terça-feira, 4 de abril de 2023

Peripécia 3: Engate por aposta

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...) 

Peripécias de um Penalbilhas na Escola Industrial de Bragança

Já no 2º ano, ano lectivo de 73/74,  mudaram-se para a casa dois irmãos que tinham uma irmã a estudar no 5º ano do Liceu, cujos Pais eram emigrantes na Alemanha, tal como os Pais do Penalbilhas. Um dia, a jogar à bola, o mais novo partiu uma perna e teve que ficar internado no hospital. Num sábado, foram todos visitá-lo, excepto o penalbilhas que, por qualquer motivo (coisas de saias, por certo), não pode ir. À noite, ao jantar, todos comentaram a beleza de uma moça, amiga da irmã do acidentado. O Ângelo, que era um incorrigível romântico, virou-se para o penalbilhas e lançou-lhe o seguinte repto: “Tu, ó penalbilhas, que tens a mania de D. Juan e que engatas quem quiseres, aposto contigo em como não tens cabedal para aquela beleza”. Os outros apoiaram e fizeram então uma aposta: se o penalbilhas conseguisse engatar a beldade, ganhava uma cerveja de cada. Caso contrário, teria que pagar uma cerveja a cada um. “Entre eles havia um que já lhe tinha pedido namoro e levado “ patada“.
   Dito e feito. No sábado seguinte, lá foram todos em romaria, visitar o amigo. De facto, além da irmã, estava também a dita princesa. Era, na realidade, uma beldade; mediana de altura, cheiinha, de cabelos loiros, de caracóis suaves, quase oiro, a caírem-lhe pelas costas, de risca ao meio, dentes brancos e alinhados, de sorriso primaveril e uns olhos castanhos, que sorriam ainda mais que a boca!  Tinha a nobreza cintilante de uma deusa. Os olhos eram transparentes como a água de um riacho na primavera. O penalbilhas ficou estupefacto com aquela harmonia fulgurante. Que deslumbramento e que perfeição da Natureza! Era a Mãe Natureza na sua doce  concessão  de generosidade no seu expoente máximo. Para aquela Deusa foi umas mãos largas para compensar outras, em que foi fuinha e uma unhas de fome. Quando sorria, fazia duas covinhas nas faces, onde o penalbilhas sonhou logo em depositar docemente os seus beijos apaixonados.
   Enquanto durou a visita, o penalbilhas, tal pavão, aproveitou todas as oportunidades e truques, nos quais era exímio, para ostentar a sua sedução, o seu fascínio e o seu encanto em toda a sua plenitude.  Procurava irresistivelmente o afago calmante do seu olhar de veludo. Nessa manhã tinha lavado o cabelo, de modo que se apresentava sedoso e maleável, características que o penalbilhas aproveitava para o pentear com os dedos, de vez em quando, de uma maneira lasciva. Ao despedirem-se aproveitou para lhe dizer: “Não sei como ainda te não tinha visto! Espero ver-te mais vezes daqui para diante”. Um sorriso enigmático, e um olhar doce, foi a resposta dela. E o sorrelfas viu logo nesse sorriso uma carícia prometedora.
    O penalbilhas era  um autêntico pinga-amor. Nos dias que se seguiram, não pensava em mais nada; apenas naqueles olhos castanhos, quase cinza, que irradiavam uma luz aurífera que até ofuscava e nos lábios finos que emanavam ternura a rodos, quando sorria. O seu temperamento sentimental inconstante, contrastando com a aparente e falsa solidez, rejubilava e, até escoucinhava, quando, de noite, lhe aparecia aquele rosto suave, quase angelical. Nunca, até então, tinha vibrado e ficado com as ideias tão esfrangalhadas.
     Na quarta feira seguinte, o irmão do hospitalizado ia sair de casa com um embrulho na mão, quando se cruzou com o penalbilhas, que lhe perguntou: “Ondé que bais?”.  “Bou lebar isto à minha irmã. Queres bir?”.  “Hum... Atcho que bou ficar aqui a ´studar, porque amanhã tanho um teste de Geografia“. “Se calhar ´stá lá tamãe a Carminda...” disse com ar de desafio. “Atchas?“ – Perguntou em pulgas. “ Num atcho. Tanho a certeza, certezinha” – respondeu-lhe só para o acirrar. “Num no sei !” – Respondeu só para disfarçar.  “Bá, anda lá. Pra qu´é que te ´stás a armar em ´squesito? – Chalaceou o Bernardo. O facto é que lá foram os dois até ao Loreto, onde viviam as duas e, coincidência! Junto com a  irmã, estava a “Deusa”, como o penalbilhas lhe passou a chamar. Conversaram apenas o suficiente para marcar um encontro no dia seguinte...por ali. De facto, na 5ª feira, mais ou menos à mesma hora, lá se encontraram e foram tomar um café ao snack mais próximo. Combinaram um encontro no Príncipe Negro para sábado, depois do almoço. O prosmeiro não tardou em fazer alarido de tal feito e disse a todos os envolvidos na aposta. Àquela hora, passaram pelo referido café quase todos os interessados e, constataram de facto, o encontro entre os dois, sozinhos, na esplanada. Como todos eram gente de bem, pagaram a aposta e o penalbilhas emborcou meia dúzia de cervejas à custa dos “Pangaios“.  “Ai pensábeins qu´ando a dormir na fronha, ó quê?“ – perguntou com ar natural. Por mais que se roessem de inveja, nada havia a fazer. Contra factos não há argumentos.
