quarta-feira, 21 de junho de 2023

Os homens maus

Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

“A menha pesora dise que os homens maus estragão o abiente e matam us animais os homains maus puluaim os rius e atiram muintos pelasticos para o mar e depois us peijes comaim-os e morrein as fabricas deitão fumu para atemusvera e as pesoas respirão u ar e ficaum duendes a milha abó jacinta dis que os fumos dus carus estragau o ar e cagora já não a inbernu e nu brão a muintus fogus i us homeins maus tamain cortaum as arbes das fulorestas”.

Sem tirar nem pôr, a deliciosa composição da iara marlene, uma garota de oito anos vivíssimos que (tirando o exotismo do nome próprio) não pode ser mais nordestina e a meio do primeiro ciclo está já a surfar a onda das preocupações ambientais. E que bem lhe fica! Se eu fosse seu professor ralar-me-ia pouco com a contenda desigual que ela vai travando com as imposições da língua escrita que, diga-se, até me enternece. Porque, bem vistas as coisas, isto de o mesmo som se mascarar com várias letras, de a mesma letra representar diferentes sons, de haver sons tão parecidos que mal se distinguem ou de uma mesma palavra mudar completamente de figura consoante saia da boca do pai ou da diretora da escola, entre imensas outras bizarrias, são coisas que não podem deixá-la bem impressionada e talvez a incompatibilizem irremediavelmente com o mundo dos adultos. Já no tocante à ideia que lhe foi incutida de que as agressões ao ambiente são obra de homens que têm tanto de perversos como de abstratos, aí sim, o assunto, por muito mais sério, exigiria da minha parte inadiável intervenção pedagógica.
Não seria talvez fácil converter tudo numa linguagem clara e acessível de maneira a que ela compreendesse o que nesta questão está verdadeiramente em jogo, mas a didática foi inventada para isso. Poderia começar por adiantar-lhe a ideia de que estamos todos, bons e maus, novos e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres, espertos e burros, sábios e ignorantes, amarelos, brancos, negros e vermelhos, estamos todos, dizia, enterrados até aos cabelos em algo a que se chamou revolução industrial. Que ela tem implicado fazermos gato-sapato da natureza que nos dá o ser e alimenta, ignorando que tudo o que lhe fazemos é a nós próprios que o fazemos. Que essa falta de respeito tem implicado extrair, explorar, transformar, construir, fabricar, transportar, anunciar, expor, distribuir, vender, trocar, comprar, traficar, usar, gastar, acumular, esbanjar, dissipar, exibir, rejeitar, estragar, delapidar, destruir, massacrar, arrasar. Que a insanidade é tanto maior quanto se sabe que, de modo geral, temos tendência a sentir-nos extremamente miseráveis caso não consigamos alinhar nela de corpo e alma, freneticamente, como se de uma fé redentora se tratasse. Que tal conjunto de atividades tem vindo a crescer em proporção aritmética desde que começou há trezentos anos, mais década menos década, sendo indispensável para o levar a cabo uma quantidade prodigiosa de uma coisa chamada energia, obtida a partir do equivalente a milhões e milhões de fogueiras que acendemos diária, continua e afanosamente, produzem os fumos a que ela se começa a mostrar sensível e refere de forma pertinente. 
Seguir-se-ia a parte certamente mais chata da minha preleção, após a qual eu próprio me arriscaria a ser considerado um homem mau mesmo a sério: a de lhe fazer ver que neste gigantesco processo há poucos inocentes, a começar pelo telescópio hubble e a acabar nela própria.  É que tudo aquilo que está a usar no momento em que a mãe, apreensiva, me mostra o papel (– Já viste quanto erro dá, manel?), absolutamente tudo, desde a chicla que masca com visível prazer e desenvoltura de boca até ao elástico que lhe prende o rabo-de-cavalo, poderia ter incluído na sua redação para substituir, com muito mais rigor, os homens maus a quem pretende dar a sarabanda.   
Depois talvez concluísse exortando-a a passar esta ideia a todas as iaras, em quem reside a esperança de erradicar a lógica materialista, consumista e predatória dominante e colocar de alguma maneira um travão nas calamidades que aos quatro ventos se anunciam e ela bem explicita já. É que se alguma esperança existe reside inteirinha nela e nos da sua geração, pois com os cotas da minha já não vamos lá. De tão imersos que estamos na fumarada, e não obstante termos começado já a tossicar, não a conseguimos ver.

(Nordeste - out. 2018)

Manuel Eduardo Pires
. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.

1 comentário:

  1. Simplesmente magnífica esta abordagem ao assunto.
    Tantas, mas tantas, atitudes e comportamentos que deveríamos alterar no nosso dia-a-dia. O comodismo, ou a falta de formação e sensibilidade, não nos deixa ver mais longe que a ponta do nosso próprio nariz.

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