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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

AS COISAS [...] — POR ONDE O PEIXE MORRE

 Pela boca morre o peixe, diz o adágio. Não é adágio de um só significado, este. Se fulano falou demais e dessa forma se deitou a perder, aplica-se-lhe. Mas se beltrano come imoderadamente e um dia rebenta duma indigestão, aplica-se-lhe da mesma forma. Claro que, se fôssemos ao fundamento lógico da comparação (e toda a comparação tem um fundamento lógico), só neste segundo caso faria sentido aplicar o ditado: que eu saiba, nunca uma indiscrição ou inconfidência deitou um peixe a perder. Mas a fome, a tal ‘pensão’ com que Deus criou os animais, no pitoresco dizer de Vieira, sim: essa o atraiu para a morte à ponta do anzol.
 E é desta morte pela boca que quero falar hoje aqui. Não a morte de peixes, mas de homens e mulheres. É que li agora mesmo numa respeitada revista americana que os conceitos dietéticos até aqui vigentes estão a sofrer uma remodelação, que é quase uma reviravolta de cento e oitenta graus. E uma reviravolta destas tem sempre algo de dramático, porque implica que o exercício de usos alimentares anteriores estava, a esta nova luz, errado: quantos terão sofrido e morrido em consequência disso? Nova luz, digo; o que não implica que amanhã não haja uma luz novíssima que ofusque a que agora desponta no firmamento das cozinhas e porventura reabilite a que tinha sido entretanto extinta. Mas já lá vamos.
 Segundo pois as novas evidências, apregoadas por reputados nutricionistas dos States, o perigo já não está no sal nem no açúcar, mas apenas nas gorduras; já não está no excesso de calorias, mas no excesso de proteínas. O cálcio já não é tão importante como se julgava e os hidratos de carbono são agora a nova panaceia alimentar. Parece que a refeição ideal é a que consta de muito pão, arroz ou massas, quase outro tanto de legumes e frutos, e pouco, muito pouco mesmo, de carne ou peixe e de produtos lácteos. A carne e o peixe, diz um dos novos oráculos do nutricionismo, devem ocupar um lugar lateral no prato; assim pouco mais ou menos o que costumavam ocupar os rabanetes na cozinha internacional: decorativo e pouco mais.
 O engraçado é que, num país de grandes liberdades e garantias como os Estados Unidos, esta nova filosofia alimentar está a conhecer inesperadas dificuldades de divulgação, porque um cartaz explicativo da importância relativa dos alimentos a esta nova luz se encontra retido até ordem em contrário pelo departamento oficial da tutela — julga-se que em consequência da pressão dos ‘lobbies’ dos lacticínios e das carnes! Espantoso! No paraíso do consumidor que a América apregoa ser, dados fundamentais para a educação alimentar da população estão a ser sonegados, porque causariam prejuízos consideráveis aos senhores magnates do leitinho e da chicha. Se isto se desse numa qualquer república das bananas, ainda vá que não vá. Mas na América, senhores!  «O brave new world!», exclamaria outra vez Miranda, se lhe fosse dado voltar a ter voz e lhe falassem disto.
 Não me cabe, naturalmente, comentar a bondade das novas doutrinas. Em matéria de comidas, sou um praticante anónimo: um pouco como o crente que frequenta o culto sem perceber nada de teologia. Isto é: utente, mas não especialmente bem informado. Mas não posso ficar indiferente a estas alterações, como não o ficaria o praticante a quem viessem inopinadamente baralhar os dogmas sobre que assenta a sua prática religiosa. 
 Este caso vem provar uma coisa que, em última análise, é assustadora: a precariedade dos conhecimentos do homem. Porque o que ainda ontem era apresentado como uma verdade irrefutável, é hoje uma inexactidão; e ninguém nos garante que amanhã não reapareça, reinvestida na dignidade de verdade recuperada. Entretanto vamos moldando os nossos hábitos alimentares por padrões transitórios, comendo coisas que devíamos evitar e evitando coisas que devíamos comer. Quantas doenças — quantos enfartes e quantos cancros, quantas diabetes e quantas osteoporoses, e assim por diante — foram causadas pela difusão de conceitos errados de dietética, se é verdade que pela boca morre o peixe? Até que ponto podemos confiar numa ciência que hoje nos proíbe as gorduras e amanhã se calhar chega à conclusão de que elas são essenciais e que quanto mais melhor? Uma ciência que ontem condenava sem remissão o sal, e hoje o desculpa, proclamando que afinal não é tão mau como o pintavam? Que ora aconselha, ora desaconselha os grelhados?
 No fim de contas, o organismo humano é uma teia de tão débeis equilíbrios entre hormonas e enzimas e eventualmente outros actores na micro-farsa química da vida, que talvez não valha a pena levar muito a sério as recomendações dos nutricionistas. 
 E sorte que Deus nos dê, para não morrermos, como o peixe, pela boca.

(Repórter do Marão, 31 de Maio de 1991)

A M Pires Cabral

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