terça-feira, 28 de junho de 2022

Férias de 1989 - 4. Os emigrantes

 De Grijó, onde nos acoitamos para estes dias de sossego, até Macedo de Cavaleiros, sede do concelho, são apenas cinco ou seis quilómetros por uma estrada que se pode dizer boa pelos padrões do Nordeste. Nos arredores de Lisboa, pelo contrário, uma tal estrada mereceria àqueles malandros daqueles alfacinhas, quando muito, o nome de estradão. Tudo é relativo, pois. Ocorre-me aqui uma frase de Camilo Castelo Branco: «Não há país como este, em que tanto se respeite a poesia do passado, no tocante a estradas de Trás-os-Montes.» Vem no “Santo da Montanha”. Camilo sabia do que falava. Já assim era então e assim continuou e há-de continuar por muitos anos e bons, graças a Deus e aos ministérios. Cascais é Cascais, Trás-os-Montes é Trás-os-Montes, ponto final. Parágrafo.
 Seja como for, para mim, afeito a viajar na minha terra com a alegria e o espírito curioso com que Garrett viajou na dele, a estrada é bem boa. E são só, como disse, meia dúzia de quilómetros.
 Isso quer dizer que, quando o sossego fosse demais — ‘o que é demais é moléstia’, diz-se por aqui — e atingisse os limites insuportáveis da pasmaceira, me deveria sentir tentado a dar uma saltada à vila, para um pouco de movimento e agitação que, por contraste, me ajudasse a valorizar melhor a tranquilidade da aldeia. A verdade, porém, é que só lá vou para fazer compras, e apenas das coisas que não me é possível encontrar em Grijó. Bem pelo contrário, fujo de Macedo como o diabo da cruz. E se há terra que eu ame entranhadamente, é Macedo, acreditem: lá passei a infância e a juventude, e parte da idade adulta. A minha memória é a lugares e pessoas de Macedo que está atada com os laços mais tenazes, que nada nem ninguém jamais deslaçará. E todavia, em Agosto, fujo de Macedo a sete pés. Porquê?
 É que Macedo em Agosto fica impossível, senhores! Fervilha de emigrantes ruidosos, que fazem inflacionar os preços, atropelam a gente no mercado, nas lojas, bancos e repartições, nos atravancam a rua com as suas voitures vistosas, nos atroam os ouvidos com o seu bárbaro e estridente linguajar. 
 Este último malefício é-me particularmente molesto. As madamas então, mais do que os messiús, são muito dadas a exibir o seu francês, de cambulhada com português quando o francês não dá para mais. A avaliar pela qualidade do português, o francês deve ser letal.
 Juro que ouvi num supermercado de Macedo esta conversa entre duas madamas que lá andavam por entre as prateleiras, afadigadas nas compras:
 – “Je ne me rappèle pas comment s'appele” aquela iauga pra botar nas batarias das biaturas... – diz uma, enervada com a amnésia.
 – Será 'stralizada? – aventa a outra.
 – “Buàlá”! – sanciona a primeira, satisfeita, e lá parte à cata da iauga 'stralizada nas prateleiras do supermercado.
 (Ponto de ordem: a água requerida para a função não é a esterilizada, mas sim a destilada.)
 Referirei ainda outro episódio, a que não assisti, mas cuja veracidade me garantem.
 No banco, uma madama está ao balcão, a inteirar-se dos movimentos da conta e dos juros. No chão pousou um saco plástico, de que emerge a cabeça contrariada duma galinha viva, atada de pés e asas, mas que mesmo assim forceja por se libertar. Como o estrebuchar da ave a incomoda, vai-a admoestando, sem tirar os olhos do extracto de conta que o funcionário do banco lhe mostra:
 – “Arrête, poule!”
 A galinha porém não se aquieta, e dali a pouco torna a madama, num crescendo de impaciência:
 – “Arrête, poule!”
 E, como “la poule n'arrête próprias”, acaba por gritar, em cólera:
 – Carvalhos te recontracosam-na pita, qu'assim m'está a tchatear!
 Consta que a galinha assim já entendeu, e ficou muito quietinha dentro do saco. Virtudes do vernáculo!
 Descontando as vezes em que me irrita esta algraviada presunçosa, sinto-me tentado a ser indulgente. Pois não é verdade que é gente que nada teve no passado, e que hoje tem quase tudo, incluindo duas línguas em vez de uma só? Que admira que usem o francês como quem usa um brinquedo? Que admira que queira agora “épater le Bourgeois” quem toda a vida foi “épaté” e justamente pelo “Bourgeois”? Que diferença é legítimo encontrar entre o emigrante que vem de França a falar françuguês e o brasileiro de torna-viagem que vem do Brasil a pavonear o sotaque melado do Português tropical?
 Os emigrantes são insolentes, incómodos, barulhentos? Serão, alguns deles, não nego. Mas ponho-me às vezes a cismar que tremenda força civilizadora não podia ser esta hoste que regressa a Portugal todos os Agostos, se fosse capaz de assimilar, lá nos países onde labuta, os hábitos de limpeza, de cortesia, de pontualidade, de respeito pelos outros — numa palavra: a educação cívica de que tanto se fala agora em Portugal e que tão pouco se fomenta —, e se depois, em férias, fosse capaz de transmitir tudo isso pelo exemplo a quem cá ficou e tão carecido está.
 Aqui atrás, ainda andei uns tempos a cismar que os emigrantes, para além da óbvia utilidade das suas remessas, poderiam ter esta utilidade civilizadora adicional. Mas confesso que perdi definitivamente essa fé no dia em que vi uma madama entrar pela ria de Mira até quase ao limite de ter pé e, com toda a sem-cerimónia, desatar a lavar os longos e sujos cabelos com “shampoo” ordinário, daquele que se vende em frascos de litro, ali mesmo onde banhistas nadavam os calores desse Verão.
 “Buàlá”!

(Conclui amanhã.)

A M Pires Cabral

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