quinta-feira, 21 de abril de 2022

Dalguns rios jorra sangue e dos olhos brotam lágrimas

 Há uns anos, nos nossos tempos de lazer ou de trabalho, íamos aos rios para tomar um banho refrescante, numa água corrente, suave, límpida, cristalina… ou, então, servíamo-nos dessa mesma água para lavar, regar, cozinhar… enquanto uma lúcida transparência nos deixava ver a grande variedade de peixes nos movimentos (e até, às vezes, parados), ora bruscos, ora leves, que a sua vivência, naquele paraíso, lhes exigia. 
Era a altura em que também apetecia caminhar pelos trilhos que a Natureza nos oferecia, respirando um ar puro, ouvindo as vozes dos animais que aí habitavam, ouvindo os riachos a correr ao despique, admirando o vento que refreava os seus ímpetos, cheirando o aroma das flores, sentindo uma calma e uma paz que nos confortava!
Era a altura em que, nesse caminhar, sempre que chovia, a mesma Natureza nos dava o abrigo da fraga; e nos enxugava, ao oferecer-nos, logo de seguida, um sol radioso que, penetrava por aberturas das cúpulas das árvores, balanceadas pelo vento.
Era a altura em que se descobriam os ninhos dos pássaros, onde os pais se revezavam para não deixarem ao abandono os filhos que neles criavam com muito cuidado e carinho.
De onde em onde, topava-se com a toca do coelho ou da lebre, o ninho da perdiz, os carreiros das formigas e da raposa, e até pegadas de algum lobo…
As abelhas, em rápidos ziguezagues, e batendo freneticamente as asas, pareciam ameaçadoras, se bem que, não sendo incomodadas, lá seguiam o seu caminho…
Depois, quando, para os mesmos fins, íamos a alguns rios, já não havia água cristalina, nem peixes parados ou a volutear, enquanto o cheiro que vinha desses mesmos rios era tão insuportável que obrigava a afastarmo-nos deles – uma tristeza! 
Era a altura em que as fábricas começaram a despejar os seus detritos para pequenas linhas de água que iam encontrar-se nos rios (e, sobretudo, despejá-los diretamente para as ribeiras e os rios), infetando aquelas águas cristalinas, cujo enlace se manifestava pelo cheiro que emanava delas.
Era a altura em que, por isso, os peixes começaram a definhar e a morrer, em que todo o ser vivo que aí medrava deixou de existir… e tudo se foi decompondo para o desaparecimento da vida! O sol aí não brilhava, pois as emanações que se levantavam de tal imundície não deixavam que as penetrasse para levar-lhe um raio de conforto! A chuva que as penetrava não era tão forte e afoita com que fizesse alterar aquela situação.
A rara vegetação que junto nascia e medrava era toda retorcida, sem forma e totalmente descolorida. Rastejava, no meio dela, a cobra. Ratos e ratazanas, depois de se banharem naquela pestilência, entretinham-se a escavar a terra das margens, dando origem a grandes, desolados e labirínticos caminhos subterrâneos, onde faziam os seus ninhos para descansarem e procriarem!
Os campos em redor deixaram de ser cultivados. O povo, depois de se ter queixado junto de quem lhe podia valer, acabou por abandoná-los e por resignar-se à sorte que lhe coube, porque as fábricas que continuavam a laborar, também continuaram os despejos.
Até que chegou a altura na qual, só de longe olhamos para alguns. Porquê? Porque, hoje, nalguns rios, não corre água límpida ou mesmo suja! Mas apenas sangue misturado com lágrimas! Um sangue de tal forma vivo que torna vermelhas as lágrimas dos que choram!
Na verdade, a montante desses rios, começou indiscriminadamente a destruição de tudo o que vivia e de tudo o que fora construído: florestas, animais, habitações, abrigos, centros culturais e de saúde, instituições de ensino, fontes, culturas, centros recreativos, fábricas… e milhares de mortos e feridos (muitos deles inocentes)! A fome, a sede, e a angústia tornaram-se insuportáveis para quem tem sobrevivido a tanta desgraça!
O sangue dos mortos substituiu, pois, a água dos rios. E as lágrimas são daqueles que perderam a família e os seus bens, mas continuam a resistir à barbaridade que originou tanta desgraça!
E termino com o título deste artigo: Dalguns rios jorra sangue e dos olhos brotam lágrimas!

Manuel António Gouveia

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