quarta-feira, 3 de maio de 2023

O Dick

 Desta vez, sim, sou eu, a brincar com o Dick — o ‘meu’ cão. Teria eu os meus quinze anos e ele sete ou oito. O seu pêlo era castanho dourado e era conhecido em toda a vila por uma característica que o distinguia dos outros cães: era de venta rachada. A miudagem dizia que tinha dois narizes. 
Não era flor que se cheirasse, o Dick, sempre pronto a rasgar o fato a outro cão que se atravessasse no seu caminho. Mas para mim era meigo e obediente, acorria pressuroso ao meu assobio, e aturava-me com paciência de santo as judiarias que às vezes lhe fazia por brincadeira. De resto, adorava brincar comigo, como esta foto, tirada defronte da nossa casa, documenta: tenta tirar-me das mãos um farrapo qualquer que para ele seria um troféu. 
As nossas brincadeiras tinham um público numeroso e interessado que também está na fotografia: eram os alunos da Senhora Clarinha Vaz, educadora de infância ‘avant la lettre’, que tinha a sua escola num baixo da nossa travessa, que, a propósito, se chamava Travessa Camões.
O Dick esteve connosco uns onze ou doze anos. Quando mudámos de casa, acompanhou-nos alegremente, ao contrário dos gatos (o Lhau e o Bel), que demoraram a afazer-se à nova residência. Assistimos com tristeza ao seu envelhecimento, que foi de facto rápido e doloroso: praticamente cego, a embarrar nos móveis, com um apetite devorador pela a açorda que a minha Mãe lhe punha na cunca. 
Até que uma manhã acordou com fastio: não tocou na açorda. Nesse dia não obedeceu ao meu assobio. Havia um assobio mais premente a chamar por ele: o da morte. Todos derramámos uma lágrima em sua memória. E lá foi a enterrar numa cova que lhe abriram algures. Era um senhor cão, o Dick. Ainda hoje, quando me lembra a amizade, lealdade e paciência que me dedicou, sinto um estremecimento no lugar do coração.

A. M. Pires Cabral

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