Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, chama a atenção para os lugres Spinus spinus que se ouvem de passagem por quase toda a parte e aproveita para falar das outras formas de amar pássaros que não as dos birdwatchers, naturalistas, biólogos, conservacionistas.
Neste outono de 2021 têm chegado a Portugal grande números de lugres migradores, também conhecidos por pintassilgos-verdes Spinus spinus. Foto: Francis C. Franklin/WikiCommons |
Novembro 2021
“O pintassilgo verde é uma espécie de arribação em Portugal, que em certos anos aparece em relativa abundância, para faltar depois, por completo, anos seguidos” (Reis Júnior 1930). “Este conhecidíssimo passarinho tem quatro polegadas e três quartos de comprimento” (Anónimo 1872).
Em épocas boas, como é sem dúvida a deste outono de 2021, os lugres Spinus spinus ouvem-se de passagem por quase toda a parte, do norte ao sul, da raia ao litoral, só é preciso ter o ouvido sintonizado para os detetar. O que me espanta sempre é que estes pássaros pequeninos, apesar de darem ares de abundância (de tanto badalarem a sua passagem pelo ar), são relativamente difíceis de encontrar e de observar poisados. Mas piam e sabe-se que andam por cá.
Têm a forma dos pintassilgos e tantas vezes se misturam com eles nos bandos migradores que é natural que aos lugres também chamem pintassilgos-verdes (ou ainda pintassilgos-pretos). Têm outros nomes afetuosos, como rabequinhas (do som do canto), freirinhas (do capuz preto) ou canários-da-frança (de serem parecidos, de se guardarem em gaiolas, e de efetivamente chegarem do Norte).
As pessoas gostam de ter pássaros por perto, por vezes muito perto. Sabemos que há dois mil anos atrás os romanos já mantinham grande quantidade de pintassilgos e de outros passaritos em cativeiro. Os primos canários chegaram mais tarde, arrancados das ilhas homónimas e forçados a conquistar a Europa desde o século XV, daí expandindo-se em hordas pelo mundo (10 milhões criados na Europa e exportados para os EUA nas primeiras quatro décadas do século XX). Vítimas do seu canto encantador…
Mas a verdade é que há formas de amar pássaros que não as dos birdwatchers, naturalistas, biólogos, conservacionistas, enfim, que não são as nossas. Muitas delas antigas, profundas, enraizadas. Romances que vão de paixonetas que nem dignas desse nome são, a amores de sobressaltarem entranhas e de subtraírem o oxigénio ao ar, paixões assolapadas. Claro que só a nossa paixão é que vale, pensamos escorados de argumentos prenhos de ética e sustentabilidade. Os passarinheiros são desde há muitas décadas olhados de soslaio e mais recentemente muitas das suas atividades foram ilegalizadas (a bem da conservação).
Em 1872 imprimiu-se na Typographia do Futuro, em Lisboa, um Manual do Passarinheiro, assinado por “uma sociedade d’amadores”, autoria que esconde um naturalista passarinheiro anónimo, conhecedor e apaixonado. É um longo poema de amor.
Lugre. Foto: Imran Shah/WikiCommons |
Do pintassilgo-verde, diz-nos por exemplo o nosso autor desconhecido “…nas aldeias, se alguém tem a casa próximo de um ribeiro orlado de amieiros, basta pôr um lugre à janela, e um pau com varas enviscadas para se apanharem quantos se queira” (os lugres adoram amieiros e atraem-se uns aos outros com facilidade através dos seus assobios melancólicos).
Dantes, toda a rapaziada no campo apanhava pássaros, uns para manter, outros para comer. Homens já bem entrados contam-me histórias de como os pássaros representavam um entretém e uma rara oportunidade de provar carne, outros de como soltavam os passaritos ao fim de uns tempos na gaiola.
Mas deixemos o nosso Romeo anónimo prosseguir, já depois da caça: “A perda da liberdade aflige-o tão pouco [ao lugre], que entra logo a comer depois de apanhado, e no segundo dia já não se assusta se alguém se lhe aproxima da gaiola”. Ao que parece, os lugres são relativamente fáceis de domesticar e “conservando à janela a gaiola aberta, com a semente de papoula e de linho, espalhadas à entrada, voltam ordinariamente a ela, trazendo consigo novos companheiros”. Só mais um detalhe técnico: “…banha-se pouco, porque não faz mais do que mergulhar na água o bico para depois molhar as penas; mas é muito cuidadoso em sacudi-las. Parece um peralvilho, ocupado continuamente em paramentar-se” (confesso que tive que ir ver ao dicionário: peralvilho é um janota; paramentar-se: vestir-se com adornos).
No final do manual, o autor discorre sobre a ostentação de quem possui aves exóticas vindas do ultramar, mas que não sabe cuidar bem delas, deixando-as morrer e gastando fortunas para as substituir continuamente. E acrescenta: “cada um destes homens é apenas expositor da bonita plumagem dos seus pequenos prisioneiros. Pelo contrário, os homens que sabem sentir, os admiradores do belo, esses rodeiam-se de passarinhos indígenas, excelentes cantores, lindos de formas e de plumagem” (desculpem a intromissão na serenata amorosa, mas o itálico é meu).
“Os que ignoram o que é história natural, e nem mesmo sabem o valor da palavra ornitologia, escarnecem os que passam horas e horas a estudar o viver desses pequeninos entes…”. Pois é.
O género Spinus, o dos lugres, conta com vinte espécies, quase todas habitantes do continente americano; duas, contudo, vivem no chamado Velho Mundo; uma delas, de distribuição geográfica muito ampla, é o nosso pintassilgo-verde. Em geral os lugres são amarelos, esverdeados, pretos, cinzentos. Na Venezuela e na Guiana há um lugre-vermelho Spinus cucullatus resplandecente, irresistível; de tanto ser apanhado para uso como pássaro de gaiola está em grave risco de extinção. Há paixões que chegam a ser mortais.
Pintassilgos-verdes, eternos nómadas sem eira nem beira, vão comendo bagas e sementes aqui, debicando bétulas ali, mas sempre à procura de onde melhor frutificaram os amieiros da beira-rio. Bom ano este, de lugres e de outros “pequeninos entes” que desde o fundo dos tempos tanto aspergem de frescura a canícula, como iluminam os invernos de quem se deixa enfeitiçar.
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