segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Cantos transmontanos | Cancioneiro de Trás-os-Montes


Cantos transmontanos

Os cantos transmontanos constituem umas das mais profundas e originais expressões da música regional portuguesa.

Não iremos, nesta breve notícia, embrenhar-nos em considerações acerca da filiação ou influências, remotas ou próximas desses cantos.

Mas não há dúvida que, em múltiplas das suas feições, a música regional de Trás-os-Montes levanta perplexidades e interrogações que hão-de certamente apaixonar os estudiosos do folclore comparado.

É possível que estes vislumbrem nela ecos ou reminiscências de expressões e formas musicais pretéritas, medievalismos, exotismos, a Igreja, a Sinagoga, os Gregos, os Árabes, tudo o que forma, ou supõe formar, o protoplasma do homem português e da sua cultura.

Note-se a extrema severidade desta música, destes cantos, o seu carácter despido de todo e qualquer sentimento ou preocupação de «agradabilidade», o seu «desenfeitamento», a sua cor terrosa -, o que tão bem vai com a paisagem de linhas e volumes duros, ensimesmados, com o génio rude, inteiro, da gente transmontana e o patriarcalismo dos seus costumes.

No seu lirismo sóbrio e penetrante, certos «romances» cantares – como Malhaninha de S. João, Valdevinos, Malva-malveta, o Bendito e outros cantos repassados de vozes, ancestrais, bem se pode dizer a expressão pura do homem transmontano, parcela do homem universal, nos seus momentos de funda identificação com o espírito da Terra.

Em traços breves, apontemos alguns

– cantos,
– hinos sagrados,
– cânticos de trabalho,
– poemas de amor e de morte,
entre os mais significativos do património musical do povo transmontano:

O Conde Ninho

(Também conhecido por Conde Nilo, Conde Aninho ou Conde Alcano).

É uma cantiga de segada (ou de ceifa). À maneira do rito litúrgico, as cantigas de segada cantam-se três ou quatro vezes ao dia: de manhã, à tarde e ao pôr-do sol.

A melodia é pentacordal (comum curioso ornato à segunda maior superior), alternando a terceira maior com a terceira menor. E pode supor-se, no seu carácter arcaico, protótipo de bom número de outros cantos que se encontram na região de Trás-os-montes.

Manharinha de S. João

Outro exemplo de romance (este de carácter religioso) utilizado nas segadas (11 horas da manhã).

A melodia desenvolve-se no âmbito de uma oitava distribuída por dois cantores:

– um pentacorde inferior confiado à voz masculina,

– e um tetracorde jónio superior (à guisa de resposta), confiado à voz feminina.

Agora baixou o Sol

Cantiga de «malhas», utilizada também como cantiga de segada. É um fragmento do romano conhecido por Madalena.

Primitivo pentacorde (com ornato à segunda menor inferior), constituído por dois curtos inciosos, confiados alternadamente aos dois cantores.

Viste lá o meu Amado

Fragmento de um auto da Paixão.

Trata-se de uma preciosa sobrevivência do canto litúrgico (salmodia e cantilena), na qual se é tentado a vislumbrar um embrião da Clássica forma dramática: recitativo-arioso.

Murinheira

Uma das mais típicas e saborosas danças trasmontanas (como o Passeado e a Carvalhesa). É acompanhada de gaita-de-foles, pandeireta e ferrinhos.

Dona Ancra

Belo romance talvez corruptela ou deformação sónica de Dona Ângela, romance vulgarizado em Trás-os-Montes e em Espanha, nesta conhecido pela designação de La novia del duque de Alba.

Deus te salve, Rosa

Encantador romance pastoril. A melodia em maior e de regular ritmo binário, semelha uma graciosa ronda infantil.

Faixinha verde

Canção de sabor e corte trovadoresco, usada em Tuizelo como cantiga de «malhas».

A melodia é um simples, mas elegante tetracorde dórico (que, descendentemente, por vezes, se transforma em jónico), com um ornato inferior na segunda menor – que, nas cadências inferiores, se converte em maior.

