão dos Números Primos

Por: Maria dos Reis Gomes
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

Partindo do conceito de número primo, inerentemente solitário – apenas divisível por si próprio ou por um, nunca fazendo parte de outros conjuntos – Paolo Giordano autor do livro A solidão dos números primos, desenvolve uma narrativa que nos fala da solidão, da necessidade de ser aceite, da culpa e da expiação. 
Li o livro avidamente, revivendo Histórias que foram passando na minha vida profissional e se encaixavam nos relatos explanados na obra. 
Apropriei-me do título para reflectir sobre as notícias que invadiram os meios de comunicação, nos últimos dias, e que dizem o seguinte:
Mulher que afogou o filho autista condenada a 10 anos de prisão.
“O Tribunal de Mirandela reconheceu que a arguida chegou a um estado de desgaste emocional e de desespero, agravado pela pandemia, e por isso condenou Fátima Martinho a uma pena bastante inferior ao limite da moldura penal”.
O tribunal defendeu que “falhou o Estado, a família e os vizinhos, nesta tragédia”.
A mulher com 53 anos, estaria sujeita a muito stress enquanto cuidadora do filho portador de “um síndrome de autismo grave e epilepsia”, o que lhe terá provocado um alegado estado de "burnout" (exaustão emocional).”
O acto, por si só arrepiante, leva- nos a pensar sobre o que levou uma mulher que tratou do seu filho durante 17 longos anos – a lidar com uma patologia de autismo severo e epilepsia associada – a uma situação de desespero, que culminou na tragédia já amplamente relatada.
Sim, estamos perante um caso de uma família monoparental que foi esquecida.
Repito as palavras que o tribunal proferiu, para justificar a sentença: “ … falhou o Estado, a família e os vizinhos nesta tragédia…”
Sim, falhámos nós, enquanto estado, porque não soubemos, em tempo útil, agir perante factos de que, tendo conhecimento, fizemos de conta que não vimos.

*
“O conceito de Estado-nação refere-se à forma de organização dos governos dos Estados Modernos e às organizações sociais que se estabeleceram em torno deles.”
Pressupõe-se, então, que as organizações deverão corresponder às necessidades dos cidadãos.
Pelo que também li, e me provocou alguma perplexidade, este jovem que vivia em Cabanelas–Mirandela, frequentava o agrupamento de Escolas de Vinhais. Estas localidades distam, entre si, cerca de 50 Km, o que corresponde a uma hora de caminho. Um dia de escola implica duas horas de transporte no mínimo. Todos os dias da semana. 
Como será estabelecer contactos com as famílias? 
Sabemos que o trabalho com pais é fundamental. E, quando diz respeito a crianças e jovens com Necessidades Educativas Específicas, é simplesmente indispensável. Os planos de intervenção deverão ter em conta as condições familiares e garantir a continuidade das estratégias delineadas. Nos encontros com pais e/ou cuidadores, para além do reforço de êxitos conseguidos [mesmo que simples], é suposto que se detectem sinais de desgaste, cansaço, desalento... É um trabalho que requer relações de proximidade.
Não é fácil a criação de ambientes para o atendimento dos casos mais difíceis numa comunidade educativa mas, é possível. Interessa é ponderar os prós e os contras de cada alternativa.  
A situação de pandemia trouxe transtorno a todos. Para os alunos “ditos normais”, houve a preocupação de responder com aulas online, de manter algumas cantinas em funcionamento, para garantir refeições a crianças e jovens que não tinham outra forma de se alimentar. E, para chegar aos idosos isolados [também eles um sector da população que exige uma atenção específica], criaram-se equipas itinerantes. 
Mas…, o que aconteceu aos alunos com Necessidades Educativas Específicas? Como foram acompanhadas as suas famílias, que maioritariamente e tal qual como os números primos, não fazem parte de outros conjuntos? Quem tratou de combater o isolamento de cuidadores exaustos e isolados, a desenvolver estados de “burnout”?
Continuamos todos muito centrados no nosso “mundinho”.
Espero, tão só, que esta mulher, agora condenada, encontre dentro de uma “prisão” estatal, a paz que nunca teve na sua vida aprisionada, a partir do momento que foi mãe e enfrentou sozinha uma maternidade tão sofrida.

Maria dos Reis, 22 de Outubro de 2021

Maria dos Reis Gomes
, nascida e criada em Bragança.
Estudou na Escola do Magistério Primário em Bragança, no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira em Lisboa e na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação no Porto, onde reside.
Sempre focada no ensino e na aprendizagem de crianças com NEE (Necessidades Educativas Específicas) leccionou no CEE (Centro de Educação Especial em Bragança). Já no Porto integrou o Departamento de Educação Especial da DREN trabalhando numa perspetiva de “ escola para todos, com todos na escola). Deu aulas na ESE Jean Piaget e ESE Paula Frassinetti no Porto.
A escola, a educação e a qualidade destas realidades, são os mundos que me fazem gravitar. Acredito que, tal como afirmou Epicteto “ Só a educação liberta”. Os meus escritos procuram reflectir esta ideia filosófica.

1 comentário:

  1. As organizações só fazem sentido quando conseguem colmatar as nossas falhas e dificuldades. Para isso existem. Caso não o façam... nem cumprem os objetivos para que foram criadas nem justificam a sua existência.
    A Maria dos Reis, faz-nos, com esta sua análise, refletir sobre os aspetos antissociais do individualismo e do egoísmo... o nosso "mundinho" como o apelida e bem. Obrigado.

    ResponderEliminar