quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

«Ah, que melhor alcaiota que a noite!»

 Vêm-me estas considerações à ideia quando leio, na Casa Grande de Romarigães, de mestre Aquilino, esta exclamação jucunda: «Ah, que melhor alcaiota que a noite!» E a seguir: «Todos os demónios da sensualidade saíram à uma dos seus tugúrios, do céu, do inferno, da alma e da carne, e reforçaram o seu poder abismal.»
Vamos por partes. Uma alcaiota é, dito por outras palavras, uma alcoviteira, ou seja, a utilíssima figura tutelar da grande crónica portuguesa dos amores furtivos. Gil Vicente imortalizou esta personagem inescapável no Auto da Barca do Inferno. Dá-lhe o nome de Brízida Vaz, aquela que «dava as moças aos molhos» e «criava as meninas / para os cónegos da Sé». Aquela que se vangloria da sua eficiência apologética desta forma irrespondível: «Santa Úrsula não converteu / tantas cachopas como eu». Aquela, enfim, que levava na bagagem com que contava — por seus merecimentos e seus serviços aos reverendos cónegos da Sé — embarcar na barca da Glória, entre outros apetrechos do ofício, «seiscentos virgos postiços / e três arcas de feitiços».
Na incomparável e cheia de propriedade linguagem da minha terra, chama-se a uma tal mulher — porque esse é um ofício exclusivamente feminino — uma chegadeira. Pode parecer que o termo «chegadeira» traz consigo uma certa carga humorística ou punitiva (ridendo...), mas não estou certo de que assim seja. Ele é usado com total naturalidade. Vem de «chegar», que, entre outros significados que o verbo partilha com o Português normal, significa também, inocentemente, «levar a fêmea (geralmente falando da vaca) à cobrição». «É preciso chegar a vaca ao touro», diz-se com toda a candura deste mundo quando a vaca dá sinais de querer. No mundo rural, onde os humanos e os irracionais compartilham a condição animal em toda a sua extensão, tanto se chega uma vaca ao touro como uma rapariga ao seu pretendente. Tudo é chegar. 
Voltando à alcaiota. Aquela exclamação serve ao romancista — homem com alguma reputação de sanguíneo e susceptível ao «poder abismal» da noite e aos tais «demónios da sensualidade» que o reforçam — para justificar a rendição da arisca Dionísia às arremetidas de Telmo. Ela capitula porque é de noite, deitando a perder todas as resistências diurnas que até ali opusera aos avanços do primo. Dia versus noite, isto é, virtude versus pecado.

A. M. Pires Cabral

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