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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

A ARGANA

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
             
 - Zé! Ó Zé!
              - Entre quem bem lá.
              - O teu no ´stá?
              - Não. Ah! És tu, Fernando?! – Disse a Celeste abrindo a porta.- Foi p´ra Bal Joanas, apanhar uns catchutchos, mas no debe tardar munto, por que nem seq´era m´renda lubou! Inda foi por i armar os ferros! 
              Fernando olhou para o Sol. Faltavam dez minutos para as onze.
              - Atão diz-le q´a minha malhada ´stá marcada p´rás quatro. 
              - Aixe!! Q´hora mais boa!!!
              - A gente no ´scolhe... A malhadeira é que manda.
              - ´Stá bem. Bai descansado q´eu lá le darei o recado.
              Fernando virou à esquerda e foi avisar o “Conçalves”, que morava perto dali. O mesmo recado e o mesmo entendimento.
              Desceu novamente a rua para ir a casa da Isabel “Patuleia”. Entretanto, viu o Zé dos Tchibos ao cimo da rua do meio, a cavalo no burro com uma saca meia cheia de melancias e de catchutchos na frente, com um chapéu de palha de abas largas na cabeça.
              - Já´bisei a tua. É às quatro.
              - Larga …!! A hora do prumo ! – Reclamou o Zé.
              - Somos deze e mais o meu catraio, mas esse noconta.
              Hã, hã … dizio que sim! Trabalho de menino é pouco, mas quem o perde é louco. E mais a mais, o teu rapaz faz ber a alguns arincuns que ganham a jeira por inteiro! O qu´abonda é a genica.
              - E inda por i Amélha, a filha da Zabel. ´Stá mei´apalabrada.
              - O Grabiel tamãe bai?
              - Eu roguei-o e ele dicho que sim. 
              - Atão s´ele for, podes contar co´Amelha. Ali anda raposa na capoeira – disse o Zé que sabia do interesse do Gabriel na Amélia.
              - Em menos de duas horas demos conta daquilo.- Disse o Fernando para o tranquilizar.
   - No há-de haber nubidade. Banha mais p´ró ano. P´rá semana tamãe quero ber se faço a minha.
             - Conta comigo.
              Antes das quatro já todos se encontravam na eira do Sr. Elísio. Reuniram-se à sombra da meda, cujo chão fora previamente varrido e limpo de ervas. O Fernando ia dando as instruções:
              - O Grabiel, qu´inda gosta de s´incarrapitar ós ninhos e d´ir às móras, bot`ós molhos da med´abaixo – sempre cos toros p´ra baixo, p´ra no dares cabo das ´spigas, oubistes? O Rosinha abondós ó Catrineta que os mete na boca da malhadeira. Eu e o Luciano abondemosios ó Rosinha. O meu rapaze – o Hélder de nove anos – fica nos bancelhos e põe-nos num monte.
              - P´ra que quer os bancelhos, meu Pai?
              - Ora, ora! P´ra strumar- respondeu-lhe o Acácio. - E alguns despois de metidos em auga, inda dão p´ra´tar outra beze.
              - Tu, Acácio, ficas co ti Gaspar nos sacos do cereal. Tande-me munto coidado co eles, no me deixendens cair ninhum, caratchos. O Zé fica na palha co a Zabel e a Zulmira fica na moinha. Botazia p´raquele canto, ó descontra do carro do Sabino. E bós botendes a palha p´rá li, ó deslado do palheiro do Sr. Manel da Cardanha, que no stroba e fica mais a jeitos de carregar - disse indicando o local. 
              - A minh´Amelha tamãe birá. Só de caso bier, pode ficar na moinha coa Zulmira.
              - Bá, no bos enterteidens. Bamos lá qu´o ti Castro já acabou e a 
malhadeira  já ´stá por nossa conta – disse o Luciano.
              - Ó Catrineta, tãe-me munto coidado co ela; essa é a “assassina “.
