quarta-feira, 29 de novembro de 2023

A Embaixada - Na Madrugada dos Tempos – Parte 16

 O que faz que os homens formem um povo é a lembrança das
grandes coisas que fizeram juntos e a vontade de realizar outras.

Ernest Renan
Escritor e historiador francês.
(1823-1892)

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Os dias estavam mais claros e o frio já não mordia os ossos com a mesma intensidade. Havia um vento suave que acariciava a planície e trazia o cheiro de primavera. As montanhas distantes, porém, continuavam com os cumes alvos, os ursos não deviam aparecer por enquanto, mas não tardariam.

Erem sentia-se cansado e não ficou nada aborrecido quando os caçadores disseram que não havia necessidade de fazer parte dos grupos. Graças à franca colaboração com os estrangeiros residentes e agora reforçados com os companheiros do convalescente Tibaro, havia homens e mulheres suficientes para a caça. Os seus quase quarenta e oito anos pesavam-lhe e o frio do inverno parecia não lhe ter ainda saído dos ossos, mesmo ali, sentado ao sol à porta da sua casa redonda.
Com os olhos fechados, deixando-se levar pela letargia, começou a chegar-lhe ao ouvido um rufar longínquo. Ergueu-se subitamente desperto. Recentemente acordaram que haveria sempre duas pessoas de vigia, durante o dia, no alto de um monte próximo. Quando fosse avistada a aproximação de alguém, faria ressoar com pancadas um enorme tronco oco que arrastaram para lá. Sequências de uma pancada, intervalada com duas batidas rápidas, significava uma pessoa, duas pancadas, três, seriam três ou mais. O batuque era constante e isso era alarmante.
O chefe correu até ao topo da colina onde já tinham chegado outros aldeãos que discutiam acaloradamente. Os vigias, um era uma das suas sobrinhas e outro um neto de Tailan, apontaram nervosamente o extremo norte da planície. Distinguia-se perfeitamente um grupo de cerca de trinta indivíduos armados de lanças que descia o caminho em direção ao casario de Barinak, logo atrás havia mais uns quantos que parecia arrastarem algo. Chegariam primeiro ao agrupamento de casas onde Tailan e a maioria dos estrangeiros residia.
— Depressa, vão ter com Lemi e Tailan, que reúnam os homens que houver por aí e vão para o extremo do povo no caminho da montanha. — Erem enviou os vigias, sentindo-se preocupado por a maioria dos homens se encontrar na caça ou a arrastar as pedras do santuário. — Que levem armas. — Depois voltou-se para outro dos homens: — Corre a avisar Zia do que aqui vimos. Ela que reúna as mulheres capazes de lutar e vão lá ter também.
Acompanhado de vários dos que já se encontravam no alto da colina, Erem apressou-se na direção que indicou ser o ponto de encontro onde esperariam os forasteiros que se aproximavam. Se viessem com más intenções teriam de lutar. O que o preocupava era que, mesmo conseguindo igualar o número de inimigos, seria com mulheres pouco habituadas a usar as armas e os homens que, como ele, já não estavam na melhor das formas. O seu coração apertava-se com a ideia de que viriam em busca dos assaltantes que estavam agora mortos e atirados do penhasco para onde era arremessado o lixo da aldeia.
Atravessou o “bairro” dos estrangeiros, onde já não passava há muito, que era simbolicamente separado do resto do povoado por um pequeno regato, afluente do largo rio que fornecia água e peixe à população. As construções alinhavam-se ao longo do trilho calcado a que chamavam o caminho da montanha que serpenteava até ao limite do casario. Reparou, com admiração, que já havia muitas casas e poucas tendas, desde a sua autorização para que fossem construídas. Como era cada vez mais difícil encontrar pedra suficiente e a pouca distância, para todas as casas, várias delas já eram completamente construídas em adobe e apenas cobertas de colmo; havia-as quadradas, redondas, retangulares, as tradicionais redondas de pedras empilhadas eram uma minoria. Com a utilização dos ângulos retos, havia vários exemplos de habitações geminadas partilhando o telhado. Qualquer uma delas tinha uma área muito superior à da humilde palhota de Erem e possuir mais do que uma divisão. Algumas tinham até as paredes alvas como a neve, cobertas do que parecia ser um pó que, embora sujasse as mãos, não saía da superfície.
O chefe chegou ao extremo da povoação. Os invasores ainda não se avistavam devido ao relevo do caminho sobre uma suave colina. O seu olhar analítico observou como a linha de árvores não andava longe do casario e como seria fácil um atacante mal-intencionado chegar por ali, em vez de o fazer pelo caminho. Começavam, entretanto, a chegar alguns aldeãos, com ar preocupado, mas todos traziam lanças ou ferramentas com que pudessem causar dano. Olhou o simples punhal de cobre que trazia à cintura e perguntou-se se não deveria ter ido buscar a sua lança também.
O vento suave carregava as nuvens que obscureciam o sol, a espaços; o frio que se fazia sentir lembrava que a primavera ainda era uma criança e o inverno não andava longe.
Quando os invasores chegaram ao alto da elevação, já havia perto de quarenta elementos a esperá-los e eles imobilizaram-se à vista das primeiras casas, parecendo conferenciar.
Zia foi a última a chegar. Trazia um grupo de dez ou quinze crianças armadas de fundas. Numa guerra, toda a ajuda é pouca, dizia o sorriso dela para o olhar interrogativo do chefe.
