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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Como Uma Viajante de Sonhos

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


Ter uma alma que se formou a partir não de uma, mas de várias sementes que, em algum momento, foram plantadas em diversos jardins do mundo, pode ser um privilégio. Pela vida, o germinar de sentimentos, abraçados a memórias tão variadas quanto a brisa dos ventos, torna-nos viajantes de sonhos. Nas mãos transportamos uma espécie de voo de esperança.

Seria esse o legado que a minha mãe de África pretenderia oferecer-me antes de, um dia, termos ambas seguido adiante por outras jornadas e peregrinações.
Recordo a Amélia, que cuidou de mim ainda em flor. A bisneta de um verdadeiro viajante de sonhos que, na altura, já havia partido para outras dimensões deixando aqui ficar o brilho negro dos olhos profundos e o sorriso branco, gigante, do rosto de Amélia.
Sentada ao seu colo, e ao som de um sotaque tão característico, ouvia-lhe as muitas histórias que recordava do bisavô, quem ela dizia ter sido um velho ancião de forte e corajoso coração banto, sabedor de muitas verdades que só os espíritos mais iluminados têm a honra de possuir dentro de si.
“Temos qui contá estórias porque a verdade, às vezes, dói muito!”, aconselhava.
E acrescentava que as histórias fazem nascer em nós uma outra humanidade que  nos transforma em pessoas mais felizes. Por isso, o bisavô ensinara-lhe que, quando descobrimos sonhos ao olharmos para uma noite estrelada sobre os planaltos, experimentamos a alegria da vida noutros reinos distantes.
Penso que o que o velho ancião, que agora desconfio ter sido, porventura, um valoroso xamã, terá ensinado a Amélia quando era ainda criança e que ela queria transmitir-me também, era essa sabedoria de que nos fala a natureza na sua relação com algo superior.
Apesar de muito pequena, sentia que as histórias dos sonhos da minha mãe de África, ou do bisavô dela, me tranquilizavam o espírito rebelde da minha primeira infância. Contava-mas, principalmente, depois de dar solução às minhas aventuras mais afoitas e desculpas disparatadas que a faziam arregalar os olhos e colocar a cabeça entre as mãos para, logo a seguir, as sacudir em gestos largos pelo ar: “Chiii minina! Bassopa… Ni ta kuba! Suca, suca… É maningue canganhiça aqui!!!”.
A seguir, ia buscar um pequeno tambor de madeira que guardava num velho armário e nele fazia ressoar ritmado batuque, enquanto entoava estranho cântico com o qual, imagino, pretendia enviar para longe abominados espíritos que me pudessem perturbar.
Outras vezes, garantia a minha presença junto dela enquanto as suas raízes xamânicas nos envolviam num perfumado banho de ervas com aroma adocicado, numa espécie de ritual de purificação.
Depois das histórias, invariavelmente, seguia-se o nosso ansiado passeio do dia. O olhar doce dela contemplava-me de alto a baixo e rematava sempre com orgulho, enquanto me prendia os cabelos soltos com o ganchinho em forma de flor: “Ya, xonguila! Podemos ir.”.
E íamos de mãos dadas. O corpo de Amélia ainda roliço, debaixo das capulanas coloridas e os cabelos já esbranquiçados escondidos por lenços estampados de várias cores, não lhe denunciavam a idade.
Por vezes, seguíamos a pé pelas avenidas enfeitadas de acácias que pareciam pender dos telhados do céu, ao encontro do pôr-do-sol e do ranger das tábuas de madeira, sob os pés e os corpos dançantes dos homens e mulheres, a libertarem o suor da alma e as vozes alegres ao som da marrabenta. Aqueles movimentos e sonoridades quentes, à luz do sol poente, enfeitiçavam-me o olhar de menina e ali me deixava encantar no sentir despreocupado de um infinito que me era ainda tão incompreensível.
Outras vezes, Amélia apertava-me a mão e fazia-me correr, às gargalhadas, para apanharmos o autocarro. “Anda minina, machimbombo foge, não espera, não!”, gritava, em tom estridente.
Viajávamos até ao bazar da cidade. Pelo caminho, guardo a sensação do calor húmido que me corria pelo rosto. No ar, o cheiro do caril acabado de cozinhar, do milho torrado, dos cajus assados e o aroma fresco das catembes, trazido pela distância das ruas onde as palmeiras faziam sombra.
Lá chegadas, ouvia a voz divertida da Amélia, “Hawena ntombi! I malè muni?”. E, por entre todo aquele ambiente tropical, nunca deixava de haver à minha espera o sabor inesquecível de uma manga ou papaia maduras, um sumarento e refrescante ananás ou maracujá, ou a textura macia dos abacates que faziam as minhas delícias.
Como um instante entre a terra e o céu. Assim é uma das mais bonitas formas, que encontro, de recordar as minhas origens…
Sou privilegiada por ter vivido os meus primeiros anos de vida ao lado de uma alma tão pura como a de Amélia, que soube, com a sua humilde sabedoria, tornar-me igualmente uma viajante de sonhos.
Nesses tempos, fugindo constantemente à desesperança e fúria dos homens, Amélia, a minha mãe de África para quem fui a única filha que teve, trouxe-me os ensinamentos do seu bisavô.
Um bisavô que não foi apenas um simples narrador de grandes histórias, mas terá sido também um poeta, um músico da vida que, na sua ancestral sapiência, descobrira, lera e resolvera alguns dos mais profundos enigmas do mundo.
Com ele, Amélia aprendera que não deveria existir distinção entre os homens e a natureza. Afinal, se somos uma parte de Deus, então os homens e a natureza abraçam em si o mesmo coração. E, por essa razão, todos os homens deveriam empenhar-se em falar uma língua da mesma cor.
Porque, “Quem mata os sonhos não é Deus, minina… são os homens.”.
Hoje, com uma emoção que não descubro em palavras e uma gratidão imensa por ter nascido naquele magnífico continente e te ter tido junto a mim, Amélia, quero dizer-te, seja qual for o ponto do firmamento em que te encontres neste exato minuto e seja qual for a matéria de que agora sejas feita:

Mamani, nitlanguelile! Kanimambo.

Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021: Cultura sem Fronteiras (coletânea de literatura e artes) e Nunca é Tarde (poesia).
Prefaciadora do romance Amor Pecador, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021) e da obra poética Pedaços de Mim, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021).
Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."-Bragança, da Revista HeliMagazine e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, sendo administradora da página de poesia e fotografia, Flor De Lyz.

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