              - No há-de haber nubidade, se Deus quiser – respondeu-lhe benzendo-se.
              - No na impapes, mas tamãe no na deixes passar fome.                
              Aquela malhadeira que já fora comprada em segunda mão pelo Francisquinho da Gouveia, era conhecida no concelho pela assassina, porque há uns três anos, em Urros, um homem escorregou e comeu-lhe uma perna e no ano passado, na Lousa, o “Bretcheiro”, ficou sem um braço. Era a luta entre o homem e a máquina: uma luta desigual, sem compaixão, sempre com os mesmos derrotados.
              O uso da malhadeira era recente. Até há uns quatro anos atrás, a malhada ainda se fazia com o mangal (ou malho) nas eiras particulares, mas  de uso comunitário,  que existiam na aldeia ou nos montes, aproveitando uma laje, por vezes de pequenas dimensões. Aí malhava-se essencialmente o centeio, parente pobre do trigo, mas que dominava em quantidade. O trigo exigia terrenos mais férteis e fundos, que normalmente eram escassos e utilizados para o renovo, as batatas e as hortas. Era um trabalho que exigia resistência física e muita destreza, porque tinha que haver sincronismo entre todos e o cuidado para não bater no malhador da frente. (Para homens de barba rija, como eles diziam).
              O calor não perdoava: estavam num dos seis meses de inferno; os outros seis eram de Inverno. Aquele calor que se puséssemos a mão numa pedra ficava lá a pele e que permitia aos ferroviários assar as sardinhas na linha do comboio e punha a bailar as ondas de calor. Mas por mais intenso e torturante que fosse o calor, esses Homens e Mulheres eram mais fortes e invencíveis. Nada os derrotava: nem a fome e a miséria material. Era gente que estava habituada a fazer das tripas coração e a enfrentar todos os demónios com a coragem única que herdaram dos Deuses. A palha estava seca, quebradiça e áspera como, aliás, era desejável, para o grão se soltar mais facilmente dos casulos da espiga; picava como alfinetes. O barulho da malhadeira com o cheiro a óleo queimado e a massa lubrificante aumentava mais uns graus à já insuportável canícula.
              Mal se ouviu o característico grito de guerra do Rosinha: “molhos à malhadeira “ e assim que entrou o primeiro molho, começou a azáfama. A malhadeira, com as suas mandíbulas metálicas e insaciáveis, engolia vorazmente cada molho que o Catrineta lhe enfiava pela ganhó abaixo, abertos e sem vencelho, que já lho tinha tirado o Rosinha e atirado para junto do Hélder. As mulheres tinham passado a tarde do dia anterior a fazer os vencelhos (feitos do melhor colmo) para atar a palha e borrifavam–nos de vez em quando para os manter húmidos. Era um trabalho de muita pressão: nada podia falhar. Não havia um segundo a desperdiçar, pois se um falhasse afectava o trabalho dos outros. Cada um cumpria escrupulosamente e com orgulho as suas tarefas. Aliás, todo o trabalho de cada um era escrutinado por todos. Ai daquele que fizesse uma arada torta ou que limpasse mal uma oliveira, ou podasse erradamente um vinha; teria dificuldades em arranjar jeiras e sujeitava-se a um coro de críticas nos adjuntos – abertas ou veladas. Que o diga o “ Ti Alberto Seixas”, que não só passava sempre com as cargas tortas, quase a cair, como também sempre com as calças ao fundo das pernas, presas por um cordel. A maneira como se carregava um carro de cereal era uma oportunidade de puxar pelos galões e olhar de alto na taberna e exibir a sua mestria perante os demais. O orgulho de passar pela aldeia com uma carrada de quarenta pousadas, com o carro a “cantar” e os molhos sem darem de si, ou com os burros carregados de nabiças ou de milho