Li-la-ré

Originariamente decerto uma canção dançada. É utilizada para animar os compridos verões de Inverno.

Curiosa a alternação da melodia vocal, sincopada (copla formada de quadras soltas, e estribilho em interjeições) com o adufe (que não desempenha um papel acompanhado, mas sim solístico), à laia de ritornello instrumental.

Valdevinos

Bela melodia, fortemente vocalizada e de sabor um tanto exótico no seu cromatismo, distribuída por duas vozes. Filia-se no famoso romance de assunto carolíngio, também conhecido por D.Beltrão, que Garret considerava «mais bonito» na versão portuguesa do que na versão espanhola, intitulada De la batalla de Roncesvalles.

Malva-malveta

Belissímo espécime de primitivo canto tetracordal, iniciado pela voz masculina, com a resposta à 5ª superior pela voz feminina. É uma cantiga de «malhas» ainda usada em Tuizelo.

A mal-casada

Cantiga de «malhas» (romance).

O Perdigão

Cantiga de «malhas». Compõe-se de coplas e estribilho cantadas (com ligeiras variantes) com a mesma solfa: uma simples, mas intensa e luminosa melodia hexacordal do modo maior.

Galandum

Canção dançada da região mirandesa, de sabor profundamente arcaico. É acompanhada de tamboril, gaita de foles, flauta pastoril («fraita», em mirandês), pandeiro, pandeiretas, castanholas, conchas («carracas»), ferrinhos e assobio dento-labial.

Vinte e cinco

Um dos «llaços» ou figuras da Dança dos Paulitos*.

Começa por uma espécie de apelo do bombo, destinado a congregar os bailadores, os pauliteiros (em número de dezasseis), seguido da dança, executada instrumentalmente por gaita-de-foles, tamboril, bombo e castanholas, a que vem juntar-se o som seco da percussão dos próprios paulitos, atributo dos bailadores, numa curiosa e excitante polirritmia.

Muito espalhada nos concelhos de Miranda, Vimioso, Mogadouro.

*Dança dos Paulitos (em que uns querem ver uma dança pírrica, outros uma dança ligada aos ritos da fecundidade) é, fora de dúvida, uma das preciosidades folclóricas de Trás-os-Montes, embora com correspondência noutros povos.

Mineta

Versão transmontana de muito espalhado romance O Cego, também conhecido sob a designação de O rei e a pastora, Aninhas. Canção usada no trabalho de fiar o linho.

Encomendação das almas

Sobrevivência do antigo culto dos mortos, associada aos símbolos do Cristianismo, as «encomendações das almas» eram práticas religiosas muito correntes em várias províncias de Portugal. Actualmente estão em vias de desaparecer.

Destinavam-se, por meio de uma oração cantada, a aliviar das suas penas as almas dos pecadores condenados ao Purgatório.

Cantavam-se pela Quaresma, à meia noite, por grupos de habitantes da povoação, que percorriam as ruas e paravam nas encruzilhadas onde havia edículas de «alminhas», ou subiam aos pontos altos e daí, em voz lúgubre, faziam suas súplicas e «encomendações».

A súplica era feita não em coro mas, sim, por um homem ou por uma mulher.

Carvalhesa

Uma das três danças típicas do termo de Vinhais, composta de quatro figuras e acompanhada por gaita-de-foles e ferrinhos.

Ró-ró

Canção do berço, de ritmo verdadeiramente embalador. Letra em dialecto mirandês.

Redondo

Dança pastoril, executada alternadamente em «fraita» e gaita-de-foles.

Dá-la-don

Graciosa e ingénua cantilena de «abaular», isto é, género de diálogo cantado entre os pastorinhos que comunicam entre si de um monte para o outro.

Fonte: Guia de Portugal, organizado por Sant’Anna Dionísio, V volume (Trás-os-Montes e Alto Douro), editado pela Fundação Calouste Gulbenkian (texto editado e adaptado) | Foto retirada de: “O Douro”, Manuel Monteiro

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