domingo, 28 de agosto de 2022

Torne-se um perito: serão as formigas polinizadores improváveis?

 Sabia que, para além de presença assídua nos nossos piqueniques, as formigas também polinizam cenouras e morangos silvestres?

Cataglyphis velox. Foto: J. Manuel Vidal-Cordero

Se nos detivermos em qualquer lugar e olharmos com atenção ao nosso redor, certamente encontraremos formigas. Isto é ainda mais evidente em locais com vegetação, onde variadíssimas espécies de formigas coexistem. A enorme variedade deste grupo de insetos deu origem a diversos tipos de interação entre formigas e plantas. Desde a mais simples herbivoria de folhas, flores e sementes, às atividades simbióticas como a disseminação de sementes e a proteção das plantas contra herbivoria mais pronunciada.

Mais inesperada é a participação de formigas na polinização que, nas últimas décadas, se tem vindo a descobrir ser mais evidente do que se pensava. Esta é uma das interações que classicamente se julgava inexistente ou pouco importante até estudos mais recentes terem vindo a documentar o contrário.

Na verdade, “a polinização tem-se demonstrado como um importante serviço prestado pelas formigas nas suas interações com as plantas”, diz-nos José Manuel Vidal-Cordero, do CSIC (Espanha). 

Relações formigas-plantas

Tradicionalmente, as relações entre as formigas e as plantas que visitam consideravam-se como negativas para as plantas.

Tapinoma nigerrimum sobre Sesamoides purpurascens. Foto: J. Manuel Vidal-Cordero

As formigas eram consideradas ladrões de pólen que dificultavam o trabalho aos “verdadeiros” polinizadores. Desde finais do séc. XIX, esta conceção levou a que as adaptações evolutivas das plantas fossem interpretadas como defesas contra estes visitantes. Aqui, incluem-se barreiras físicas, como secreções pegajosas das plantas que impediriam o movimento de insetos, e barreiras químicas, como a produção de compostos com atividade repelente ou mesmo tóxicos para os insetos. Além disso, várias características destes insetos eram tomadas como obstáculos à polinização. Supunha-se, por exemplo, que o seu tamanho reduzido e a suavidade do seu tegumento, impediam ou grandemente dificultavam o transporte de pólen. Ou, então, o seu comportamento de limpeza compulsiva removeria qualquer grão de pólen que se pudesse ter agarrado ao seu exoesqueleto, impedindo o seu transporte até uma nova flor. Ou ainda que, por serem, na maior parte do tempo, sem capacidade de voo, seriam incapazes de dispersar grãos de pólen a grandes distâncias e que, assim, apenas seriam polinizadores eficazes de plantas autogâmicas (que são capazes de se fecundar a si mesmas), especialmente, quando comparadas com polinizadores alados como abelhas e borboletas. 

Para além de todos estes argumentos, surge, nos anos 80, a teoria que provavelmente melhor explicava a lacuna de registos de polinização por formigas. Muitas formigas expelem, por glândulas especializadas, substâncias antibióticas. É sugerido, então, que estas substâncias diminuem a viabilidade do pólen. Ou seja, mesmo que, após ultrapassar todas as barreiras morfológicas e comportamentais, os grãos de pólen se acoplassem à formiga, chegariam já, à próxima flor, estéreis e inviáveis para a fecundação. 

E ainda assim…

Não obstante todos estes possíveis obstáculos, tornar-se-ia claro em décadas mais recentes que as formigas são, de facto, polinizadoras importantes.

Quanto ao que se apontava serem impedimentos morfológicos à coleta e transporte de pólen, foi-se percebendo que, embora possam ser menos eficazes, as formigas conseguem de facto polinizar. Por exemplo, os pelos, ainda que poucos e de menor porte, são suficientes para agregar, pelo menos, os grãos de pólen de certas espécies, em especial das que produzam enormes quantidade de pólen. Outra característica apontada era o comportamento de limpeza compulsiva observado com recorrência. Este comportamento é, aliás, observado noutros grupos de polinizadores (como abelhas) e, embora possa reduzir o sucesso da polinização, não a impede por completo. De facto, as características morfológicas e comportamentais que se suponham inviabilizar a polinização, demonstraram-se como não impeditivas e, se tanto, apenas um obstáculo “transponível” pelas formigas.

Cataglyphis hispanica sobre Aphodelus ramosus. Foto: J. Manuel Vidal-Cordero

Foi-se percebendo, também, que várias circunstâncias atenuavam o efeito das substâncias antibióticas sob o pólen. O local de transporte, a quantidade de pólen e, até, as espécies de plantas e formigas envolvidas, significam grandes variações na eficácia dos químicos produzidos por estes insetos, garantindo que, quase sempre, uma percentagem do pólen permanecia viável. Um claro exemplo disto vem de um estudo sobre a polinização por formigas em plantas do género Conospermum em que a taxa de germinação das sementes após contato com as formigas foi semelhante àquela registada após contato com abelhas, geralmente consideradas como polinizadores por excelência.

