segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

O Firmamento

 Soares de Passos — sempre esse poeta fatal! — dá-nos uma ideia do que é um céu autêntico, coalhado de estrelas, num poema que também ficou famoso, intitulado «O Firmamento». As imagens usadas são de luz e brilho — uma luz e um brilho que hoje a cidade eclipsou —, como seria de esperar: “mil letras de fulgor intenso” (os astros); “vós sois as lâmpadas sagradas” (ainda os astros); “sois as faíscas do seu carro ardente” (sempre os astros — esta é, das três, a minha imagem preferida); e por aí adiante.
          Pois sim. Mas isso era no século XIX, em que a iluminação a gás não fazia esmaecer os luzeiros do céu, mesmo numa cidade como o Porto, onde Soares de Passos nasceu, viveu e morreu. Hoje, para ver um céu estrelado a sério, aquilo a que Eça, na “Cidade e as Serras”, chamou «o sumptuoso céu de Verão», um espectáculo que verdadeiramente nos belisque a costela estética e desperte inquietações místicas, é preciso ir procurá-lo no campo. Como digo, já nem em Vila Real — e mais é um arremedo de cidade — há esse céu.
       Havia-o em Tormes, na noite em que Jacinto e o inseparável Zé Fernandes lá chegaram com a alma saturada de civilização: «Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros ¬— por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de electricidade que os ofuscam.» 
     Assim como o havia na aldeia de Grijó, Macedo de Cavaleiros, ainda há meia dúzia de anos — é um modo de dizer. E era com intenso prazer que, aí por 1980, mais coisa menos coisa, eu me reencontrava repetidamente com a noite do campo.
     Antes de ir para a cama, chegava-me à varanda, como faço tantas vezes em Vila Real, para uma derradeira olhadela sobre a vizinhança, a certificar-me de que não há novidade de maior. As lâmpadas da iluminação pública de Grijó, além de se apagarem cedo, por essa meia-noite, não iam então muito além de candeias, no que toca a débito de lúmenes. (Hoje já não é bem assim: as aldeias, à compita com as cidades, exigem uma noite bem iluminada a electricidade. Mas na altura ainda era.) E então que via eu no céu? Lúcida, recortada com firmeza no abismo profundo do firmamento, a Ursa Maior rebrilhava como na minha infância meio rústica. (Ursa é designação de astrónomos; o povo, que faz questão de gerar as suas próprias metáforas, centrando-se nos dados concretos do seu mundo, prefere dizer «o Carro» ou «o Engaço».) No trapézio que faz o corpo dessa constelação, localizava as assim-chamadas guardas (pelo menos foi deste modo que aprendi a chamar-lhes na tal 4.ª classe de meados do século XX), calculava a distância entre elas e media cinco vezes essa distância pelo céu fora. Louvado seja Deus! Lá estava ela, a Estrela Polar, na ponta da cauda da Ursa Menor, na sua missão nunca abandonada de nos mostrar o norte!
     Lá estava ela... Esperaria eu porventura que ela não estivesse no seu posto? Ora, o poder de destruição do homem ainda não chega, felizmente, tão longe. A Terra vai ele destruindo com despreocupada inconsciência. Mas as estrelas, por enquanto, tó ruça! Lá chegaremos... De qualquer forma, reconhecer as constelações era como encontrar velhos companheiros de infância, dos tempos em que o céu da noite tinha um brilho e uma profundidade que as luzes do progresso depois lhe confiscaram. E então lá ia eu à procura delas, e via as Plêiades (Setestrelo, na voz do povo), as Três-Marias de Oríon. Via também o passadiço luminoso da Estrada de Santiago — uma estrada que teremos de calcorrear depois de mortos, se não tivermos ido em vida à cidade galega do apóstolo — e uma poalha finíssima de estrelas tremeluzindo a milhares de anos-luz. Tudo coisas que na cidade já me não era possível ver e de que tinha genuínas saudades. Isso, casado com o silêncio magnífico da serra, em que até o ladrar de algum cão estrenoitado parecia um fragmento do mesmo silêncio, enchia-me a alma de paz e espiritualidade. E o sono que depois dormia não tinha preço. Qual Xanax nem meio Xanax!

(conclui amanhã)

Crédito da imagem: VistaCreate
A. M. Pires Cabral

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