Pela boca morre o peixe, diz o adágio. Não é adágio de um só significado, este. Se fulano falou demais e dessa forma se deitou a perder, aplica-se-lhe. Mas se beltrano come imoderadamente e um dia rebenta duma indigestão, aplica-se-lhe da mesma forma. Claro que, se fôssemos ao fundamento lógico da comparação (e toda a comparação tem um fundamento lógico), só neste segundo caso faria sentido aplicar o ditado: que eu saiba, nunca uma indiscrição ou inconfidência deitou um peixe a perder. Mas a fome, a tal ‘pensão’ com que Deus criou os animais, no pitoresco dizer de Vieira, sim: essa o atraiu para a morte à ponta do anzol.
E é desta morte pela boca que quero falar hoje aqui. Não a morte de peixes, mas de homens e mulheres. É que li agora mesmo numa respeitada revista americana que os conceitos dietéticos até aqui vigentes estão a sofrer uma remodelação, que é quase uma reviravolta de cento e oitenta graus. E uma reviravolta destas tem sempre algo de dramático, porque implica que o exercício de usos alimentares anteriores estava, a esta nova luz, errado: quantos terão sofrido e morrido em consequência disso? Nova luz, digo; o que não implica que amanhã não haja uma luz novíssima que ofusque a que agora desponta no firmamento das cozinhas e porventura reabilite a que tinha sido entretanto extinta. Mas já lá vamos.
Segundo pois as novas evidências, apregoadas por reputados nutricionistas dos States, o perigo já não está no sal nem no açúcar, mas apenas nas gorduras; já não está no excesso de calorias, mas no excesso de proteínas. O cálcio já não é tão importante como se julgava e os hidratos de carbono são agora a nova panaceia alimentar. Parece que a refeição ideal é a que consta de muito pão, arroz ou massas, quase outro tanto de legumes e frutos, e pouco, muito pouco mesmo, de carne ou peixe e de produtos lácteos. A carne e o peixe, diz um dos novos oráculos do nutricionismo, devem ocupar um lugar lateral no prato; assim pouco mais ou menos o que costumavam ocupar os rabanetes na cozinha internacional: decorativo e pouco mais.
O engraçado é que, num país de grandes liberdades e garantias como os Estados Unidos, esta nova filosofia alimentar está a conhecer inesperadas dificuldades de divulgação, porque um cartaz explicativo da importância relativa dos alimentos a esta nova luz se encontra retido até ordem em contrário pelo departamento oficial da tutela — julga-se que em consequência da pressão dos ‘lobbies’ dos lacticínios e das carnes! Espantoso! No paraíso do consumidor que a América apregoa ser, dados fundamentais para a educação alimentar da população estão a ser sonegados, porque causariam prejuízos consideráveis aos senhores magnates do leitinho e da chicha. Se isto se desse numa qualquer república das bananas, ainda vá que não vá. Mas na América, senhores! «O brave new world!», exclamaria outra vez Miranda, se lhe fosse dado voltar a ter voz e lhe falassem disto.
Não me cabe, naturalmente, comentar a bondade das novas doutrinas. Em matéria de comidas, sou um praticante anónimo: um pouco como o crente que frequenta o culto sem perceber nada de teologia. Isto é: utente, mas não especialmente bem informado. Mas não posso ficar indiferente a estas alterações, como não o ficaria o praticante a quem viessem inopinadamente baralhar os dogmas sobre que assenta a sua prática religiosa.
Este caso vem provar uma coisa que, em última análise, é assustadora: a precariedade dos conhecimentos do homem. Porque o que ainda ontem era apresentado como uma verdade irrefutável, é hoje uma inexactidão; e ninguém nos garante que amanhã não reapareça, reinvestida na dignidade de verdade recuperada. Entretanto vamos moldando os nossos hábitos alimentares por padrões transitórios, comendo coisas que devíamos evitar e evitando coisas que devíamos comer. Quantas doenças — quantos enfartes e quantos cancros, quantas diabetes e quantas osteoporoses, e assim por diante — foram causadas pela difusão de conceitos errados de dietética, se é verdade que pela boca morre o peixe? Até que ponto podemos confiar numa ciência que hoje nos proíbe as gorduras e amanhã se calhar chega à conclusão de que elas são essenciais e que quanto mais melhor? Uma ciência que ontem condenava sem remissão o sal, e hoje o desculpa, proclamando que afinal não é tão mau como o pintavam? Que ora aconselha, ora desaconselha os grelhados?
