segunda-feira, 28 de março de 2022

Viagem ao Parque Natural de Montesinho: Lá no cimo, a tocar o céu

 Entre urzes e bosques de castanheiros e carvalhos, passeio pelo parque natural do Nordeste Transmontano, com posta mirandesa, fumeiro e mel à mesa

Aldeia de Varge

Encontramos Isidro Rodrigues em Aveleda, uma das aldeias que integram o Parque Natural de Montesinho, onde há mais de duas décadas este professor de Filosofia recupera as máscaras de lata, queixo e nariz bicudos, usadas na Festa dos Rapazes, a 25 de dezembro. “Cada careto tinha a tradição de fazer a sua própria máscara, mas a forma original estava a perder-se”, conta o artesão, vestido com um casaco feito de tiras coloridas e um cinto com chocalhos, na varanda de uma casa antiga onde montou o atelier e no qual se pode comprar as máscaras (a partir €30) ou aprender como se fazem. Em placas de latas de tinta usadas, Isidro, 52 anos, desenha os contornos dos olhos e da boca, perfurando-as de forma tosca com um martelo. Só ali tem “umas 200 máscaras de todas as cores” (o vermelho e o preto predominam). Umas com dentes, outras com cornos de animais ou raízes.

As máscaras da Festa dos Rapazes, recuperadas por Isidro Rodrigues, o professor-artesão

Mesmo que, em Aveleda, vivam apenas 60 pessoas, com mais de 65 anos, e que, na última Festa dos Rapazes [ritual ligado à passagem da adolescência para a fase adulta], só tivesse aparecido uma dezena, o professor quer “cristalizar ao máximo esta tradição antiga”. São estes e outros costumes que vale a pena conhecer nesta região do Nordeste Transmontano (75 mil hectares), na parte norte de Bragança e de Vinhais, às portas de Espanha, onde vivem 80% dos mamíferos do nosso país, constituindo um ecossistema único. Neste lugar – que integra a Reserva da Biosfera Transfronteiriça Meseta Ibérica e é território de veados, corsos, javalis e do lobo-ibérico, feito de bosques de carvalho-negral, castanheiros, urzes e estevas –, são também as gentes que habitam as aldeias e cultivam os campos, um património precioso.

Em Aveleda, Gilberto Ferreira dedica-se a fazer navalhas e facas artesanais

Ainda nem saímos de Aveleda e, junto à fronteira com a aldeia de França (outrora, o nome confundiu muito boa gente que julgava estar a emigrar para o estrangeiro), Gilberto Ferreira dá-nos a conhecer as navalhas e facas artesanais feitas a partir da madeira de carrasco, do bucho ou das hastes de veado que os machos largam na primavera, quando termina a época de reprodução. Autodidata com 40 anos, aprendeu a cutelaria por carolice. “Em Trás-os-Montes, é típico andar com uma navalha no bolso. Quem não a tem não come presunto”, brinca. O negócio baixou com a pandemia, mas, na loja que abriu ao lado da oficina, há navalhas para todos os gostos – de mato, caça, remate –, além de facas de cozinha, com lâminas de aço damasco ou carbono (os preços vão dos €10 aos €1 100, a mais cara, feita de marfim).

Uns quilómetros adiante, assim que se entra em Varge, todos param para fotografar a velha fonte decorada com a imagem de um careto alusiva à tal Festa dos Rapazes. Daí que, em 1994, quando José Manuel ali abriu o único restaurante da aldeia, não lhe poderia ter dado outro nome senão O Careto. As carnes, o fumeiro e o bacalhau grelhados nas brasas, à vista dos clientes, são as especialidades desta casa procurada por portugueses e espanhóis que atravessam a fronteira situada a pouco menos de 20 quilómetros. “Precisamos de atrair mais gente”, atira Mário Gomes, presidente da União das Freguesias de Aveleda e Rio de Onor, que se juntou ao almoço. “O turista vem à procura da paisagem e da gastronomia, mas também da cultura local.” Por isso, espera que a Rota dos Moinhos e dos Lameiros que há de inaugurar em maio, a atravessar nove moinhos de água entre Portugal e Espanha, possa levar mais visitantes à região.

