sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A imprensa periódica de Moncorvo no século XIX

Por: César Urbino Rodrigues
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

INTRODUÇÃO

 Não podemos analisar a imprensa do século XIX, como qualquer outro fenómeno da História, com os critérios epistemológicos dos dias de hoje. Pelo contrário, devemos situá-los no seu contexto histórico e percebê-los à luz dessa época.
 No século XIX, os índices de analfabetismo ainda eram muito elevados e os instrumentos ou meios tecnológicos de comunicação de massas resumiam-se ao jornal escrito. A rádio, a televisão, o telemóvel e a internet ainda nem utopias eram, visto que ainda não tinham sequer desabrochado no campo da imaginação. 
Os jornais poderiam ser lidos por um número reduzido de pessoas, as poucas letradas que haveria em cada aldeia e até nas sedes de concelho. Mas faziam  opinião porque amplificavam o boato, espalhavam a notícia, lançavam a suspeita, denegriam o inimigo, bajulavam o amigo. Não havendo telefone, a notícia da aldeia chegava à redação, e quando chegava, acontecia com um significativo atraso. 
No plano político, dera-se já a Revolução Francesa, as invasões francesas também tinham sido ultrapassadas, as lutas entre liberais e absolutistas tinham acontecido algumas décadas atrás, e os Partidos Regenerador e Progressista iam--se revezando nos corredores, tanto do poder central como do local. É neste contexto que temos de ler e interpretar a imprensa periódica de Moncorvo ou de qualquer outro concelho na época que agora vamos analisar.

OS TÍTULOS

 Embora no distrito de Bragança, o primeiro jornal – por sinal, manuscrito tenha aparecido na década de trinta do século XIX, em Moncorvo o primeiro surge apenas na década de noventa do mesmo século, ou seja, em 1891.
 Curiosamente, em Carrazeda de Ansiães, um concelho mais pequeno e de menor importância estratégica que o de Moncorvo, o primeiro jornal – O Século – apareceu em 1876, tendo sido o terceiro do distrito, assim como foi em Carrazeda de Ansiães que surgiu, em 1880, o quarto jornal do distrito – Correio do Norte.
 O primeiro jornal de Moncorvo tinha como título O Moncorvense, aparecendo o nome de António J. Vieira Barros como responsável pela sua administração. Dizia-se «político, literário e noticioso». Tratou-se de um jornal que teve uma vida relativamente prolongada, como se pode ver no fac-símile da primeira página do n.º 157, de 1894, que publicamos.
 Um ano fértil para a imprensa de Moncorvo foi o de 1897, já que, em março e abril desse ano, viram a luz do dia dois semanários, ambos com clara conotação político-partidária, ainda que de sinal contrário: um designado Moncorvo, afeto ao Partido Progressista; e outro, Jornal de Moncorvo, ligado ao Partido Regenerador, dando-se o caso curioso de o primeiro ter como diretor o Padre Adriano Augusto Guerra, um antigo regenerador que se passou para o campo contrário por se sentir enganado durante muitos anos, como ele argumenta no seu primeiro editorial.
 O Padre Adriano Guerra, que também era o proprietário do Colégio de Santo António, em Moncorvo, sediou o jornal no próprio Colégio. Por baixo do título, no Moncorvo dizia simplesmente um «jornal semanal».
 António J. Vieira Barros, que já fora o administrador do primeiro título do concelho, volta a ser administrativamente responsável pelo Jornal de Moncorvo, que também diz ser, como o primeiro, «semanário político, literário e noticioso».
 O quarto jornal do concelho, no século XIX, surgiu já quase na transição do século, mais precisamente em 1898, e tinha como título O Independente do Norte. Não se pode deixar de registar o facto curioso de a sede do mesmo estar instalada em Coimbra, onde residiam os seus responsáveis, com vontade certamente de regressarem à sua terra de origem.

 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS

 Somos dos que acreditam que todo o comportamento humano tem por detrás de si uma motivação qualquer, um fim a atingir, à semelhança do que dizia Aristóteles, imortalizado no latim dos escolásticos: omnis agens, agit propter finem (todo o agente, age por um fim).
 
Efetivamente, todos os títulos da imprensa periódica que surgiram no século XIX, em Moncorvo, tinham, além de outras, motivações de natureza política, já que todos eles aparecem a defender as posições do Partido Regenerador ou do Partido Progressista. Curiosamente, três deles – O Moncorvense, Jornal de Moncorvo e O Independente do Norte–eram afetos ao Partido Regenerador, enquanto apenas Moncorvo era afeto ao Partido Progressista, embora logo no primeiro número o seu diretor, o Padre Adriano Guerra, sentisse a necessidade de justificar porque é que tinha mudado de posicionamento na arena da luta partidária, ou seja, do Partido Regenerador para o Partido Progressista.
 Estas motivações político-partidárias apareciam expressas de uma forma explícita e sem rodeios, ou eram camufladas em posições de independência e isenção político-partidária que, no entanto, eram contrariadas pelo conteúdo informativo e combativo do jornal a favor de um dos partidos mais fortes a nível nacional. 
Assim, O Jornal de Moncorvo, em cuja primeira página consta apenas o nome do seu administrador, António J. Vieira Barros, o mesmo aliás de O Moncorvense, dirige-se assim aos eleitores:

À urna pelo candidato a deputado pelo partido regenerador! Todos os que não o fizerem são traidores, e prejudicam os seus interesses e direitos e os dos seus conterrâneos, são ladrões de si próprios! (…) À urna, pois, pelo candidato apresentado pelo partido regenerador que criou em Vila Flor uma comarca e aumentou a ária do nosso concelho pela anexação de algumas freguesias do extinto de Alfandega da Fé e que dest’arte mostrou que é nosso amigo!
 Devemos-lhe a nossa gratidão; não queiramos ser ingratos!