Àquela distância, já se podiam distinguir os recém-chegados; com exceção de dois deles, todos trajavam igual; a cabeça tapada com chapéus castanhos, túnicas cintadas que desciam até ao joelho, tendo depois as canelas e os pés cobertos por peles. Além da lança, onde reluziam as pontas de cobre, traziam o que parecia ser um pedaço de madeira forrado a pele. Era óbvio que se tratava de gente preparada para combater. Os outros dois aparentavam um aspeto diferente, com longas túnicas; uma cor de sumo-de-uva e a outra preta, cabelos longos a cair até aos ombros e grandes barbas.
Não se ouvia um murmúrio do lado dos defensores de Barinak, quando um dos invasores se afastou dos restantes e caminhou para a povoação em passo largo, mas pausado, erguendo bem as mãos nuas.
— Saudações e paz, vos envia Mirsulo, déms pótis[1] de Hatiweik. — Falou o homem numa voz forte e clara, embora com sotaque carregado. — Que Tarunte, deus da guerra e da paz, vos dê muitos filhos e alimento para todos. — Pousou a mão direita sobre o coração e fez uma curta e respeitosa vénia.
— Saudações e paz, estrangeiro. — Erem adiantou-se. — Que nos quer Mirsulo, com tantos homens preparados para a guerra?
— Peço perdão em nome do meu senhor. — O homem parecia versado em diplomacia. — Os caminhos são perigosos e Hatiweik tem muitos inimigos. Os homens são para proteção e não para a guerra. Mirsulo veio pessoalmente buscar o seu filho Tibaro, para o honrar enterrar junto dos seus antepassados. Disseram-nos que se encontrava com Erem, déms pótis de Barinak.
Levantou-se uma onda de murmúrios felizes entre os atemorizados defensores.
— Eu sou, Erem, filho de Birol. — Continuou o chefe. — Mas o teu senhor está enganado, Tibaro não morreu. Está vivo e recupera dos seus ferimentos.
Após uma rápida expressão de alegria, o emissário perdeu toda a compostura e partiu numa corrida a reunir-se aos seus.
Desta vez foram os dois elementos que se destacaram do grupo e avançaram rapidamente, seguidos de perto pelo emissário. O homem de preto tinha um ar austero e grave por baixo do chapéu de couro entrançado. As espessas barbas pareciam querer fugir em todas as direções de tão desengraçada carranca. O seguinte trazia os cabelos soltos decorados com pequenas esferas e apenas um fio em volta da cabeça suportando um disco reluzente no meio da testa. Iguais discos pendiam em cada uma das orelhas e um ainda maior ao pescoço, pousado sobre a túnica cor de vinho decorada com finos entrançados e pedaços de peles. O seu rosto visível por cima da barba aparada exibia confusão e alegria quando se dirigiu a Erem:
— És o guardião do meu filho e também o seu salvador? — O homem pousou a mão sobre o coração. — Se tal coisa é verdade, pois só acreditarei quando vir com os meus próprios olhos, serás o meu irmão mais querido que aqueles do meu próprio sangue!
Mirsulo, felicíssimo, agarrou e abraçou um atordoado Erem, antes que qualquer pessoa pudesse reagir. Ato contínuo, os soldados soltaram grandes gritos de alegria, embora mantendo a distância.
Confundido, mas agradado, ao mesmo tempo, Erem sorriu e pediu-lhe que o seguisse até ao convalescente. O acompanhante de Mirsulo, sem perder o seu ar austero, seguiu-os como uma sombra silenciosa. O caminhar dos dois chefes lado a lado foi o mote para o “desmobilizar das hostes” e os defensores dividiram-se, uns atrás deles e outros para junto dos soldados, a saciar a curiosidade.
Nehir, que se recusava sempre a participar nas atividades que envolvessem mortos e feridos, aguardava na sua tenda, tristemente, que começassem a chegar as primeiras vítimas. Qual não é o seu espanto, vê chegar o pai e um estrangeiro vestido com roupas estranhas, a conversar alegremente, logo seguidos por quase toda a aldeia misturada com outros estrangeiros.
O encontro entre Mirsulo e Tibaro foi comovente, o chefe estrangeiro não conseguiu deixar de verter uma lágrima. Apesar de ter dez filhos, aquele era o mais velho e o que ele esperava que lhe sucedesse. Não o conseguia dissuadir de participar nas caçadas… e esta quase lhe tinha sido fatal.
Apesar de quase não se conseguir ouvir, Tibaro falou com o pai e acalmou-o, dizendo que se sentia bem melhor e tecendo elogios à curandeira, à sacerdotisa, ao extraordinário chefe de Barinak e ao seu povo acolhedor. Foi o momento do silencioso companheiro de Mirsulo intervir e questionar diretamente o doente sobre o tipo de tratamentos que lhe fizeram.
Ao ver o esforço que Tibaro fazia para falar e notar que a sua respiração ficava cada vez mais ofegante, Nehir tocou no braço do estranho e pediu-lhe que não o maçasse mais; ela responderia a todas as perguntas.
O homem, que estava curvado sobre o doente, ergueu-se e deu um passo atrás, olhando-a com um misto de desdém e escândalo: — Quieta, mulher! — Ordenou rispidamente numa voz de barítono. — Quem te deu ordem para falar?
Imediatamente, qual leoa a defender a cria, Zia colocou-se ao lado da filha: — Tu é que precisas de autorização para falar, homem! — Ela apontou-lhe o dedo ao peito. — És um convidado na tenda dela e nesta aldeia!
— Parem! — Interveio Erem olhando interrogativamente para Mirsulo.
— Elas têm razão, Savírio. — O chefe estrangeiro advertiu sem sorrir. — És um convidado aqui. Tens de respeitar os costumes. — Depois olhou diretamente para Erem e explicou. — Não estamos acostumados que as mulheres desempenhem estas funções e muito menos interpelem diretamente os homens.

[1] Proto-indo-europeu: “Senhor de sua casa”, derivará em déspota.

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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