terça-feira, 31 de maio de 2022

A Despedida

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

O dia estava límpido e temperado. Daqueles dias claros, depois da chuva, em que se conseguem divisar quilómetros, nas poucas áreas das cidades em que se consegue discernir o horizonte.
O local, o campo do repouso final, com os retângulos de mármore ou granito cuidadosamente alinhados em grande extensão para um lado e para o outro.
Uma tumba específica, recente, de granito comum, sem grandes ornamentos, mas completamente nova. Na cabeceira, apenas a fotografia de um homem na casa dos quarenta, moreno de cabelo curto e barba aparada. Como epitáfio apenas o nome e as datas de nascimento e morte, sem saudades, dores ou sofrimentos. Apenas assinalado o local onde depositaram a concha vazia que havia sido aquele homem.
A mulher aproximou-se. Era morena, cabelo castanho forte, pelos ombros e de estatura pequena, de aspeto nervoso. Envergava uma t-shirt branca sem estampagens e umas calças de ganga clara que terminavam em sapatilhas brancas, salpicadas de lama. A roupa folgada pouco conseguia disfarçar os peitos fartos e as ancas bem torneadas, mas pela ausência de maquilhagem e de cuidado em salientar as formas, via-se que não tentava causar impacto nos demais… ou já não se preocupava.
Ela ajoelhou-se sobre a pedra tumular e limpou com os dedos as gotas de água e pó que estavam sobre o esmalte colorido que exibia o rosto sorridente.
— Não podia deixar de vir despedir-me. — Começou ela sem rodeios e esboçando um sorriso triste. — Se calhar não volto aqui. De certeza que não, tão cedo.
Brincou com os dedos sujos de limpar a fotografia, espalhando o pó cinzento e molhado pelos restantes.
— Não vou dizer que não terei saudades. — Recomeçou. — Que não vou sentir falta de ouvir a tua voz logo pela manhã, ou sentir o calor do teu abraço antes do pequeno-almoço. Acho que até sentirei falta das sonoras palmadas com que agraciavas as minhas nádegas que tanto dizias gostar.
Sentada e de olhos fechados, empurrou as mãos entre as pernas numa memória voluptuosa que lhe causou um arrepio.
— Eras tão carinhoso no início. — Observou, perscrutando cada pormenor do rosto na minúscula fotografia. — Nem consigo precisar quando foi que as coisas começaram a mudar. Quando foi a primeira sapatada com força excessiva, o primeiro beliscão a deixar marca ou mesmo o primeiro torção dos mamilos a fazer-me gritar de dor. Acho que foi uma coisa gradual, a que eu fui correspondendo com gritos mais ou menos excitados e joelhadas e dentadas que te pareciam excitar ainda mais.
Ela apertou ainda mais as pernas e soltou um suspiro profundo.
— Sim o sexo era ótimo. — Ela sorriu com a recordação, enquanto deixava correr uma lágrima pelos olhos semicerrados. — Não só quando passávamos horas abraçados a devorarmo-nos mutuamente, mas também depois, quando as coisas começaram a ficar mais brutas e depois violentas. Quando acabávamos os dois esgotados, transpirados, maçados e pisados. — Limpou as lágrimas. — Não percebi quando as coisas passaram de sexo excitado e apaixonado para espancamentos e quase violações. Quando deixei de ter força para te combater e as nossas lutas desiguais acabavam comigo subjugada e forçada onde quisesses, o tempo que precisasses.
Tirou um pacote de lenços de papel do bolso e limpou as lágrimas, assoando-se em seguida.
— Mas não foi isso que me quebrou. — Ela continuou a calma retrospetiva. — Nem mesmo quando a violência começou a extravasar a cama e a visitar-me quando chegavas a casa meio embriagado. Quando te excitavas em dar-me dolorosos socos nos braços ou nas costas, como represália do pontapé nas canelas com que eu respondia ao puxão de cabelos e ferradela canina nos ombros com que me cumprimentavas.
Emitiu um suspiro entrecortado e coçou o cabelo com força, quase como se o tentasse arrancar.
— O que me doeu — Continuou ela. — foi saber que tudo aquilo que agora havia entre nós, que eu achava ser amor descontrolado, não passava de sexo bruto e sem respeito. Fiquei devastada quando soube daquela cabra com quem te consolavas antes de vir para casa… encher-me de porradas.
Limpou a foto da campa com o lenço de papel.
— Eras um cabrão bonito. — Concedeu a mulher. — E sabias fazer bom sexo, mas a partir daquela altura, tudo aquilo que para mim era amor e que suportava por isso, transformou-se em violência sem respeito e numa humilhação. Isso tinha de acabar.
Ela exibiu um sorriso e olhou a fotografia com amor.
— Se pudesse ressuscitar-te, fá-lo-ia. Faria amor contigo novamente e enlouquecer-nos-íamos com pancadas e dentadas. Na cama, no chão, no balcão da cozinha... como antes, não importavam as nódoas negras nem as dolorosas marcas de dentes… seria tudo como antes…, mas… antes que voltasses para a aquela cabra, envenenava-te outra vez.
Ergueu-se, sorriu com bonomia e colocou um beijo nos dedos que depositou demoradamente no rosto do homem que amava. Em seguida voltou costas à campa e aproximou-se do casal de polícias que a aguardavam pacientemente a alguns metros de distância. Estendeu os braços e deixou que a algemassem.
Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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