O Diabo é uma figura que partilha estreitamente o quotidiano do povo nordestino. Melhor dito: tem um lugar cativo no quotidiano do povo nordestino. Quase diríamos que come com ele à mesa.
Mas, antes de prosseguirmos, convém fazer uma distinção. É que não há só um diabo, mas dois: o teológico e o etnográfico.
O primeiro — aquele que frequenta as páginas dos tratados de teologia — movimenta-se num plano a que os mortais não têm acesso. Tem para com Deus uma atitude de afrontamento permanente. Deus, e não o homem, é que é o seu interlocutor. Por isso é uma figura soturna, temida pelo povo, que ouve falar dele nas homilias e guarda cautelosamente as suas distâncias em relação a ele. Não é esse que nos interessa aqui.
Com o Diabo etnográfico — ou seja, o Diabo tal qual o povo o concebe —, pelo contrário, é possível fazer contratos e ajustes, falar com ele quase de igual para igual. Ele desce à terra. Pode dizer-se que é um Diabo humano. Apetece mesmo dizer que é um ‘gajo porreiro’. Dele diz o povo que ‘Deus é bom, mas o Diabo também não é mau’. Tem as mesmas virtudes, os mesmos defeitos e as mesmas reacções da gente comum. Faz ajustes com a gente. Engana muitas vezes o homem e sobretudo a mulher, não poupando a própria mãe: ‘A brincar, a brincar, o Diabo enganou a mãe´, diz outro adágio, e eu confesso que não sei se o verbo ‘enganar’ não terá aqui o sentido, muito vulgar em Trás-os-Montes, de ‘seduzir, obter favores sexuais em troca de promessas falaciosas’ — caso em que se poderia falar de incesto diabólico.
Este Diabo normalmente ganha as apostas que faz com homens e mulheres, mas por vezes lá vem também a ocasião em que é logrado.
É o caso da conta que se segue — conta de um humor algo chocarreiro, em que o Diabo é vencido pela astúcia feminina. De resto, será por estas e por outras que o Diabo parece votar à mulher uma antipatia insanável. Lá diz o ditado: “A pedra ao fundo e a mulher para a romaria, o Diabo as guia.” Quer dizer que o Diabo se encarrega de garantir que a pedra que rola encosta abaixo e a mulher que vai divertir-se na romaria, lugar de muitos perigos, tenham um desfecho desastroso.
Segue-se pois a conta do jogo da unhada, nos termos em que foi recolhido por Alexandre Parafita:
Certo dia um homem encontrou-se com o Diabo que o tentou com a seguinte proposta:
− Desafio-te para jogarmos à unhada tu mais eu. Se tu ganhares, dar-te-ei um saco de dinheiro, se ganhar eu, dar-me-ás a tua alma.
O homem. ao falarem-lhe num saco de dinheiro, aceitou. No entanto, ao chegar a casa deu em cismar no assunto e, daí em diante, já só pensava que tinha feito mal em aceitar a proposta. Andava, por isso, muito triste e preocupado, até que a mulher deu conta e perguntou:
− Que é que tens, homem? Estás doente, dói-te alguma coisa?
− Não me dói nada.
− Então que tens, que andas tão triste?
− Não tenho nada.
A mulher não lhe arrancava palavra. O homem sentia vergonha por ter feito uma aposta com o Diabo, e, por isso, nada lhe dizia. Mas, à medida que se aproximava o dia do jogo, ia ficando cada vez mais triste; até que a mulher, depois de tanto insistir, lá conseguiu que lhe contasse a verdade:
− Olha, apareceu-me um destes dias o Diabo e desafiou-me para jogarmos à unhada. Se eu ganhar dá-me um saco de dinheiro, mas se eu perder tenho de lhe dar a minha alma. E agora que é que vai ser de mim?
− Então é por causa disso que andas tão triste? — disse a mulher. − Não te preocupes mais, que quem resolve isso sou eu.
No dia em que o Diabo veio ter à casa do homem para irem jogar, a mulher sentou-se num banco, arregaçou-se e ficou com as partes à mostra. O Diabo viu-a e perguntou-lhe:
− Que é do teu homem?
− O meu homem não está.
− E para onde é que foi?
− Foi mandar aguçar as unhas, porque hoje é o dia da luta.
O Diabo, nesse momento, calhou de espreitar para a mulher toda arregaçada e perguntou-lhe:
− Quem é que te fez esse golpe tamanho que tens aí no fundo da barriga?
− Foi o meu homem quando estava a experimentar as unhas. Mas diz que ainda não estavam boas, por isso foi-as mandar aguçar mais.
O Diabo engoliu em seco, e tratou de se ir embora, dizendo:
− Diz lá ao teu homem que tem a aposta ganha. Depois cá lhe mandarei o dinheiro, e não quero mais contas com ele.