e com as cargas direitinhas, fazia parte da presunção que era exigida e ensinada de pais para filhos. Mas no meio destas rivalidades e até de ódios de morte, sobrevivia a solidariedade. O ai de um era a dor de todos; a entre ajuda era espontânea. Ajudavam-se uns aos outros a troco do “cartilho d´azeite “do garrafão de vinho, da cesta de batatas, dum “cabo de cebolas”, ou à torna jeira. Sabiam que quando a miséria ajuda a miséria, esta não pode ser maior; só pode amenizar a carência de todos. Não havia “QRENS” nem nenhum “Quadro Comunitário de Apoio”: o único “Comunitário” que havia era a solidariedade espontânea e sincera, que já vinha enraizada desde o berço.
Eram homens que tinham a alma maior que o corpo.
              Tinham apenas dois sacos cheios quando chegou a Amélia para consolo do Gabriel, que apesar dos seus dezoito anos, era bastante infantil: ainda ia aos ninhos, aos tralhões, às amoras e nadar para a pioca, no Ribeiro dos Moinhos. Ficou de tal maneira contente que já deitava os molhos abaixo de qualquer maneira. Logo o Fernando lhe gritou:
              - Ó Grabiel, caracthos. Bota-mos molhos c´os toros p´ra baixo, seu catanudo.
              - Calma e alma no Brasil, que Portugal é nosso – disse no seu sorriso infantil, de catraio, ainda.
              A correia que ia do motor à roda maior do corpo da malhadeira, contorcia-se toda, parecendo uma cobra a esgueirar-se para um abrigo. De vez em quando, com a dilatação pelo calor, saltava para desespero de alguns e de alegria para outros. Outras vezes, quando o Catrineta – com um lenço tabaqueiro na boca e no nariz e com uns óculos à Gago Coutinho – queria molhar a garganta, metia-lhe propositadamente dois molhos seguidos; o motor começava a engasgar-se e lá saltava a bendita correia. A paragem “acidental” e providencial servia, então, para alguns darem uns belos golos no garrafão ou na bota espanhola. Para voltar a trabalhar, um tinha que dar à manivela,enquanto outro lhe “dava de fumar”. Outra correia saía dessa engrenagem para outras roldanas que por sua vez accionavam todas as peças: a trituradora, os crivos e os peneiros vibratórios que separavam a palha e a moinha do grão. Tal como o organismo humano, encaminhava o alimento para o estômago e aí digeria-o e separava-o em diferentes substâncias: a palha, a moinha e o grão. A moinha caía mais próximo do chão, do primeiro tabuleiro e por cima, vinha a palha aos empurrões. O grão era encaminhado por um corredor de madeira lateral até aos sacos, cuja boca estava atada à volta da saída. Assim, o grão caía directamente para os sacos que se amontoavam por ali perto. Era um regalo ver toda aquela sacaria cheia, hirta, alinhados e encostados uns aos outros, parecendo um exército em parada. O cereal em grão era o símbolo do fim de um ciclo de canseiras, de mal dizer da vida, de horas arrancadas ao descanso e ao quente dos cobertores de papa no Inverno, ainda noite escura. Era uma série interminável de etapas, até o grão chegar à tulha: a primeira decrua, a segunda decrua, o entravessar, o estrumar, espalhar e enterrar o estrume, agradar, semear, assucar, aricar, mondar, segar, atar, fazer os rilheiros, acarrar, fazer as medas na eira, malhar, acarrar o grão para atulha, a palha e a moinha para o palheiro valgo, restolhar, enfim… até se transformar em alimento da vida ou em corpo de Cristo, embora Cristo não tivesse aparecido para dar uma mãozinha. Quando caía um pedaço de pão ao chão, beijavam-no e comiam--no e era pecado pô-lo na mesa virado ao contrário. Não admira que o considerassem sagrado. Todos sabiam de cor e salteado a ladainha:   

