sexta-feira, 15 de abril de 2022

À truta os franceses chamam «perdiz de água doce»

 «(…) deu conta da balsa que as águas ao confluir faziam e surpreendeu, fulgurando suas escamas lantejoiladas, duas boas trutas palmeiras»

Aquilino Ribeiro


A truta é da família dos salmonídeos

Os nossos rios ‘truteiros’ despovoaram-se. A truta que agora comemos é de ‘aviário’

Teleósteos perciformes da família dos salmonídeos, as trutas não são todas iguais.

Nas águas (doces) portuguesas vivem três espécies que, prescindindo do latinório, respondem vulgarmente por

– truta-saeira (truta salmonada quando a carne adquire cor rosada),

– truta-arco-íris (oriunda da Califórnia e introduzida na piscicultura europeia no final do século XIX)

– e, mais rara, a truta-marisca.

Exigem águas límpidas, frias, agitadas, com fundo pedregoso e sem salinidade, por isso preferem a parte superior dos rios e ribeiros do Norte.

Muito ágeis, saltam com facilidade os obstáculos, são carnívoras e a sua ementa abrange peixes pequenos, larvas aquáticas, moluscos, crustáceos e insectos.

O retrato da truta por Aquilino Ribeiro

Aquilino Ribeiro, o mais «truteiro» dos escritores portugueses, tirou-lhes assim retrato:

«A truta salta. Tudo nela é ímpeto e brusquidão. Também nada mais bonito do que os seus ademanes, batido por um raio de sol reflexo o seu manto esplêndido. (…)

Ao mais pequeno bulício, ei-la que relampeja numa fuga eléctrica e instantânea e se refugia nos seus abrigos entre raízes ou sob rocha.

A sua motilidade, as suas digressões, os seus disparos pávidos, com aquela fulguração de jóias às costas, é das mais bonitas coisas da cinemática animal. Em gastronomia prevela a tudo» (O Homem Nave, 1955).

Os franceses chamam-lhe a «perdiz de água doce», sem dúvida por causa da sua agilidade, da sua rapidez em deslocar-se e fugir perante o importuno.

Sem dúvida também porque, a exemplo da perdiz, caça de carne e sabor dos mais delicados, a truta pode ser considerada como o mais fino dos peixes do rio, o mais delicado, o de mais fácil digestão.

Um célebre gastrónomo francês de século XIX, Charles Monselet, chega a dedicar-lhe uns versos (de pé-quebrado) que começam assim: «Dans une ágape bien construite/ Envisagez, assurément/ L’ apparition de la truite/  Comme un joyeux événement».

Trutas abafadas e à moda de Boticas

Do receituário tradicional português salientam-se as trutas abafadas da Beira Alta e as transmontanas trutas à moda de Boticas.

A história destas últimas está ligada às invasões francesas.

O povo cozinhava as trutas fechando-lhes a barriga depois de as rechear de presunto; os gauleses rapinantes pensavam que o peixe não era estripado e então, enjoados, desprezavam-no.

Ardil que também houve que engendrar em relação ao vinho. De meramente escondido debaixo da terra, veio a resultar em processo de envelhecimento, correspondendo ao funéreo epíteto de «vinho dos mortos».

«Quem for a Boticas, coma um peixinho desses e beba-lhe ‘vinho dos mortos’ em cima. Pelo que houver, fico eu» – assegura Miguel Torga.

Infelizmente tudo isto é passado.

Os nossos rios «truteiros» despovoaram-se, pelas causas do costume, e deixou de ser possível obter uma verdadeira truta selvagem pescada à linha.

A truta que agora comemos, tal como a perdiz (para voltar ao símile gaulês), é de «aviário». A  truta tornou-se uma treta.

Guia da Semana – EXPRESSO – Edição Norte

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