sexta-feira, 1 de julho de 2022

PÁSSAROS 2. Um remoque e o mais que se lerá

 Vem-me aqui a calhar um remoque.
 Os provérbios são a expressão duma sabedoria antiga, já se sabe. Mas, por isso mesmo que a sabedoria que expressam é antiga, muitos deles têm hoje de ser revistos e corrigidos, à face das novas realidades: económica, sociológica, ambiental, eu sei lá. 
 Um bom exemplo de anexim a precisar de correcção é o famoso ‘Vale mais um pássaro na mão do que dois a voar’. Hoje, para quem tenha em conta a drástica redução na quantidade da passarada nos nossos campos e bosques, o provérbio certo só pode ser ‘Vale mais um pássaro a voar do que dois na mão’. Não será tão eufónico, concedo, mas é decerto mais justo e mais acomodado à situação actual.
 Na verdade, que interessa hoje a ninguém ter um pássaro na mão? Vão longe os tempos em que um pássaro seria um bem alimentar não despiciendo, do qual, por mais pequeno que fosse,  sempre seria possível extrair uma febrazinha que ajudasse a iludir a fome. Claro que não dava, como se costuma dizer, para a cova dum dente. Era um lambisco que só servia para abrir o apetite para mais. Fosse como fosse, podia ser um paliativo possível para os roncos imperativos do estômago.  
 Hoje, pelo contrário, ninguém olha para um pássaro como uma vitualha. Vê-se nele o esplendor da plumagem, a beleza do canto, a destreza do voo — mas não as proteínas da carcaça. Felizmente já não há fome, pelo menos aquela fome autêntica que, se não senti felizmente na carne, ainda testemunhei em muito boa gentinha, que hoje vejo arrotar de farta. ‘Fome é de três dias’, assim a define o povo; e a alguns vi eu com fome de cinco dias e mais. A esses, convenho que fizesse jeito um pássaro, por pequeno que fosse, e que lhes fosse mais grato ter um pássaro na mão em trânsito para a caçarola do que ver dois a voar. 
 Mas, como digo, as coisas mudaram. 
 Mudaram em que sentido?
 Para melhor, no que respeita à fome. Para pior, no que respeita ao meio ambiente. 
 De tal maneira que ninguém, verdadeiramente cônscio dos riscos ambientais que o planeta corre (de que a extinção progressiva da vida animal é prenúncio aziago), pode hoje usar com convicção o tal provérbio. Pode, naturalmente, utilizá-lo para retirar dele a mais-valia probatória que faz dos provérbios e anexins, ainda que desactualizados, um instrumento retórico importante. Ou então com intuitos meramente arqueológicos, para remeter para uma era de abundância de bens naturais trágica e irremediavelmente ultrapassada. Mas apenas isso. Tanto mais que, para significar o mesmo, mas sem os seus melindres ecológicos, existe um outro rifão que proclama que ‘Não se deve trocar o certo pelo duvidoso’. 
 Esta rabugice salpicada de verde é o que se me oferece a respeito do tal provérbio cujo sentido caducou. Deixem lá os pássaros voar em paz e ferrem o dente em coisa mais substancial. Pela minha parte, de boa vontade o faço. Na verdade, não tenho as preferências gastronómicas que o Professor Cavaco Silva, então primeiro-ministro, revelou certa vez numa entrevista: que o seu petisco favorito são passarinhos fritos! A simples ideia horroriza-me, com licença do Professor. Que passarinhos: rouxinóis, tentilhões, pintassilgos, toutinegras, chapins? E quantos passarinhos bastarão a satisfazer o apetite de sua excelência? Dez, vinte? Pois serão menos dez ou vinte bicos diligentes a catar os insectos da seara e a encher de música a campina. E pode alguém comer com prazer e em paz de consciência passarinhos fritos, sabendo que come provavelmente os penúltimos do planeta? 