A NATUREZA MANDA

Os moinhos de Varge e parte da biodiversidade do parque

Desde 2016 que o biólogo Duarte Cadete se divide entre Lisboa e o Parque Natural de Montesinho, onde diz ter encontrado “um ecossistema ancestral” e a melhor “coexistência das gentes locais com a fauna silvestre”. A partir de Rio de Onor, onde abriu a Dear Wolf para dar formação e estudar a maior densidade de lobo-ibérico cinzento da Europa, organiza caminhadas interpretativas e sessões de observação de veados, corsos e lobos, ao nascer e ao pôr do sol. Em cada passeio, diz, mais importante do que ver os animais (o que nem sempre acontece) “é educar para a preservação desta biodiversidade”.

António Sá dá a conhecer a biodiversidade e o modo de vida das populações, em passeios guiados

O mesmo tem proclamado o jornalista e fotógrafo António Sá, que, desde finais dos anos 80, visitava o Nordeste Transmontano e, há 11 anos, se mudou com a família de Espinho para a aldeia de Lagomar, pela possibilidade “de viver na região do País que melhor representa a sazonalidade”. Em 2019, abriu um alojamento turístico (os Bétula Studios) e organiza passeios personalizados (os Bétula Tours) para dar a conhecer a biodiversidade e o modo de vida das populações. Porque uma coisa está ligada à outra: “Os carvalhos são o ecossistema mais emblemático, e os castanheiros representam uma atividade económica importante da região. Tudo tem uma importância grande em termos de manutenção da fauna. A própria carne tem este sabor porque é gado que pasta em lameiro. Depois, há os cogumelos e o mel…” Nos passeios, realça “a importância da manutenção destes ecossistemas na qualidade dos produtos que chegam à mesa”.

A posta de vitela no restaurante O Abel

E não precisámos de ir muito longe para o comprovar. Estamos a meio da semana e, ao jantar, o restaurante O Abel, em Gimonde, tem sala cheia. Basta olhar para as mesas para constatar que a posta à mirandesa está no topo dos pedidos. A carne é temperada com uma mistura de especiarias (tal qual como fazia a Dona Clóris quando abriu o negócio com o marido, Abel, nos anos 80) e grelhada na brasa, agora, pelos três filhos que tomam conta da casa. E se a refeição terminar com o pudim de castanha (dos castanheiros da região), fica mais do que provada a importância de manter esta biodiversidade.

Em Gimonde, Elisabete Ferreira dedica-se ao pão transmontano

A poucos metros do restaurante, os fornos alimentados a lenha da Pão de Gimonde – a padaria leva o nome desta aldeia conhecida pela beleza da ponte velha, de onde se observam os ninhos de cegonha, os lameiros junto ao rio e as casas transmontanas – começam a laborar pelas 11 da noite. Elisabete Ferreira, 44 anos, gere o negócio iniciado pelo tio-avô nos anos 60. Formada em Gestão de Empresas e habituada à padaria desde miúda – “nas férias de verão, os meus colegas estavam na praia, mas a minha areia era a farinha”, diz –, sonhava “tirar o pão de Gimonde da paróquia”. E conseguiu-o. Moldados à mão, feitos com massa mãe e leveduras naturais, os pães de trigo transmontano (24 horas a levedar, “para ter mais aroma e menos açúcar”), de centeio (com cereal de Trás-os-Montes) e de sementes encontram-se um pouco por todo o País, e não só. “Ainda hoje hão de ir para Inglaterra. Já os enviámos para os Estados Unidos da América e para França”, afirma.

SABORES DA TERRA

A aldeia comunitária de Rio de Onor

Em Rio de Onor, onde chegamos depois de uma noite bem dormida na belíssima Casa do Rio, o dia amanhece frio (a noite bateu os zero graus). Nada, porém, “que se compare a outros tempos”, contam-nos pelas ruas daquela aldeia comunitária que partilhava os campos agrícolas com a espanhola Rihonor de Castilla, província de Zamora. “Antigamente, as águas do rio [Onor] ficavam tão geladas que se podia andar com um carro de bois em cima”, recorda Domingos Fernandes, 77 anos, já depois de ter acendido a salamandra no café da associação cultural e recreativa, onde se costumam reunir à conversa os cerca de 30 habitantes. Sobre as tradições da aldeia raiana, muito se aprende numa visita à Casa do Touro, erguida no mesmo sítio onde se guardava o boi comunitário, ou num passeio pelos caminhos de pedra – a pé ou de bicicleta e tuk-tuk elétricos gratuitos. Mas nada como ouvir as histórias de quem lá vive, como a de Jürg Baldesberger, que há 22 anos largou a Suíça para ali se instalar. Além de se dedicar ao restauro de casas, abriu, em setembro passado, o restaurante vegetariano O Palheiro, onde cozinha lentilhas, massas, bolonhesa de soja e raclette.

