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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 18 de março de 2023

Viagens — 17 - O Diabo

 O Diabo é uma figura que partilha estreitamente o quotidiano do povo nordestino. Melhor dito: tem um lugar cativo no quotidiano do povo nordestino. Quase diríamos que come com ele à mesa.
 Mas, antes de prosseguirmos, convém fazer uma distinção. É que não há só um diabo, mas dois: o teológico e o etnográfico. 
O primeiro — aquele que frequenta as páginas dos tratados de teologia —  movimenta-se num plano a que os mortais não têm acesso. Tem para com Deus uma atitude de afrontamento permanente. Deus, e não o homem, é que é o seu interlocutor. Por isso é uma figura soturna, temida pelo povo, que ouve falar dele nas homilias e guarda cautelosamente as suas distâncias em relação a ele. Não é esse que nos interessa aqui.
Com o Diabo etnográfico — ou seja, o Diabo tal qual o povo o concebe —, pelo contrário, é possível fazer contratos e ajustes, falar com ele quase de igual para igual. Ele desce à terra. Pode dizer-se que é um Diabo humano. Apetece mesmo dizer que é um ‘gajo porreiro’. Dele diz o povo que ‘Deus é bom, mas o Diabo também não é mau’. Tem as mesmas virtudes, os mesmos defeitos e as mesmas reacções da gente comum. Faz ajustes com a gente. Engana muitas vezes o homem e sobretudo a mulher, não poupando a própria mãe: ‘A brincar, a brincar, o Diabo enganou a mãe´, diz outro adágio, e eu confesso que não sei se o verbo ‘enganar’ não terá aqui o sentido, muito vulgar em Trás-os-Montes, de ‘seduzir, obter favores sexuais em troca de promessas falaciosas’ — caso em que se poderia falar de incesto diabólico.
Este Diabo normalmente ganha as apostas que faz com homens e mulheres, mas por vezes lá vem também a ocasião em que é logrado.
É o caso da conta que se segue — conta de um humor algo chocarreiro, em que o Diabo é vencido pela astúcia feminina. De resto, será por estas e por outras que o Diabo parece votar à mulher uma antipatia insanável. Lá diz o ditado: “A pedra ao fundo e a mulher para a romaria, o Diabo as guia.” Quer dizer que o Diabo se encarrega de garantir que a pedra que rola encosta abaixo e a mulher que vai divertir-se na romaria, lugar de muitos perigos, tenham um desfecho desastroso.
Segue-se pois a conta do jogo da unhada, nos termos em que foi recolhido por Alexandre Parafita:
Certo dia um homem encontrou-se com o Diabo que o tentou com a seguinte proposta: 
− Desafio-te para jogarmos à unhada tu mais eu. Se tu ganhares, dar-te-ei um saco de dinheiro, se ganhar eu, dar-me-ás a tua alma. 
O homem. ao falarem-lhe num saco de dinheiro, aceitou. No entanto, ao chegar a casa deu em cismar no assunto e, daí em diante, já só pensava que tinha feito mal em aceitar a proposta. Andava, por isso, muito triste e preocupado, até que a mulher deu conta e perguntou: 
− Que é que tens, homem? Estás doente, dói-te alguma coisa? 
−  Não me dói nada. 
− Então que tens, que andas tão triste? 
− Não tenho nada. 
A mulher não lhe arrancava palavra. O homem sentia vergonha por ter feito uma aposta com o Diabo, e, por isso, nada lhe dizia. Mas, à medida que se aproximava o dia do jogo, ia ficando cada vez mais triste; até que a mulher, depois de tanto insistir, lá conseguiu que lhe contasse a verdade: 
− Olha, apareceu-me um destes dias o Diabo e desafiou-me para jogarmos à unhada. Se eu ganhar dá-me um saco de dinheiro, mas se eu perder tenho de lhe dar a minha alma. E agora que é que vai ser de mim? 
− Então é por causa disso que andas tão triste? — disse a mulher. − Não te preocupes mais, que quem resolve isso sou eu. 
No dia em que o Diabo veio ter à casa do homem para irem jogar, a mulher sentou-se num banco, arregaçou-se e ficou com as partes à mostra. O Diabo viu-a e perguntou-lhe: 
− Que é do teu homem? 
− O meu homem não está. 
− E para onde é que foi? 
− Foi mandar aguçar as unhas, porque hoje é o dia da luta.
O Diabo, nesse momento, calhou de espreitar para a mulher toda arregaçada e perguntou-lhe: 
− Quem é que te fez esse golpe tamanho que tens aí no fundo da barriga? 
− Foi o meu homem quando estava a experimentar as unhas. Mas diz que ainda não estavam boas, por isso foi-as mandar aguçar mais. 
O Diabo engoliu em seco, e tratou de se ir embora, dizendo: 
− Diz lá ao teu homem que tem a aposta ganha. Depois cá lhe mandarei o dinheiro, e não quero mais contas com ele.

(Continua.)

A. M. Pires Cabral

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