 Custa a caber na cabeça que um primeiro-ministro de um país europeu, que não podia deixar de ter no seu programa de governo preocupações ambientais, confessasse assim o seu fraco por passarinhos fritos. Simples candura? Insensibilidade pura e simples? Seja o que for, há coisas que — parafraseando uma cançoneta dos anos 50 do século passado — nem às paredes se confessam. Coma bolo-rei, senhor Professor, e deixe os passarinhos em paz.
 De outra vez em que revelou que adorava cerejas, o Professor teve a grata surpresa de receber em São Bento cestadas delas. Felizmente desta vez o povo foi sensato bastante para não se pôr a armar redes, costelos, ichós e pescoceiras para o jantar de sua senhoria. 
* * *
 Bons tempos em que os pássaros abundavam e se tornavam nocivos. Leio em número já antigo (Dezembro de 1987) da folha municipal de Paços de Ferreira um apontamento que tem aqui cabimento. Aí se transcreve uma postura do século passado, do então presidente da Câmara, José António Carneiro Leão, segundo a qual «são obrigados todos os Lavradores assim Proprietários, como Caseiros a trazer á Câmara uma dúzia de cabeças de Pardal, Pintassilgo, Verdilhão, Serezino, e Tintilhão; ou quatro cabeças de Melro, Gaio ou Pega, por cada junta de bois, ou vaccas, com que lavram; isto em todos os annos; e no corrente serão entregues as ditas cabeças para serem queimadas na presença dos Portadores, na Casa do Foral deste Concelho, em todas as quartas feiras do futuro mez de Maio, desde o meio dia athe ás três horas da tarde, ficando pelo presente Edital todos obrigados a satisfazer dentro do dito prazo com as ditas cabeças todas mortas. O contraventor pagará de multa na razão de quatrocentos, e oitenta reis por cada dúzia em falta.»
 Quanta coisa se alterou de há cem anos para cá! Em 1861, a passarada, de abundante, dava cabo dos milharais de Paços de Ferreira, e houve que tomar esta medida drástica, não sei se sensata. O presidente Carneiro Leão não era homem de meias medidas e não esteve para contabilizar, no deve e haver das aves, os benefícios que as mesmas traziam, ao dizimar os insectos daninhos aos mesmos milharais. As noções de ecossistema e de cadeia alimentar ainda vinham longe... De resto, estas mortandades de pássaros em benefício (?) da agricultura já vêm de trás. Em sessão da Câmara de Mirandela, em 1723, foi determinado: «E outrossim mandaram elles ditos oficiais da camera que todos os moradores deste concelho e vila quada hum traga á camera ou casa do escrivam da camera athe o mez de Junho simco cabeças de pardais, pentasirgos e melharengos, pena do que faltar o sobre dito acordam pagar quinhentos Reis pera o concelho.»
 Era isto, pelo que se vê, procedimento corrente entre as vereações preocupadas com as colheitas. Havia mais pássaros e menos preocupações ambientais do que hoje. Hoje a passarada — salvo os pardais, que esses marotos continuam a inçar como no princípio do mundo, indiferentes a fumos e pesticidas — está a ficar tão escassa que parece impossível que algum dia tenha sido preciso legislar para lhe controlar o número. Hoje quem for amante da natureza e goste de observar as aves, se quiser ver um pintassilgo, terá de se armar da paciência e do lampião com que Diógenes andou à cata de um homem. Levaram sumiço os pintassilgos, como o levaram os pintarroxos, toutinegras, milharengos, verdelhões e todos os mais. Um biólogo poderia, aqui, fazer o inventário das espécies que o nosso século já extinguiu ou tem em vias de extinguir. Um ecologista poderia, aqui, fazer ácidos considerandos e fulminar objurgatórias contra o sistema económico e social que propiciou e continuará a propiciar tais hecatombes. A mim, que não sou biólogo nem ecologista, mas tão-só um amante comovido da natureza, não me cabe mais do que lamentar o ponto a que isto chegou.

A M Pires Cabral

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