quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Os Preconceitos na Minha Geração

Por: António Pires 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Há poucos dias, na sequência da publicação, no Memórias, da fotografia do café Flórida, da autoria da nossa querida amiga Maria Neves, o também nosso amigo Mário Morais, entre muitos outros comentários que sucederam, teve uma reacção muito interessante e curiosa, (“O café dos doutores”), que não pude deixar de registar, motivando, assim, este meu pequeno pedaço de prosa.
Quem “viveu Bragança” nas décadas de 70 e 80 do século passado, pôde constatar que, efectivamente, os cafés mais populares estavam conotados com o estatuto social e, pode dizer-se, a condição económico da clientela: O Flórida era frequentado pela “nata” da cidade: doutores, professores e intelectuais -  sendo que, deste último grupo, alguns eram pseudo; o Chave d ´ Ouro, por comerciantes, pela burguesia; o Cruzeiro tinha a rapaziada nova como clientes; o Avenida e o Lisboa, tendo uma clientela diversificada, era associado aos camionistas e gente que praticava o “desporto sentado”; o Príncipe Negro era o café onde parava o pessoal que vinha à feira; o Progresso era frequentado pelo pessoal que fumava uns charros e jogava pool; e o Ponto d´ Encontro era a “sede”/ “bastião” da malta de esquerda, mais precisamente, comunistas.
A par desta particularidade, a sociedade bragançana dessa época - longe de ser excepção -, era gritantemente elitista, preconceituosa e piramidal. As pessoas (não quer dizer que tenhamos evoluído muito nesse campo) valiam não por aquilo que eram, pelo mérito profissional, pelas qualidades morais e cívicas, mas por aquilo que tinham e ostentavam, quer riqueza, quer título distintivo, sinónimo de poder, respeito e influência.  
Na minha geração, salvo raríssimas excepções, o filho dum mecânico, dum empregado de balcão ou dum taxista, por exemplo, não acompanhava nem era amigo do filho de alguém que frequentasse o Flórida ou o Chave d´Douro. Que me lembre, quebraram esta “regra social”, o “paradigma”, não mais de dois/ três moços. Conheço apenas dois rapazes, bem - nascidos, que, à revelia da família, conviviam com quem não era da sua condição de berço. Raparigas, havia duas, que se passaram “para o lado de lá”, traindo os “seus”, porque se envergonhavam das raízes. Os queques do meu tempo, que fumavam umas ganzas no muro da Rua da República, em frente ao Flórida e ao Progresso, jogavam basketball e badminton, porque futebol era desporto do vulgo.
No meu tempo de Ciclo Preparatório e de Liceu, os betinhos eram matriculados, impreterivelmente, nas turmas A e B. Podiam não ser os melhores alunos, mas eram os que na pauta tinham as melhores notas. As restantes letras do alfabeto eram distribuídas, aleatoriamente, pelos alunos cujas famílias não tinham pedigree, extenso rol de que faziam parte os que se levantavam às seis da manhã, vindos das aldeias, na carreira do Cabanelas.  
Felizmente, nesse aspecto, hoje tudo é diferente. A democratização do ensino, a partir dos anos 90, baseada no princípio da igualdade de direitos e oportunidades, contribuiu (e de que maneira!) para que as Jéssicas e as Beneditas tivessem a mesma condição à mesa do rei. E os preconceitos esbateram-se, e tendem a extinguir-se, porquanto os filhos dos carpinteiros e das cozinheiras já cursam medicina e engenharia aeronáutica.  
Apesar de tudo, e ao contrário da frase - feita “éramos tão felizes, e não sabíamos” (que tanto se ouve), nós, que só jogávamos futebol, íamos ao café Cruzeiro, à discoteca e frequentávamos os bailes de garagem e dos Bombeiros, nunca tivemos dúvidas de termos sido felizes, porque, à nossa maneira, vivemos intensamente essa memorável e irrepetível fase da nossa vida.

António Pires


António Pires
, natural de Vale de Frades/S. Joanico, Vimioso. 
Residente em Bragança.
Liceu Nacional de Bragança, FLUP, DRAPN.

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