              “S. Vicente t´acresente;
              “S. Marcos te lebede;
              “S. João te faça pão.
              “ Nós a comer e Ele acresecentar, tudo isto Nosso Senhor pode fazer.
              “ Em nome de Pai, do Filho e do Espírito Santo.

              Defendiam-se do sol tórrido com os grandes chapéus de palha centeia; alguns traziam um lenço tabaqueiro por baixo do chapéu e outros atados ao pescoço, por causa do suor. As mulheres usavam lenços floridos amarrados por dois nós, logo abaixo dos queixos por cima do chapéu de palha. Calçavam meias de algodão até por cima dos joelhos, presas com ligas de elástico e quase todas calçavam socas, compradas na feira dos oito ou dos vinte e três em Moncorvo. O suor escorria em bagas grossas e o único remédio era limpá-las com o “ lenço das mãos” ou o “lenço d´assoar” ou com as costas das mãos calosas, à falta daquele; mãos essas onde já nem as silvas, os cardos e os abrolhos conseguiam penetrar na pele rugosa e curtida pelo frio e pelo calor! 
              A malhadeira, pintada de amarelo ovo na parte de madeira e de vermelho ferrete nas partes de ferro, era constituída essencialmente por duas peças: o motor e o corpo propriamente dito, separados e unidos pela correia de transmissão. Tinha uma tabuleta que dizia: “ S. Romão do Coronado”. O motor, com quatro rodas de ferro, assentava no chão em quatro barrotes de madeira, com um entalhe de meia-lua, nos quais encaixavam perfeitamente as rodas.
            Quando a altura da meda já permitia tirar os molhos a partir do chão, Gabriel desceu e foi para junto da Adélia, a ajudá-la na moinha.
              Ao passar pelo Fernando, com dois molhos nas mãos, perguntou-lhe:
              - Ó ti Fernado! Inda le bota p´rá i uns sessenta alqueires!
              - Bô?! ´Stou a contar p´ra riba d´oitenta, caratchos!
              Mas o pior eram as mãos que já se estendiam, pedinchonas: o pagamento da décima na “Bila”, a côngrua do padre, a avença do barbeiro, a renda do lameiro, a maquia do moleiro, o livro dos assentos no “soto”…  
            Lá diz o “Padre-nosso do Moleiro” na versão da Beira Alta:

            “ Tira-te para aí, taleigo
               Que me pareces um saco
               Um te tiro, outro te rapo
               Outro pró burro, porque está fraco
               Tira-te daí, pra esse canto
               Senão, inda te tiro, outro tanto
               E se não tibesse contas a dar
               Nem o atilho havia de entregar”.
        
Ou então, na versão minhota de Padornelo:

              “Venhas embora meu saco
                 Três maquias t´eu rapo;
                 Uma por te trazer; outra por te moer
                E a outra para o meu burro comer
                Vem a minha mulher 
                E tira o que ela quer;
                Vem a minha Maria 
               E tira a sua maquia.
                
                Vem o meu criado:
                Este pão ainda não está maquiado,
                E, se não fora por me envergonhar,
                Até o baraço te havia de maquiar “

        Mas podiam tirar-lhes tudo, que continuariam íntegros e fiéis aos valores da solidariedade e da honestidade e sempre com um sorriso na cara, porque, como alguém disse, “a lavoura é a arte de empobrecer alegremente”. Podiam obrigá-los a serem pobres, mas nunca os tornariam em miseráveis.
              Quando teve oportunidade, cantou-lhe baixinho a “canção do bandido”:

                                                A flor d´amendoeira
                                                É a primeira do ano
                                                Tamãe tu, minha cachopa
                                                És a primeira qu´eu amo.
             