Mas, antes de prosseguirmos, convém fazer uma distinção. É que não há só um diabo, mas dois: o teológico e o etnográfico.
O primeiro — aquele que frequenta as páginas dos tratados de teologia — movimenta-se num plano a que os mortais não têm acesso. Tem para com Deus uma atitude de afrontamento permanente. Deus, e não o homem, é que é o seu interlocutor. Por isso é uma figura soturna, temida pelo povo, que ouve falar dele nas homilias e guarda cautelosamente as suas distâncias em relação a ele. Não é esse que nos interessa aqui.
Com o Diabo etnográfico — ou seja, o Diabo tal qual o povo o concebe —, pelo contrário, é possível fazer contratos e ajustes, falar com ele quase de igual para igual. Ele desce à terra. Pode dizer-se que é um Diabo humano. Apetece mesmo dizer que é um ‘gajo porreiro’. Dele diz o povo que ‘Deus é bom, mas o Diabo também não é mau’. Tem as mesmas virtudes, os mesmos defeitos e as mesmas reacções da gente comum. Faz ajustes com a gente. Engana muitas vezes o homem e sobretudo a mulher, não poupando a própria mãe: ‘A brincar, a brincar, o Diabo enganou a mãe´, diz outro adágio, e eu confesso que não sei se o verbo ‘enganar’ não terá aqui o sentido, muito vulgar em Trás-os-Montes, de ‘seduzir, obter favores sexuais em troca de promessas falaciosas’ — caso em que se poderia falar de incesto diabólico.
Este Diabo normalmente ganha as apostas que faz com homens e mulheres, mas por vezes lá vem também a ocasião em que é logrado.
É o caso da conta que se segue — conta de um humor algo chocarreiro, em que o Diabo é vencido pela astúcia feminina. De resto, será por estas e por outras que o Diabo parece votar à mulher uma antipatia insanável. Lá diz o ditado: “A pedra ao fundo e a mulher para a romaria, o Diabo as guia.” Quer dizer que o Diabo se encarrega de garantir que a pedra que rola encosta abaixo e a mulher que vai divertir-se na romaria, lugar de muitos perigos, tenham um desfecho desastroso.
Segue-se pois a conta do jogo da unhada, nos termos em que foi recolhido por Alexandre Parafita:
Certo dia um homem encontrou-se com o Diabo que o tentou com a seguinte proposta:
− Desafio-te para jogarmos à unhada tu mais eu. Se tu ganhares, dar-te-ei um saco de dinheiro, se ganhar eu, dar-me-ás a tua alma.
O homem. ao falarem-lhe num saco de dinheiro, aceitou. No entanto, ao chegar a casa deu em cismar no assunto e, daí em diante, já só pensava que tinha feito mal em aceitar a proposta. Andava, por isso, muito triste e preocupado, até que a mulher deu conta e perguntou:
− Que é que tens, homem? Estás doente, dói-te alguma coisa?
− Não me dói nada.
− Então que tens, que andas tão triste?
− Não tenho nada.
A mulher não lhe arrancava palavra. O homem sentia vergonha por ter feito uma aposta com o Diabo, e, por isso, nada lhe dizia. Mas, à medida que se aproximava o dia do jogo, ia ficando cada vez mais triste; até que a mulher, depois de tanto insistir, lá conseguiu que lhe contasse a verdade:
− Olha, apareceu-me um destes dias o Diabo e desafiou-me para jogarmos à unhada. Se eu ganhar dá-me um saco de dinheiro, mas se eu perder tenho de lhe dar a minha alma. E agora que é que vai ser de mim?
− Então é por causa disso que andas tão triste? — disse a mulher. − Não te preocupes mais, que quem resolve isso sou eu.
No dia em que o Diabo veio ter à casa do homem para irem jogar, a mulher sentou-se num banco, arregaçou-se e ficou com as partes à mostra. O Diabo viu-a e perguntou-lhe:
− Que é do teu homem?
− O meu homem não está.
− E para onde é que foi?
− Foi mandar aguçar as unhas, porque hoje é o dia da luta.
O Diabo, nesse momento, calhou de espreitar para a mulher toda arregaçada e perguntou-lhe:
− Quem é que te fez esse golpe tamanho que tens aí no fundo da barriga?
− Foi o meu homem quando estava a experimentar as unhas. Mas diz que ainda não estavam boas, por isso foi-as mandar aguçar mais.
O Diabo engoliu em seco, e tratou de se ir embora, dizendo:
− Diz lá ao teu homem que tem a aposta ganha. Depois cá lhe mandarei o dinheiro, e não quero mais contas com ele.
(Continua.)
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