sexta-feira, 24 de março de 2023

Viagens — 22 - Telha de igreja (continuação)

 A expressão ‘telha de igreja’, ao significar a profissão (não tenhamos medo da palavra) do clero, coloca os padres em plano de igualdade com quaisquer outros cidadãos. Isto do ponto de vista económico, claro: se têm necessidades, precisam de meios com que as satisfazer.
Mas há um aspecto em que os padres não estão em plano de igualdade: o plano da sexualidade e das respostas a dar-lhe. Ao impor-lhes o celibato eclesiástico, a igreja deixa o padre em situação delicada e frágil. Um padre em luta com as suas pulsões genesíacas é uma presa fácil da murmuração, e portanto da literatura oral, e, em algumas contas é retratado como prevaricador sexual. Na verdade, as contas não os poupam. Pergunto-me a razão disso, e concluo que deve ser consequência do singular e desumano preceito que obriga o padre ao celibato. Sendo homem como os outros, sujeito à mesma tirania da carne, o padre, a quem os deleites de alcova são vedados, é ipso facto candidato a suspeito — e sabe Deus quantas vezes inocentemente — de se entregar clandestinamente ao culto de Vénus e de fazer ouvidos de mercador à exortação de São Paulo: “Não reine o pecado no vosso corpo mortal de maneira que obedeçais às suas concupiscências.” O facto de, na memória colectiva, andarem bem vivos exemplos não raros de padres envolvidos, alguns assumidamente, com governantas e outras parceiras, ajuda a generalizar a acusação. Casos mais escandalosos, como o do célebre abade de Trancoso, Francisco da Costa, de quem consta que foi pai de 299 filhos, reforçam a ideia de que todo o padre é um potencial pecador carnal. E não falta quem acuse as próprias mulheres de os assediarem e fazerem cair, sensíveis ao magnetismo da sexualidade reprimida dos padres. O mito de Eva, afinal.
O segundo dos cinco mandamentos do padre recolhidos pelo Abade de Baçal junto do povo, diz claramente: 2° Tomar a melhor igreja e a melhor rapariga de todo o mundo.
O que não significa que não haja, da parte do povo, um certo grau de compreensão. É esse o sentido desta quadra, que insinua que o padre prevaricador pode contar com a tolerância da própria hierarquia:

O padre quando namora
C’uma mão tapa a coroa.
Namora, padre, namora,
Que Roma tudo perdoa.

A conta seguinte põe-nos frente a frente com aquilo que um padre está disposto a repartir com uma mulher que acaba de enviuvar.
Era uma vez um homem que morreu. Enquanto o estavam a enterrar, desgraciava-se a viúva:
− Ó homem da minha alma, que tão cedo me deixas sozinha neste mundo! Quem me há-de agora ajudar a beber o vinho das nossas vinhas?
E respondia o padre, a abanar a caldeirinha da água benta, cantarolando:
− Eu e tu e tu e eu! 
Tornava a mulher:
− E quem me há-de agora ajudar a comer as carnes que estão na salgadeira?
Queria ela dizer os presuntos e os salpicões.
E o padre:
− Eu e tu e tu e eu! 
E a mulher:
− E quem me há-de ajudar a romper os meus lençóis de linho?
E o padre: 
− Eu e tu e tu e eu! 
Por fim, dizia a viúva:
− E quem me há-de ajudar a cavar as vinhas e a lavrar as terras que me deixas?
E o padre, muito lesto: 
− Libera nos dominé! 
O que nos faz rir nesta conta? 
No plano do conteúdo, o facto de o padre aceitar partilhar com a viúva a parte agradável da herança (o vinho, a carne e os lençóis de linho, leia-se: os folguedos do leito) mas renegar a parte má, isto é, as canseiras da lavoura. Ou seja: a escolha óbvia, aquilo que o povo do Nordeste ironicamente comenta com um “ai não, que é mosca”.
No plano fónico, é também risível o facto de as respostas do padre — ‘eu e tu e tu e eu’ e ‘libera nos, domine’ — terem ambas sete sílabas, sendo pois entoadas com a mesma música, inspirada em momentos do culto. Deve ainda acrescentar-se que qualquer frase que arremede o latim litúrgico costuma ter um efeito hilariante.

(Continua.)

A. M. Pires Cabral

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