              Adélia riu-se e só não corou porque já estava mais vermelha com o calor do que um tomate maduro.
              De repente levantou-se um”polborinho” e pôs tudo em alvoroço. A moinha e a palha rodopiaram num cone de sucção ascendente, que varreu praticamente a eira. A saia da Adélia, que era rodada, subiu acima dos joelhos, deixando ver um pouco da coxa branca e roliça. Logo o Gabriel lhe disse blandiciosamente:
“ Anda, bentinho amigo, alebanta-la saia inté ó imbigo” .
               - Ó balha-te Deus! És mesmo tchabasco – disse-lhe Adélia com um sorriso doce.
               - Ó Luciano! Atira p´ra lá uma nabalha aberta, p´ra bermos quem é a bruxa. – Disse o Fernando.
               - Brinca, brinca. Olha q´a Tia Claudina contou-me qum dia fizo isso e despois do polburinho acabar, aparceu uma poça de sangue. Diz que logo a seguir oubiu uma boz: “À catanuda, sua malbada, que já me desarranjaste o destino.” E logo a seguir deu dois urros e foi p´ra casa. – Disse o Catrineta, com voz de assustado.
               - E ela biu quem era? – Perguntou o Fernando.
               - Biu e sabe quem é, mas nunca mo dicho. E p´ra que saibas, inté há mais duas cá no pobo.
               - Bô?! E atão quem são?
               - No no sei, mas garante q´essas duas as biu ela e a Tia Germana, no Céu ´steja, ali pr´á encruzilhada.
              Depois do último molho ser digerido, os homens carregaram os sacos no carro de bois e as mulheres varreram e limparam a eira com as vassouras compridas e com os “engaços”, deixando tudo limpo para o próximo, que seria o Orlando da Justina. O cumprimento das regras e o respeito pelos outros era algo de natural e espontâneo, fazendo parte da sã convivência social. Não tinham lições de motivação nem cursos de produtividade nem de auto estima; o exemplo vinha-lhes de cima: dos pais, da família e de toda a aldeia. Era uma vida comunitária, onde raramente havia dinheiro. Trocavam a força do braço pelo que não tinham. Não sei se seriam melhores ou piores; eram diferentes, educados para a entre ajuda, para a solidariedade, no respeito pela Natureza, pois sabiam bem (na pele) que a terra só dá o que a Natureza deixa. Ficavam felizes com as coisas simples da vida: matar a sede numa fonte de água fresca e pura, em pleno monte, colher um figo de manhã cedo, ainda orvalhado, comer um tomate na horta ou um melão, sentados na “b´lanqueira” do tanque da rega. Não eram educados para serem os melhores entre os melhores, mas serem iguais entre iguais. Ensinavam-lhes desde o berço para não lutarem contra a natureza e para não caírem quando o vento soprasse contra. Aprendiam a ser fortes e a erguerem-se, não havendo lugar para lamechices. A qualidade mais importante era o carácter e nunca permitirem que fosse beliscado. Tinham uma religiosidade pura, genuína e profunda, - não se distinguindo muitas vezes do paganismo – e não uma religiosidade calculista, interesseira e exibicionista. Era o divino e o profano num entendimento profundo. Ficavam agradecidos por cada dádiva da Natureza, em cada vindima, em cada malhada. Sabiam que a felicidade é simples, feita de coisas simples. Sabiam também que a vida era como a sombra de uma árvore; nunca está do mesmo tamanho nem no mesmo sítio: depende da posição do Sol e que, portanto, é relativa. Davam valor ao pouco que tinham, porque esse pouco era tudo quanto possuíam e por isso o respeitavam religiosamente.
              Iam “tirar uns mordos” a casa do Fernando e mais tarde viriam buscar a moinha e a palha. 
              Quando chegaram, já a mulher- a Rosário- tinha tudo pronto, para não perderem muito tempo.
              - Mal o Rosinha viu o “stendrete”, gracejou: 
               - Alegrai-bos ó tripas, qu´aí bãe o binho.
              Havia um lavatório de ferro e um gomil de loiça, com flores azuis e amarelas. Lavaram-se quase todos na mesma água, passando as mãos pela cara e pelo pescoço; se sujos estavam, sujos ficaram.    
              Uns sentaram-se no chão, outros nos “motchos” de três pés e outros ainda em baldes e bacias de lata viradas ao contrário. Em cima de duas tábuas, cobertas por uma toalha de pano aos quadradinhos azuis e brancos, apoiadas em duas arcas, havia bacalhau frito envolto em ovo, um presunto ainda a mais de meio, queijo de ovelha e de cabra, melão, chouriça, salpicão, azeitonas, cebola e duas sêmeas de centeio. Ao lado, no chão, havia uma “pitchorra” de barro com água fresca da Ferrada e um cântaro de lata, cheio de vinho. Rosário pediu à Zulmira para lhe acender uma fogueira com o molho de vides que estava encostado à parede e lhe assasse umas postas de bacalhau.