Por outro lado, a eficácia de uma espécie polinizadora está dependente não só da morfologia (do polinizador e da flor) como também da frequência de visitas dessa mesma espécie polinizadora à flor.

Ora, mesmo que possam ter uma morfologia menos eficiente para a coleção de pólen e sua deposição no estigma de outras plantas ou mesmo que as substâncias que produzem afetem a viabilidade dos grãos de pólen, as formigas certamente visitam em grande número e com muita regularidade um grande número de flores. Além disso, a atividade da maioria das espécies de formigas não está tão limitada no tempo como outros polinizadores.

Assim, desde os anos 80, uma quantidade de estudos tem vindo a demonstrar a importância da polinização por formigas.

Um estudo de 2009 liderado por Clara de Vega, demonstrou que as formigas são o principal polinizador da planta Cytinus hypocistisis, um parasita endófito (isto é, que se desenvolve dentro de outra planta) de espécies da família Cistaceae, sendo este último um dos grupos mais representativos da flora mediterrânea. Mais concretamente, cerca de 98% das visitas florais deveram-se a formigas de variadas espécies. Para além disto, a viabilidade do pólen após contato com o corpo das formigas manteve-se bastante alta. Esta descoberta torna-se ainda mais relevante quando temos em conta que a polinização pelo vento nesta espécie é inexistente ou irrelevante, tornando, assim, Cytinus hypocistis inteiramente dependente das formigas para a sua reprodução.

Cytinus hypocistis. Foto: J. Manuel Vidal-Cordero

Alguns estudos demonstraram, também, de uma forma mais geral, que as formigas são importantes (e frequentemente, as mais importantes) polinizadoras de plantas, especialmente em habitats áridos e de alta montanha. Por exemplo, José Gómez e colegas, mostram, num estudo publicado em 1996, que 70% a 100% das visitas florais a certas espécies de plantas características de zonas de alta montanha Mediterrânea ou de habitats áridos se devem a formigas. Um outro exemplo interessante é o da planta Naufraga balearica, uma espécie endémica de Maiorca. Num estudo de 2011, Cursach e Rita encontraram uma possível dependência desta planta pela polinização realizada por formigas, já que 100% das visitas florais eram destes insetos.

E afinal, quem poliniza o quê?

Ao conjunto de características comuns às plantas que são polinizadas por formigas denomina-se “síndrome da polinização mirmecófila”.

Se ao ler “síndrome” pensa numa planta doente, desengane-se! Na verdade, este conceito engloba as características comuns às plantas que são polinizadas por formigas e que se adaptaram a estes insetos em particular. Em 1974, James Hickman propõe características como porte pequeno e populações densas, mantendo, também, maior assincronia na floração interna (ou seja, flores surgem em alturas ligeiramente diferentes, promovendo o movimento pela planta) como características comuns e essenciais das plantas para a polinização eficaz por formigas. Para além disto, as flores deverão ser pequenas, abertas e com nectários curtos, acessíveis por pequenos insetos. Outra característica importante é a produção, pelas plantas, de flores com pouca quantidade de pólen, já que demasiado pólen aderido à formiga poderá levar ao comportamento de limpeza compulsiva do corpo pelo inseto. Finalmente, Hickman sugere também que as plantas deverão estar adaptadas (e presentes) em habitats onde há uma grande concentração de espécies e número de formigas.

Revisões de literatura mais recentes apontam para pelo menos 50 espécies de plantas e mais de 60 espécies de formigas onde se demonstrou uma relação mutualista de polinização. Interessantemente, a maioria destas plantas apresentam muitas das características adaptativas propostas por Hickman (incluindo, por exemplo, algumas espécies de morangos e cenouras silvestres). Embora esta temática tenha sido pouco ou nada explorada em Portugal, podemos nomear algumas espécies onde já se demonstraram relações de polinização. Presentes em Portugal, temos, por exemplo, as formigas Aphaenogaster senilis, Camponotus pilicornis, Crematogaster auberti e C. scutellaris, Pheidole pallidula, Plagiolepis pygmaea e P. schmitzii ou Tapinoma nigerrimum, todas elas relativamente comuns em todo o território. 

Polinizadores e não só

Ainda que a polinização por formigas seja um tema interessante e desconhecido por muitos, é também exemplificativo de serviços de ecossistema e espécies muitas vezes delegados para pano de fundo. Na vasta quantidade de serviços de ecossistema prestados ou mediados por estes insetos, incluem-se o aprovisionamento alimentar e de compostos para indústria farmacêutica, a dispersão de sementes, arejamento do solo ou o controlo biológico de espécie invasoras, por exemplo. Assim, para entendermos os ecossistemas como um todo e sabermos como e o que proteger, é necessário reconhecer as funções prestadas por todos os seres vivos, sejam eles minúsculos ou gigantes.

Este texto foi escrito pelos investigadores Daniel Oliveira (CIBIO-InBIO), Sónia Ferreira (CIBIO-InBIO) e J. Manuel Vidal-Cordero (EBD-CSIC).

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