sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Outono... um tempo simples

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

Sentado num banco, entre as folhagens e as sombras despertas, pensa. Sim, ele ainda é capaz de pensar. Só os mortos deixam de o fazer. Enquanto for vivo, mesmo que as ideias lhe venham à cabeça, baralhadas ou dispersas, e mesmo que mais ninguém o compreenda, haverá espaço para o entendimento. Ainda que seja simplesmente o seu.

E o que pensa ele? Que há uma certa magia no encontro com as solidões do outono, quando o sol é ténue e morno. É um sol que ilumina sem aquecer e, por isso, quando o corpo lhe toca em tudo o que vive, reflete-se como num espelho onde ele se revela.
Experimenta a pulsação da estação como se bebesse instantes felizes do presente. Como se estivesse a saborear, com o prazer da lentidão, um cálice de um vinho amadurecido pela longa viagem e que degusta com agradável conforto.
Aprecia a memória de tudo aquilo que no passado o perturbou e hoje constata, com um riso de palhaço antigo que, afinal, lá onde foi e aconteceu, perdia-se demasiado em tolas ânsias de sofrer.
No outono, os olhos sobre as coisas são-lhe mais demorados. São como os olhos de um bicho atento.
Acarinha-se nas brevidades belas e descomplicadas e nelas descansa os sentidos.
As fervorosas certezas afloram-lhe na rugosidade das mãos onde o toque da ternura já só consegue ser naquilo que a pele esconde por dentro.
Fica calado. Contempla sem cismas. Para cá dos lábios consumidos pelas horas de muitos anos, não encontra dentes que saciem a fome, mas habita o sabor sábio de outros órgãos, como os da alma.
Tornou-se um poeta de si que se salva, todos os dias, pelo que ri dele próprio.
Não sabe quanto mede ou quanto pesa. Nem isso o preocupa, porque não lhe apetece chorar lágrimas secas sem sal.
E enquanto saboreia o vagar que se lhe oferece para contar as folhas que caem das árvores e no chão adormecem contentes, descobre que, por trás da luz caída do momento, vai espreitando um outro brilho. A claridade privilegiada do luar.
É um espanto que o inunda e, sem querer, tantas vezes, o leva a ser menino outra vez. Dispõe-se, por isso, a somar de novo as estrelas. São a essência que lhe alimenta um sonho.
E ri-se sozinho. Todos imaginam que os velhos não sonham. Mas ele sonha, sim. Ele acredita e ninguém disso queira fazer prova contrária, que ali, naquele fundo de céu negro a aparecer no horizonte, aguarda-o quem outrora o abraçou e amou como mais ninguém fez.
Um dia chamou-a de ‘minha andorinha’ porque lhe veio morar no coração numa tarde de primavera. Já não lhe sente o nome. Lá em cima, vê somente uma espécie de pássaro vestido de branco, com asas que respiram o ar que ele também acolhe. Confia que, mais cedo ou mais tarde, voltará a esse princípio.
É que os velhos descobriram que há um encanto nascido dos mistérios. Ciência que os novos ainda não alcançaram. Lembra-se de uma famosa e inteligente senhora, muito assertiva por sinal, que viveu lá para os lados da Áustria e que, certa vez, ditou uma sentença que ele leu e nunca esqueceu. Afirmou ela que é na juventude que aprendemos, mas é com a velhice que compreendemos. Ora aí está toda a verdade. É como a verdade dele. A sua crença é suficiente para o trazer feliz.
O outono é um tempo simples.
Agora, consciente de que amanhã não estará de partida para muitos lugares, espera a noite com tranquilidade. Quando ela chega, aninha-se sobre os pedaços que a vida construiu, sem lhe acrescentar diferentes paisagens porque ao fechar os olhos percebe, sereno, que lhe é permitido esquecer o futuro. Agora, por fim, pode sentir apenas a existência.


Paula Freire
- Psicologia de formação, fotografia e arte de coração. Com o pensamento no papel, segue as palavras de Alberto Caeiro, 'a espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias'.

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