              - Ó despois dá a pele Àdelha, p´ra ber se le crescem as tetas – disse o Rosinha.
              - No preciso disso, que já as tanho bem grandes. Que a coma a Zulmira, qui as tãe piquenas.              
              - Ó Rosário! Dá um púcaro à parte aqui ó Catrineta, qu´elanda co´as boqueiras – disse o Rosinha, que era o mais “adbertido e o mais “pândigo”.
              - E tu, ó “mestre da banda” – respondeu-lhe com um cachação.
              O Rosinha ao fugir de um pontapé que o Catrineta lhe atirou, tropeçou e caiu, partindo a cantarinha de barro.
              - Ó balha-me Deus, balha! `Scaqueirastens-m´a b´tchorra toda, que já tinha a idade do meu Heldre! – Lamentou-se a Rosário.
              - Que l´esperas tu?! Brincadeiras d´homes, coices de burro – brincou a Zulmira.
              -No t´imborreças. Eu merco-t´oitra no Felgar – garantiu-lhe o Catrineta. – Mas quem n´habia de pagar era aqui o fogueteiro, o cara de cu à paisana.
              - Atão pega lá um, a ber s´apanhas a cana. 
E saiu de imediato um “morteiro”.
              - Abençoado cu que dá de cumer ó dono- disse a Isabel.
              - E de buber ós amigos – respondeu - lhe prontamente.
              Convém aqui referir que o Rosinha era conhecido como o “fogueteiro”, graças aos seus portentosos traques e que há já algum tempo fora promovido a “ Maestro da Banda do Peido”, uma banda que ele formou com alguns garotos da aldeia, da qual eu também fazia parte. 
Ensaiávamos às sextas-feiras ao fim do dia, nas escadas da “Ti Julha Pitó Ruça “. Nessa casa tinham vivido antes o Ti Abel Carvalho - um lavrador de fama – e a Tia Constança e que por essa época viviam no Brasil. Tinham embarcado há uns anos com dois filhos; um com cerca de três ou quatro anos e outro ainda bebé. Sentávamo-nos pelas escadas acima, em jeito de anfiteatro com o maestro em pé, ao fundo, de batuta na mão, dando as instruções. Um dia, ia eu todo contente a descer a rua da Lameira quando o Ti João Vergueira me perguntou:
              - P´rondé que bais, ó Lizabel?
              - Bou ensaiar p´rá banda do peido – respondi eu cheio de orgulho.
              - Atão leba lá estas duas cantiguinhas p´ró maestro.
              E mimou-me com duas bojardas de respeito e lá fui eu ainda mais contente.
        - Bá, carrega-le p´ra baixo – insistia o Fernando com o Acácio, para ver se o via alegre.
              - Caratchos! Queres-m´emborratchar?! Olha qu´eu emborratcho-me, carai.
              - É l`ágora! E logo tu! Nem com dois cântaros! – Elogiou-o o Rosinha, sabendo que qualquer copito o deitava abaixo.
              Bá, afinfa-le – insistia o Gonçalves passando-lhe o caneco cheio.
              Bá, bamos lá. Comende bem e bubende milhor – carregava a Rosário – Imentes ´stiber por cumer, tchega p´ra todos.
              - Atão bamos lá a temp´rar as carnes – disse Acácio emborcando o caneco de uma só vez.
              - O pior é a Elbira, qu´i o imponta p´rá loje, p´ró pé das tourinas – galhofou o Gaspar.
              Riram-se todos, porque sabiam que às vezes acontecia. 
              - Ora bô, bô. Isso é porqu´assim  dromimos os dois milhor – defendeu- -se. Mas no faz c´má mulher do Ti Claudino, qui o obriga a trabalhar inté se cansar p´ra qui a deixe dromir descansada.
              - E só de caso t´apetecer, tens logo ali a tourina à mão – disse o Rosinha.
              - Atão… à falta de milhor…- ajudou a Isabel.
              - Por i já no seria a primeira bez – insistia o Rosinha.
              - Ó Rosinha! Isso não, caratchos – protestou.
              - Faça sol ou faça nebe, quem tem sede bebe – filosofou o Gaspar, maliciosamente.
              - E além do mais, mais atiçadela, menos atiçadela, semos todos girados da mesma maneira – disse a Zulmira.
              - Quando o burro tem fome, inté cardos come – reforçou o Gabriel.
              - Atão! Quando no há trigo, come-se santeio – opinou o Fernando.
              - Tu tamãe no fales munto. Tomaras tu azeite p´rá tua candeia – disse-lhe a mulher a brincar.