Aldeia de Montesinho

Seguimos para Montesinho, a aldeia que dá nome ao parque natural, com as suas típicas casas de pedra com flores nas varandas e por onde passa o percurso do Porto Furado, um dos muitos passeios pedestres que se pode fazer por aqui. Os (poucos) moradores que encontrámos andam felizes com a única criança ali nascida em outubro passado, filha de um casal de músicos, a violinista Matilde Loureiro e o pianista neozelandês Jun Bouterey-Ishido. Naquele dia, não os apanhámos por lá, mas por causa desta conversa conseguimos arrancar um sorriso a Dona Teresa, 74 anos, dona do único café na terra: “Foi Deus que nos mandou a menina.”

Com 900 colmeias, Luís Correia é um dos maiores apicultores do parque

Entre estradas ladeadas por bosques de castanheiros, agora despidos de folhas, Vilarinho é a próxima paragem. Os castanhos no outono e o colorido das giestas na primavera dão à paisagem outro deslumbramento, mas a sua beleza é ímpar em qualquer altura do ano. A fotografia de um urso gigante dá as boas-vindas na aldeia, e é Luís Correia, o gestor de empresas tornado apicultor há sete anos, que nos explicará a razão: “Em 2019, um urso-pardo vindo da Cantábria atacou as minhas colmeias [tem cerca de 900] e roubou-me 50 quilos de mel. Em vez de ficar a lamentar-me, brinquei com o incidente.” O que distingue o mel de Montesinho, explica, “é a floração, a flor do castanheiro, que tem menos frutose, e as meladas do carvalho”. A cresta (recolha na colmeia) decorre em setembro e, em 2021, a Apimonte conseguiu oito toneladas a partir de processos artesanais. Na loja, Luís vende mel de castanheiro (premiado com duas medalhas de bronze nacional), multifloral, extrato de própolis, favos e pólen. E também serve café, mas não conte encontrar açúcar para o adoçar – só uma gota de mel!

O fumeiro da Dona Elisa, em Vinhais

Não terminamos este passeio sem provar os enchidos de Trás-os-Montes. E haverá melhor poiso do que Vinhais, situado no outro extremo do parque, na autointitulada capital do fumeiro? Batemos à porta de Elisa Augusta, a mais antiga produtora da região, 92 anos de vida com uma memória de fazer inveja. É a filha, Maria Emília, 58 anos, que dá continuidade ao negócio, cujo segredo reside na criação própria de porco bísaro, “alimentado com abóbora, batata, castanha…” na Quinta de Riassós. Alheira, salpicão, chouriça, butelo, feitos de modo artesanal com o fumo da lenha de castanheiro ou carvalho, sabem mesmo ao que esta terra dá. E dá tanto.

GUIA DE VIAGEM


VER

Bétula Tours > Lagomar > T. 273 326 290 > a partir de €65

Dear Wolf > Rio de Onor > T. 93 967 6600 > a partir de €30

COMPRAR

Apimonte (mel) > Vilarinho > T. 96 701 4820 (loja e alojamento)

Máscaras d’Aveleda > Aveleda > T. 92 449 1484

Navalhas Gilberto Ferreira > Aveleda > T. 93 894 7491

Pão de Gimonde > EN218, Gimonde > T. 273 333 969

Fumeiro Dona Elisa > Quinta de Riassós, Vinhais > T. 93 944 8684

COMER

O Abel > R. do Sabor, Gimonde > T. 273 382 555 > seg-sáb 12h-14h30, 19h15-22h, dom 12h-14h30

Restaurante O Careto, em Varge

O Careto > Varge > T. 273 919 112 > ter-dom 8h30-23h

DORMIR

Casa do Rio > Rio de Onor > T. 96 280 9655 > a partir de €85

A. Montesinho > R. Coronel Álvaro Cepeda, Gimonde > T. 273 302 510 > a partir de €57

Aldeia Rio de Onor, Montesinho
Publicação original aqui.

Sem comentários:

Enviar um comentário