segunda-feira, 11 de julho de 2022

AS COISAS [...] — RESPOSTA A UM LEITOR DESCONHECIDO

Pierre-Auguste Renoir
 Quem anda à chuva molha-se — diz o povo na sua infinita sabedoria. Quem escreve crónicas num jornal expõe-se — digo eu na minha ignorância não menos infinita. De facto, esta coisa de um fulano debitar semanalmente dois ou três pontos de vista sobre isto e aquilo traz inevitavelmente os seus amargos de boca.
 Foi o que me sucedeu desta vez. Acontece-me ocasionalmente receber uma carta de pessoa que me felicita ou condena pelo que aqui escrevo. Bom sinal, no fim de contas: sinal de que sou lido, coisa de que nem toda a gente se pode gabar. O artigo que aqui deixei sobre a “Tieta” foi dos que mais celeuma causaram. Chegaram-me mensagens de apoio e concordância, naturalmente. Mas também de desaprovação. Estas vieram de viva voz, com argumentos de autoridade, do tipo ‘isto foi escrito por Jorge Amado, quem és tu para criticar Jorge Amado’, ou de natureza etnolinguística, do género ‘aquilo passa-se na região da Baía, onde se chama cabrito e cabrita às pessoas’ (!). Dois argumentos de peso e sustância, como se está vendo. 
Mas isso não é tudo: chegou-me também uma carta a defender a “Tieta”. 
 É uma carta semi-anónima, uma vez que não logro ler a assinatura, nem o autor se identifica em lugar algum dela, incluindo o sobrescrito. Sei apenas que me chega de Espinho, a simpática cidade litoral, onde, pelos modos, mora um Senhor X que assumidamente se deixa caracterizar como um candidato a órfão da “Tieta”. A linguagem acaba por não ser incorrecta, embora se note uma certa crispação desproporcionada à inocência dos meus considerandos. 
 Depois de alguns argumentos um tudo nada confusos, em que Otelo Saraiva de Carvalho aparece de braço dado com a madre Teresa de Calcutá, o Senhor X garante-me: «ao arquivo particular e através do video, continuar-se-á a ver as Gabrielas, os Pais Heróis, os Zécas Diabos e as Tietas. Tem muito mais audiência qualquer telenovela que os Drs. Jivagos.» E, democraticamente, vai-me prevenindo: «Nem lhe dou a alternativa da dúvida.» Ainda bem que não dá; porque eu, de qualquer forma, não a tomaria. Tenho os meus padrões para os defuntos com quem gasto cera — padrões que aliás me deveriam fazer parar aqui.
 Mas não termino sem me referir à parte final da carta. Assumindo inopinadamente um tom com o seu quê de bíblico, arremessa-me uma parábola ervada, como aquelas com que Cristo fustigava os incrédulos. Vale a pena transcrevê-la, poupando-me o leitor compreensivo o trabalho de espalhar aqui e além uns sics elucidativos.
 «Olhe Sr. Pires Cabral. A carta já vai longa, eu não sei qual o tamanho do Cesto das Gáveas mas sei que não é para ir dentro dele, irá sim para outro cesto, mas antes de terminar, ouça esta:
 Estava eu nos Açores, Ilha Terceira, não posso precisar o ano mas não andarei longe da verdade se disser que foi em 1956, e um Sr. Deputado foi a Lisboa á velha Assembleia Nacional botar faladura. Chegada a sua vez, falou das capas das revistas que haviam expostas nas tabacarias e quiosques, com as beldades femeninas em calcinha e setiam, o que era um escândalo, etc, etc.. ao que eu perguntei: Então com tanta coisa que há para corrigir, vai um homem destes dos Açores a Lisboa, á conta do Zé, para falar em tal insignificância?
 Percebeu Sr. Pires Cabral?
 Temos tantos problemas internos e externos e o Sr a preocupar-se com os orfãos da Tieta, esquecendo-se dos do Iraque, dos das F. P. 25 e até dos que ficam na estrada e nos locais de trabalho.»
 Demolidora, o raio da parábola! Mas ainda assim merecedora de reparos. O primeiro dos quais é que, contrariamente ao tal deputado puritano dos Açores, que viajava ‘à conta do Zé’, eu escrevo por minha própria conta e risco, o que desde logo põe algum tanto em causa a adequação da parábola. E o segundo dos quais é que não posso estar a falar sempre do Iraque, que diabo! Já lhe dediquei quatro crónicas, aqui mesmo, no “Cesto da Gávea”, quatro!  O Senhor X, com toda a sua sanha anti-iraquiana, não sei se teria feito outro tanto. Também as FP 25 não escaparam ao meu fogo de livre-atirador. Já quanto aos órfãos ‘dos que ficam na estrada e nos locais de trabalho’, aí dou a mão à palmatória: desses ainda não falei. Mas palpita-me que ainda vou falar um dia. Só não sei se darei prioridade aos que ficam na estrada ou aos que ficam nos locais de trabalho.
 Agora termino, julgando demonstrada a injustiça de que sou vítima. Mas não termino sem dizer que a situação piorou desde 1956, no que toca a revistas escandalosas. Se naquele tempo as «haviam [...] com beldades femeninas em calcinha e setiam», as que ‘hão’ hoje trazem mulheres em pêlo. Que me diz a isto o Senhor X? Já nem sequer o ‘setiam’! Nuzinhas, como as mães as deitaram ao mundo! Muito se havia de remorder o deputado ilhéu, se fosse vivo! Que calistinas catilinárias não vozearia ele na Assembleia!

(Repórter do Marão, 10 de Maio de 1991)

Apostila:
É conveniente  ler a crónica anterior sobre a “Tieta” tendo em atenção que é a reposição de um texto de 1991, não se vá pensar que a “Tieta” está a desafiar de novo a nossa paciência. Felizmente não está. Está é muito quietinha, nalguma prateleira de arquivo morto, donde oxalá não saia, porque lá é que está bem.

A M Pires Cabral

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