              - Aixe! Ó Fernado! Olhó que dixo a tua – disse o Acácio, tentando salvar a pele e desviar o alvo da paródia.
              - Deixó decer. Inté hoje nunca le faltou, co´a graça de Deus – disse envergonhado.
              Entretanto o vinho e a comida iam desaparecendo e o Gabriel não saía de junto da Adélia. Parece que aquilo pegava! A Isabel já tinha topado o passarão e mantinha-se atenta.
              - O qué que tens, mulher? No páras cos obos! – Perguntou o “Conçalbes “ à Isabel, que se coçava por todos os lados.
              - Oh…, são as catanudas das arganas, que s´enfiam por todo o lado! Rai´s palira!
              - Às bezes inté onde no debem – insinuou o Gaspar.
              O Rosinha ouviu a brincadeira e teve logo uma “ideia”.
              No ´stá mal pensada, não senhor. Tamãe ´stá bem apanhada – pensou a sorrir para si próprio.
              - Bom…já ninguém quer c´mer nem buber mais? – Perguntou o Luciano levantando-se de uma caldeira virada ao contrário.
              - Eu já ´stou sastisfeito – respondeu o Gabriel apalpando a barriga.
              - Atão bamos lá acabar as rabeiras, qu´ó despois inda tanho qu´ir buscar os bitelos ó lameiro.
              - Bá, bamos lá atão prestar agora contas ó Dibino.- Disse o Zé.
              - Anda tamãe coa gente, ó Rosário – convidou a Isabel.
              - Pudera eu, que bem ia com todo o gosto, mas co esta maldita bronquite asmática no posso apanhar poeira.
              - Dizem q´uma cebola fresca, grande, cortada às rodelas com duas colheres de mel e dois limões e meia tchícara d´açúcar mascabado e tomar uma colher três bezes ó dia, dizem que faiz munto bem.
              - Oh…Já tomei tanta cousa! Inté tchá de sabugueiro e romédios qu´o Senhor Doutor João me receitou e pouco ou nado milhoro.
              - Às bezes tamãe eu gostaba de ter asma – ironizou o Rosinha. – Mas ó Rosário! P´ra romarias e feiras, no há mulher com manqueiras.
             O humor e a amizade eram as armas secretas para estas gentes lidarem e ultrapassarem a miséria, de cabeça erguida. A fome era sorrateira e anunciava-se todos os invernos, que eram longos e, tal como o lobo, descia à aldeia em pezinhos de lã. No Inverno não há nada que comer no campo: nem figos, nem uvas, nem nenhuma espécie de fruta. Lá diz o povo: “ do cerejo ó castanho, bem meu amanho; do castanho ó cerejo, mal me bejo”. Mas a fome é como o frio: ajusta-se à medida do que temos.
              Voltaram só alguns homens e algumas mulheres à eira buscar a moinha e a palha. A labuta ainda não tinha terminado e era preciso descansar a consciência. 
              Um bando de rolas passou em movimento ordenado para os lados da Quinta Branca, em direcção a Sul, em sentido migratório, já o sol ia descendo sobre o cabeço da Lousa. 
              - Inté p´ró ano. Voltende cá p´ró ano, que bos hei-de cá ter um punhado de trigo – disse o Gabriel.
              - Agora são as rolas e o cuco que nos deixam … – disse a Adélia com alguma tristeza. – Q`alquera dia são as andorinhas.
              - Mas tamãe já debem ´star a tchigar os tralhões e eu tanho qu´arranjar as ratoeiras, qu´est´ano quero acaçar muntos, inté mais do có ano passado – disse o Gabriel entusiasmado. Amanhê já bou às aludras.
              - Qu´rendes saber o qué cas andorinhas disseram ós tralhões? – Perguntou a Isabel. – As andorinhas agora bão p´rás Áfricas e os tralhões bêm de lá. Atão, quando s´encontraram no caminho, disseram-l´os tralhões:
“ Ó andorinhas putas, fostens poucas e bindes muntas” E as andorinhas responderam-le: “ Adeus tralhões loucos, ides muntos e bireis poucos.”
 (Tudo isso porque, como as andorinhas são consideradas sagradas que, segundo reza a lenda, apagavam com as asas as pegadas do burrinho quando Jesus fugiu com os pais para o Egipto - e por isso ninguém as mata! – e ainda porque podem ninificar até duas vezes no mesmo verão. Já os pobres e saborosos tralhões não escapam aos algozes das ratoeiras das crianças e até dos adultos).
              - Tamãe ´stá bem respondido – notou o Fernando.
              Depois do carro carregado, vieram em rancho, com as forquilhas e as vassouras de piorneira ao ombro, mortos de cansaço e de sede.
             De repente, começou a Isabel a cantar em voz sofrida:
             