     Acima de tudo, o penalbilhas tinha consumado um acto raro: um rapaz da Escola namorar com uma rapariga do Liceu! Não sei porquê, mas as raparigas da Escola babavam-se todas pelos rapazes do Liceu; já as raparigas do Liceu, desprezavam os rapazes da Escola. Havia uma segregação quase instintiva, contra os estudantes da Escola Industrial. Os do Liceu julgava-se mais cultos (e até eram!) e com um futuro com mais requinte. Uns seriam os futuros soldadores, electricistas e torneiros mecânicos da Lisnave, enquanto que os outros seriam os Senhores Doutores e Engenheiros.
     Começaram então a namorar apaixonadamente e assim se mantiveram cerca de mês e meio. Certo sábado de sol quente de maio, foram passear para a estrada da Pousada. Durante uma mera e mesquinha discordância, repentinamente, atirou ela em desafio:
     - Queres apostar?
     - Apostar?!! – Estranhou o penalbilhas.
     - Sim, apostar. Até podemos apostar uma cerveja.
     - Hum... - franziu o sobrolho. – Não estou a entender nada! Eu nem gosto de apostas!
     - Não gostas?! Não é o  que me consta. Segundo...
     - Mas que conversa mais estranha! – interrompeu-a.
     - Tens razão, mas mais estranho foi tu teres apostado uma cerveja em como me “engatavas “.
     - Eu?! Quem te contou tamanha mentira?!
     - Não adianta negares e nem te vou dizer quem foi.
     - Ok. Tudo bem, mas isso foi apenas uma brincadeira, juro-te. Eu gosto de ti e quero continuar a namorar contigo – dizia o penalbilhas apelando a todos os santinhos, de mãos postas, em tom de súplica divina.
     - Pois...lamento muito, mas é que eu tenho sentimentos e tu trataste-me como uma coisa e não te perdoo – disse com alguma aspereza na voz.
    - Foi o rejeitado do Albano, que não se conforma com...
    - Terás que descobrir por ti próprio. Só te digo que não foi ele que me disse directamente.       O nosso namoro acaba aqui. Espero que nunca mais me dirijas a palavra – disse levantando-se da parede em que estava sentada, sacudindo a saia e começando a descer a estrada, em direcção à cidade. – E olha que já estava a apaixonar-me por ti – acrescentou em lágrimas.
   O falmegas manteve-se sentado, durante um longo período sem se mexer, com o pensamento vazio e o coração triste, compreendendo, no entanto, a reacção da Carminda. Ficou como que anestesiado, sem se aperceber da desgraça que acabara de lhe acontecer.
   Nos dias seguintes nunca o vi tão tristonho, cabisbaixo e tão calado. Cheguei até a ter dó dele. Mas o bitcho era transmontano da cabeça aos pés e nunca descorou o estudo. Manteve sempre as notas mais altas da turma!
   Carminda  era uma adolescente bonita, cheia de vida e de beleza. Aliás, todas as raparigas de dezasseis anos são bonitas, pelo menos aos olhos dos adolescentes de dezasseis anos. Ainda hoje deve ser bela, seja qual for a sua idade. A beleza é algo de concreto, que se mantém ao longo da vida, assim como a dignidade. Uma pessoa bonita será sempre bonita ao longo da vida porque, simplesmente, nasceu bonita. Por mais dissabores que tenha durante a vida, a beleza vai estar sempre presente, muitas vezes de forma subtil, mas vai estar; a matriz da beleza manter-se-á e adaptar-se-á aos contornos próprios da idade, sem perder a fonte que a gerou. A beleza de uma pessoa é como a de uma cidade: por mais crimes arquitectónicos e urbanísticos que cometam, jamais conseguirão desfigurá-la. Vejamos a nossa cidade. Bragança será sempre bela porque nasceu bela e bela morrerá, por mais atropelos que lhe infrinjam.

Bragança, mulher bonita
Feita de pedra e de cal
És a cidade mais catita,
Das cidades de Portugal.

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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