quarta-feira, 31 de julho de 2024

PINHO DA SILVA - TERESINHA

 Chamava-se Teresinha, e fazia hoje anos. Era morena, daquele moreno, centeio e transmontano que tem sol por dentro: rosto bronzeado de princesinha moira, seus olhos reais abertos para a irrealidade das coisas e das almas!...

Chamava-se Teresinha, e fazia hoje anos...

Tinha fartos cabelos insculpidos de ondas profundas, em pau-preto filamentado e dúctil. Quando saltava às cordas (" zás! zás! za´s! ") os pés muito juntinhos, aos pulos, saltando e saltando, – e a corda vermelha descendo e batendo: ("prás! prás! prás! “) os grossos e espiralados caracóis cor-de-noite, que lhe ladeavam a carita de porcelana tostadinha, também saltavam ("zás! zás! zás! "); também batiam ("prás! prás! prás!"): eram como sinos de carrilhão alegre, bimbalhando, em catedral de esperanças, um hino infantil de avezinha amanhecida...

Teresinha garota e traquina esfuziava, pelo liceu da Praça do Coronel Pacheco, como rastilho lúdico, estralejando risos e conquistando simpatias. Qual das suas antigas condiscípulas a recorda sem saudade?!...

Ai, as aulas do primeiro ciclo, com Teresinha, criança, sobre um banco para chegar ao quadro!...

Ai, as molhadelas até aos ossos, e os sapatos afogados!...

Ai, os outros sustos da " pedra-do- estiquete!..."

Ai, a figura sinistra e negra, da talvez ex-freira!...

Ai, o grande casarão monástico, transformado em cortiço minérvico de abelhinhas esculpidas em corolas rociadas !

Teresinha cresceu. Fez-se senhora. Já não saltava às cordas (" zás! zás! zás!"), os pés muito juntinhos, aos pulos, saltando e saltando, – e a corda vermelha descendo e batendo: (" prás! prás! prás! ")

Teresinha cresceu...

Casaquinho vermelho, de botões prateados, e saia escocesa; livros entalados no braço, na cabeça uma boina clara; no rosto uma larga pincelada de sol, onde bailavam sombras oscilantes de roseiras, e brilhavam dois olhos luminosos e meigos, semicerrados pela violência da luz estival, estou a vê-la chegar das aulas. Do alto do patim da escada, junto da qual floriam jarros, quantas vezes a esperei! E ela ao ver-me esperá-la, a sorrir:

- "Olá! Está ai?!"

- "Não! Estou lá fora! "

Teresinha parava. Olhava-me, entre risonha e trocista:

 - "Com que então o " senhor" está lá fora?! Ora não querem lá ver?!!! "

E porque era transmontana, e achava delicioso, e saborosamente arcaico, certos termos e expressões da sua terra: (- " Dê-me um cibinho de pão!"; - " Colhi um mandil de casulas chicharas..." - "Estava arrimado ao fundo das escaleiras"), por vezes rematava apenas:

- " Ora não?"

No ar cruzavam borboletas brancas, e diluíam-se vagos perfumes de roseirais em flor!

 Ao longe, gemiam rolas...

Lembras-te desse tempo, Teresinha?

Tu lembras-te?

" Ora não"?

Com areia fina entre dedos de criança, o tempo fugiu imperceptivelmente...

Teresinha acalenta os filhos. Por duas vezes ela os vê florir entre os seus braços:

- " Já se quer erguer!"

- " Já tem dois dentinhos!"

  - "Já começa a andar! "

- "Já diz:"mamã"!

Teresinha mamã, sente-se inundada de felicidade!

Aperta ao coração os pequeninos que Deus lhe deu, e ergue os belos e grandes olhos castanhos para o azul do céu...É de lá, desse lago aéreo onde vagam as pombas, que descem os anjos pequeninos!...

- "Já se quer erguer!"

- "Já tem dois dentinhos!"

- "Já começa a andar! "

- "Já diz: "mamã!"

Lembras-te desse tempo, Teresinha? Tu lembras-te?

"Ora não"? "Ora não", Teresinha?

Na sua cama de doente, debaixo de uma colcha alvíssima e bem esticada, Teresinha geme baixinho. Sobre os grandes olhos castanhos, como sobre o seu espírito, que tão luminoso foi, desceu a treva. Lá fora também há escuridão: a escuridão da noite e das almas! E há gemidos: os ventos de Novembro, envolto em bátegas de chuva e de granizo...Noite de lágrimas!...

Lutando contra tudo e contra todos, os filhos conseguem chegar à sua cabeceira. Afagam-lhe a cabeça torturada; beijam-lhe o rosto crispado; apertam entre as suas mãos de homens as mãos femininas que lhes ampararam os primeiros passos...Mas Teresinha é tão infeliz que não se apercebe da sua presença, e continua a gemer baixinho...

Ai, as cordas vermelhas descendo e batendo!

Ai, os pés de Teresinha pulando e saltando!

Teresinha menina...

Teresinha estudante...

Teresinha mulher...

Teresinha mamã...

Chamava-se Teresinha e fazia hoje anos!

 Pobre Teresinha!...

Transcrito de: “ O Comércio do Porto” – 01/08/1969 – secção:  “Apontamentos”.

PINHO DA SILVA – (1915-1987) – Nasceu em Santa Marinha, Vila Nova de Gaia. Frequentou o Colégio da Formiga, Ermesinde, e a Escola de Belas Artes, do Porto. Discípulo de Acácio Lino, Joaquim Lopes e do Mestre Teixeira Lopes. Primo do escultor Francisco da Silva Gouveia. Vilaflorense adotivo, por deliberação da Câmara Municipal de Vila Flor.
Tem textos  dispersos por várias publicações, entre elas: “O Comércio do Porto”, onde mantinha a coluna “ Apontamentos”, e o “Mundo Português”, do Rio de Janeiro, onde publicou as “ Crônicas Lusíadas”. Foi redator do “Jornal de Turismo”, membro da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, e secretário-geral da ACAP. Está representado na selecta escolar: " Vamos Ler", da: Livraria Didáctica Editora, com o texto : " Bacos e redes".

Nota do "Memórias": Pinho da Silva era Pai do nosso estimado amigo e colaborador, Humberto Pinho da Silva e "Teresinha" era Sua extremosa Mâe que nasceu em1 de agosto  de 1915 e faleceu  em 30 de Novembro  de 1968.

Sem comentários:

Enviar um comentário