                             “ Já desce a neblina nos montes,
                                As folhas caem ao chão;
                                As águas soluçam nas fontes,
                                Atulham-se as arcas de pão.”

              Nos cânticos da missa, a Isabel sobressaía com a sua voz dolente e afinada e ninguém chegava aos agudos como ela. Era conhecida por isso como “ a rouxinola”. E nas noites de sexta-feira da Quaresma, quando já todos dormiam, estava sempre presente na “Encomendação das Almas”.

                                   “Acorda ó pecador
                                     Acorda não durmas mais,
                                     Olha que se estão queixando
                                     As almas dos vossos Pais.”

              Quando o Rosinha chegou a casa, perguntou-lhe a mulher:
              - Atão, a malhada foi boa?
              - Inda deu p´ra riba de oitent´alqueires. Nós no bamos ter tanto.
              - Ah, pois não. Aquela imbelga qu´o Fernado tem prós Carris é munto boa pró cereal.- `Stás com fome? – Perguntou-lhe a Esperança.
              - Era capaz de comer um caldito.
              - Atão bá. Santa-te qu´eu to lanço.
              Rosinha sentou-se no escano e começou por se coçar ligeiramente. Depois, enquanto comia o caldo, foi-se coçando mais amiúde, acabando por se coçar ostensivamente, mormente no rabo, mudando constantemente  de posição. Tanto se coçava que a Esperança lhe perguntou:
              - O qué que tens home, que no há bias d´acilhares?!
              - São o catantcho das arganas, que se metem por todo o lado. 
Tanho aqui uma mesmo enfiada no rabo e no há bias d´a tirar - disse em tom de queixume.
              - Atão amarra lá as calças e as ciroilas, a ber se ta tiro – disse a Esperança solícita.
              Com um enorme sorriso interior, baixou as calças e as ceroulas e pôs-se de rabo para o ar.
              - No bejo cá nada, home.
              - `Stá ´scuro! C´mé que queres ber assim? Alumia cá coa candeia.
              A mulher aproximou a candeia e continuava a não ver nada.
              - Oh! No tens cá argana ninhuma – disse desviando a candeia.
              - Tanho,tanho. Atão eu sinto-a. Ora traz cá a candeia mais um cibo e alumia mais ó perto.
              Quando a Esperança pôs a candeia mesmo em frente ao rabo, Rosinha soltou um daqueles morteiros tão forte, de “ fim de descarga”, que até lhe apagou a candeia. Riu-se como um perdido e a mulher soltou raios e coriscos, mas depois de se aperceber que tinha caído na esparrela, gargalharam os dois com vontade, até às lágrimas.
              - Ó rai´s te palira, que m´indrominas sempre – protestou a mulher no meio do riso.
              E é assim que estes Homens “Reais e Desconhecidos” bebem o suor da miséria com as lágrimas das arrelias e tentam, teimosamente, alcançar a felicidade sem nada pedirem em troca porque, como disse Torga, ” Nem a Deus se deve pedir nada de mãos vazias.”
              E eles nada tinham nas mãos, a não ser os calos.
                                  
Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
     Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
    Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
      No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
     Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
    Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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