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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Donos disto tudo

Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Conviver com alguns alunos chineses há um par de anos revelou-se-me uma experiência extremamente agradável. Em teoria, pelo menos desde os tempos dos aventureiros Marco Polo e do nosso Fernão Mendes, todos temos noção das diferenças entre as nossas culturas e as daquele lado do mundo. Mas uma coisa são ideias extraídas daquilo que se ouve ou lê e outra, bastante diferente, a realidade que de repente nos surpreende como um sopapo na cara. E neste caso a minha admiração iria ultrapassar em muito o que um olhar mais desatento talvez considerasse simples particularidades raciais sem significado.
Embora isso já fosse imenso, não era só por aqueles adolescentes exibirem invulgares dotes de serenidade, simpatia, correção e educação que entre a malta de cá quase se perderam. Também porque se entregavam ao trabalho com o mesmo afinco e perfecionismo às oito e meia da manhã como às cinco da tarde, virtude a que vinha juntar-se uma resistência à fadiga como, em mais de quarenta anos, escassas vezes vi. Porém o que fazia as minhas delícias era algo ainda mais raro e a que não estava de todo habituado: o seu visível sentimento de gratidão. Como aprender era para eles claramente uma questão para levar muito a sério, nos seus rostos transparecia em permanência a honra de terem ali alguém à frente a dar o seu melhor para os ensinar, assim como o reconhecimento por essa dádiva. 
É bonito constatar existirem no mundo criaturas agradecidas pelo que alguém lhes oferece de bandeja. De qualquer modo, naquela turma de sétimo ano onde os chinocas foram metidos passou a haver muitas mais coisas em que reparar, mesmo porque saltavam à vista. E, oh meu deus, que abismo medonho a separá-los da grande maioria dos filhos da nossa gente! A serenidade dos primeiros desafiando o desassossego dos segundos; a simpatia de uns a realçar a frieza dos outros; a correção lado a lado com a indelicadeza; a educação a cotejar a grosseria. No plano da ação concreta, era difícil ignorar uma dedicação às tarefas sem qualquer tipo de reservas de uma parte, e a preguiça e o ar de enfado de quem está a ser vítima de exploração da outra; a busca da perfeição contra a negligência como regra; o autodomínio a fazer inveja à precipitação; a resiliência humilhando a deserção ao primeiro obstáculo. 
A partir daquele restrito universo de sessenta metros quadrados, e sem perder de vista as devidas cautelas para evitar induções abusivas, não pude inibir-me de pensar nas mentalidades que necessariamente  alimentavam duas maneiras de estar tão diversas e palpáveis: já por colocarem maturidade, sensatez e seriedade num prato da balança e puerilidade, parvoíce e sobranceria no outro; já por revelarem metas traçadas e ideias bem definidas de par com desordem e deriva, a lembrar folhas no vento de outono; já por traduzirem ora o desejo de reservar lugares na linha de partida para a luta que é a vida, ora a indiferença de quem nem sequer sabe que vai haver luta. Na parte final da carreira, e quase como um balanço que punha em causa muitos anos de esforço (meu e de tantos outros), sentir-me professor, português, europeu, ocidental naquela circunstância foi sentir-me na fossa. Não apenas por aquela minha epifania, mas por saber bem de mais o que se passa na maioria das aulas da nossa escola pública: espaços onde uma parte significativa da rapaziada, cagando-se soberanamente para a sociedade que procura educá-la gastando recursos que tem e não tem, se dedica quase em exclusivo a representar até ao tédio a tradicional rábula do tontinho. Onde o desvario e o caos ditam as suas leis e não falta tudo para poderem ser comparados a manicómios. 
De modo que eu seria a última pessoa a ficar surpreendida com a notícia de um dos últimos números da revista Visão intitulada “novos donos de Portugal: a China tomou de assalto as empresas estratégicas do país e prepara novos investimentos milionários”. Ao mesmo tempo que a lia, as impressões colhidas nesses adoráveis miúdos de olhos em bico começaram a passar-me pela cabeça como num filme. No fim, e mesmo se apenas produto de um fugaz vislumbre da sua maneira de estar na vida, pareceu-me natural e justo que o mundo deles se esteja a preparar para dominar outro em visível decadência, o nosso: é que parecem ter os pés bem mais assentes na terra.

(Nordeste - jul. 2018)

Manuel Eduardo Pires
. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.

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