No fim de contas, o organismo humano é uma teia de tão débeis equilíbrios entre hormonas e enzimas e eventualmente outros actores na micro-farsa química da vida, que talvez não valha a pena levar muito a sério as recomendações dos nutricionistas.
E sorte que Deus nos dê, para não morrermos, como o peixe, pela boca.
E é desta morte pela boca que quero falar hoje aqui. Não a morte de peixes, mas de homens e mulheres. É que li agora mesmo numa respeitada revista americana que os conceitos dietéticos até aqui vigentes estão a sofrer uma remodelação, que é quase uma reviravolta de cento e oitenta graus. E uma reviravolta destas tem sempre algo de dramático, porque implica que o exercício de usos alimentares anteriores estava, a esta nova luz, errado: quantos terão sofrido e morrido em consequência disso? Nova luz, digo; o que não implica que amanhã não haja uma luz novíssima que ofusque a que agora desponta no firmamento das cozinhas e porventura reabilite a que tinha sido entretanto extinta. Mas já lá vamos.
Segundo pois as novas evidências, apregoadas por reputados nutricionistas dos States, o perigo já não está no sal nem no açúcar, mas apenas nas gorduras; já não está no excesso de calorias, mas no excesso de proteínas. O cálcio já não é tão importante como se julgava e os hidratos de carbono são agora a nova panaceia alimentar. Parece que a refeição ideal é a que consta de muito pão, arroz ou massas, quase outro tanto de legumes e frutos, e pouco, muito pouco mesmo, de carne ou peixe e de produtos lácteos. A carne e o peixe, diz um dos novos oráculos do nutricionismo, devem ocupar um lugar lateral no prato; assim pouco mais ou menos o que costumavam ocupar os rabanetes na cozinha internacional: decorativo e pouco mais.
O engraçado é que, num país de grandes liberdades e garantias como os Estados Unidos, esta nova filosofia alimentar está a conhecer inesperadas dificuldades de divulgação, porque um cartaz explicativo da importância relativa dos alimentos a esta nova luz se encontra retido até ordem em contrário pelo departamento oficial da tutela — julga-se que em consequência da pressão dos ‘lobbies’ dos lacticínios e das carnes! Espantoso! No paraíso do consumidor que a América apregoa ser, dados fundamentais para a educação alimentar da população estão a ser sonegados, porque causariam prejuízos consideráveis aos senhores magnates do leitinho e da chicha. Se isto se desse numa qualquer república das bananas, ainda vá que não vá. Mas na América, senhores! «O brave new world!», exclamaria outra vez Miranda, se lhe fosse dado voltar a ter voz e lhe falassem disto.
Não me cabe, naturalmente, comentar a bondade das novas doutrinas. Em matéria de comidas, sou um praticante anónimo: um pouco como o crente que frequenta o culto sem perceber nada de teologia. Isto é: utente, mas não especialmente bem informado. Mas não posso ficar indiferente a estas alterações, como não o ficaria o praticante a quem viessem inopinadamente baralhar os dogmas sobre que assenta a sua prática religiosa.
Este caso vem provar uma coisa que, em última análise, é assustadora: a precariedade dos conhecimentos do homem. Porque o que ainda ontem era apresentado como uma verdade irrefutável, é hoje uma inexactidão; e ninguém nos garante que amanhã não reapareça, reinvestida na dignidade de verdade recuperada. Entretanto vamos moldando os nossos hábitos alimentares por padrões transitórios, comendo coisas que devíamos evitar e evitando coisas que devíamos comer. Quantas doenças — quantos enfartes e quantos cancros, quantas diabetes e quantas osteoporoses, e assim por diante — foram causadas pela difusão de conceitos errados de dietética, se é verdade que pela boca morre o peixe? Até que ponto podemos confiar numa ciência que hoje nos proíbe as gorduras e amanhã se calhar chega à conclusão de que elas são essenciais e que quanto mais melhor? Uma ciência que ontem condenava sem remissão o sal, e hoje o desculpa, proclamando que afinal não é tão mau como o pintavam? Que ora aconselha, ora desaconselha os grelhados?
No fim de contas, o organismo humano é uma teia de tão débeis equilíbrios entre hormonas e enzimas e eventualmente outros actores na micro-farsa química da vida, que talvez não valha a pena levar muito a sério as recomendações dos nutricionistas.
E sorte que Deus nos dê, para não morrermos, como o peixe, pela boca.
(Repórter do Marão, 31 de Maio de 1991)
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