domingo, 2 de outubro de 2022

Crónicas naturais: Dias da brama

 No coração de Montesinho, no mundo dos animais selvagens, Paulo Catry move-se como se fosse um deles. Admira os veados possantes, em plena brama, mas também as raposas, os cruza-bicos, as cotovias-dos-bosques e os recantos cobertos de fetos e musgos. Tesouros de Outono.

Montesinho, 24-25 Setembro 2022

Veado macho a bramir, acompanhado de duas fêmeas e uma cria do ano. Foto: Paulo Catry

Foi há uns meses, numa linha de água minúscula sem nome, terreno de forte pendor, afluente do alto Sabor. Sob a copa fechada dos carvalhos havia restos quase invisíveis de muros de pedra, adivinhavam-se com dificuldade socalcos e levadas antigas, tudo já recoberto de fetos e musgos. Rewilding ao natural; quer dizer, sem planeamento estratégico, só abandono, esquecimento. No chão estava uma haste de um veado médio, caída já há tempos, ninguém a tinha apanhado, ninguém passa por ali. Um pequeno tesouro de sete pontas em excelente estado de conservação. Trouxe-a para casa, pesava mesmo, densa, maciça.

Agora observo os grandes machos na brama, hastes gigantescas cujo comprimento cria um efeito de alavanca que lhes aumenta o peso muito mais ainda. É difícil compreender como é possível andar com aquilo em cima. Mas os veados são bichos possantes, de pescoço musculoso e bramidos que fazem lembrar um boi. Nesta época os machos parecem maiores ainda, por comparação com as fêmeas e as crias já crescidas que os acompanham. Ainda há poucos dias caçaram aqui perto um macho com 240 quilos.

Bom tempo, este da brama. Faço madrugadas por afluentes maiores do Sabor: o Maçãs e o Igrejas. Este último está seco, salvo alguns pegos onde sobrevivem escalos e bogas com dificuldade. As cotovias-dos-bosques já voltaram a cantar. Gosto mais de as ouvir no outono, com a restante passarada calada o lu-lu-lu sobressai nostálgico no ar transparente e parado. 

Os lameiros este ano amareleceram demais, começa agora a despontar um verde fino, nascido da pouca chuva que recentemente caiu. Como habitualmente, aparecem por esta altura noselhas em sítios de vegetação rala, beleza de uma ousadia primaveril com o outono ainda quase todo por vir. 

Por esta altura, e apesar da seca, alguns lameiros já se encheram de noselhas-dos-montes Merendera montana. Foto: Paulo Catry

Quando palmilho sozinho terras ricas em mamíferos selvagens, faço por mexer-me lentamente e tento pisar de levezinho, sem quebrar galhos nem fazer chocalhar calhaus. Muitas vezes dou por mim a exagerar nos cuidados, a respiração quase suspensa, como se o mínimo ruído pudesse ser audível na distância da montanha. Nas encostas íngremes, antes de uma crista sobre um plano de maior visibilidade, a concentração é máxima. Em manhãs tranquilas ressoa o coração, galopante da subida e da antecipação do que poderá vir. Observações ofegantes, custa a manter os binóculos quietos.

É um jogo permanente, procurar ver antes de ser visto. Impossível fazer um balanço rigoroso do resultado, pois não se chega a contabilizar todos os animais que nos veem e desaparecem em silêncio antes de serem detetados. Será por quase sempre nos ganharem que os lobos são tão difíceis, imagino.

Em dias de setembro, com os grandes cervos a bramir junto aos seus haréns é mais fácil este desafio, ainda que sejam muitos os pontos perdidos quando vejo os bichos já de fugida, são mais os olhos deles do que os meus.

Veado fêmea num lameiro sofrido da seca na bacia do rio Maçãs. Foto: Paulo Catry

Com as raposas tenho um aparente empate (um a um) esta manhã: uma não me viu, a outra antecipou-se, mas ficou a olhar para mim antes de fugir. Estão vestidas de outono, prontas para o frio do inverno. Parecem maiores nesta pelagem farta; bem precisam, que as noites na serra já pedem outros agasalhos. Gosto mesmo destas zorras do nordeste transmontano que recusam a simplicidade bela mas algo monótona da roupagem uniformemente vermelha ou laranja de muitas congéneres do sul. Aqui algumas são escuras, outras, como as que vi hoje, têm elegantes flancos cinzentos, prateados até, nas coxas e na parte posterior do torso.

Surpresa boa foi um bando de cruza-bicos confiantes. Todos em plumagem de adulto. Um dos machos estava a cantar.

Um bando de cruza-bicos Loxia curvirostra deixou-se observar de perto em atividade de alimentação. Foto: Paulo Catry

Observei-os longamente a abrir pinhas de pinheiros-negros e de pseudotsugas. Trabalham agarrados aos cones, confortáveis de cabeça para baixo e rabo no ar. 

Mas a brama é que encheu o monte, ouvia-se de todos os lados. Ontem reparei sobretudo num veado enorme com o seu pequeno harém. De roda cirandava um macho claramente mais pequeno. O primeiro fazia umas investidas e o outro afastava-se, mas pouco. Ficava por ali e logo voltava, sempre à espreita de uma fêmea mais afastada. O patriarca bem que mugia alto, renovava as curtas cargas, mas via-se que já lhe faltavam as forças, cansado de tantos dias deste despique da brama. O jovem ia mordiscando algum do verde despontante do chão. Mantinha-se sereno, à espera de uma oportunidade, com a certeza paciente de que lhe chegará a vez ainda por estes dias … fora os anos que hão de vir.

Veado macho adulto evidenciando o desgaste da época da brama. Foto: Paulo Catry

Passou uma águia-cobreira com ares de despedida. Ao cair da noite fazia mesmo frio.

Paulo Catry

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