 Este artigo é assinado por «um vilaflorense», mas tinha certamente o apoio dos responsáveis do jornal, porquanto na mesma página é assinado outro artigo sobre o mesmo tema da restauração do concelho de Alfândega da Fé, e a imputação das responsabilidades dos prejuízos que daí advinham para o concelho de Moncorvo é mais uma vez feita aos progressistas: 
Vai ser restaurado o concelho dissolvido de Alfândega da Fé. É positivo. Moncorvo, como bom vizinho que é, e amigo que tem sido, congratula-se com isso.
 Mas não pode conformar-se, tendo até de reagir tenaz e persistentemente, se tal vier a acontecer, com que seja aumentado à nossa custa, para poder ser elevado a comarca. Isso é que não, e teremos de protestar mesmo ruidosamente contra isso, sendo necessário.
 Rumoreja-se apenas o boato da criação da comarca há poucos meses. Agora não se escondem já de o proclamar bem alto os seus protectores.


Em seguida à restauração do concelho, dizem os mesmos, naturais inimigos do nosso e da nossa comarca que pretendem reduzir a microscópicas proporções, tem de ser criada a comarca, dissolvendo-se a de Vila Flor, de que algumas freguesias, e as de Cardanha, Adeganha, Junqueira e Estevais, do nosso concelho, serão incorporadas ao restaurado de Alfândega, juntando-se-lhe mais Castro Vicente, que é de Mogadouro e que será indemnizado com Lagoaça. 
(…)
 Os cidadãos deste concelho que se unirem aos seus inimigos que pretendem roubar-nos algumas freguesias, para com elas beneficiarem a outros concelhos, devem ser considerados como traidores, dando-se-lhes o correctivo que merecem. Politicamente, estamos vendo que o administrador do concelho e seus poucos adeptos estão mancomunados com os nossos inimigos, protegendo-os nas eleições. (…)
 É necessário que este povo fique sabendo que, se tão grande escândalo se consumar, se tão manifesta injustiça nos vier a ferir na grandeza das nossas aspirações cívicas, na devotação pelo engrandecimento ou, pelo menos, conservação da integridade do nosso concelho, que é o partido progressista o causador do nosso esfacelamento, e mais particularmente o snr. Camilo Mendonça, do concelho de Alfândega, que estão sendo protegido no de Moncorvo pelo seu administrador, snr. Cândido Bernardino Gomes, que torna réu de alta traição o partido progressista deste concelho.

 Por sua vez, o Moncorvo empunha a espada da indignação a favor do Partido Progressista e contra aqueles que antes o seu diretor defendia, dizendo-se enganado e ludibriado durante vários anos: 
O Moncorvo é o primeiro grito que se ouve de desespero, chamando ás armas um concelho, que abdicou a sua dignidade, mercadejando-a a troco do suborno e do medo-suborno da consciência e das convicções: medo dos ditadores e das suas iras. 
Parecerá sem dúvida estranho que assim falem aqueles que, há pouco ainda, rendiam culto ao deus que hoje se abomina; mas a esses, que podem arguir-nos de traidores, dir-lhes-emos que não cabe em nós aparar as afrontas, e beijar a mão que no--las arremessar. Que ninguém, com mais dedicação serviu um partido – uma família –, um homem – do que os que hoje saem á liça para combatê-lo. 
Acostumados a encarar os indivíduos, não pelo que deles diz o vulgo, nas suas inconstantes apreciações, mas pelo maior ou menor grau de simpatia e afeição que a eles nos prendem, fechamos sempre os olhos a todas as insinuações, e, cegos, caminhamos sempre avante, aumentando até de entusiasmo e ele admiração, à medida que os ataques contra o nosso ídolo se tornavam mais encarniçados e sangrentos. Por esse ídolo tínhamos nós culto, que é mais do que admiração. Quem nele tocasse, feria-nos no mais fundo da alma, nas nossas susceptibilidades ele amigo, tão ciosos por elas, como a leoa pelos filhos, a quem defende com risco da própria vida. 
E assim, de olhos fechados: caminhamos sempre, e a intriga, e a infâmia, que esvurmeavam dos lábios dos malsins, eram apupadas e, encolhendo as garras, retraiam-se e alapardavam-se até voltarmos as costas: continuando então no seu caminho ele difamação, Difamação!
 

Nós assim o acreditamos sempre, porque a amizade verdadeira não deixa ver o lado vulnerável daquele que se estima, mas só aquele que nos atrai. 
Um dia, porém, esse ídolo – que tanto tempo fora por nós acalentado –, colocou--se de cima de um monturo e, bradando às turbas, disse: 
«Deixem-me! Quem me defende é um canalha, é um infame, é um miserável!» 
Perante essa declaração, tão formal, tão positiva, tão terminante, dissiparam-se todas as suas ilusões. Abrimos então pela primeira vez os olhos.

 Já O Independente do Norte se diz independente dos partidos políticos, embora se mostre empenhado nas lutas políticas ao serviço do povo: 
Eis o titulo que tomamos para o nosso jornal.
É sobre ele que jurámos aqui defender os interesses malbaratados desta vila e os direitos do nosso distrito, contribuindo com o pouco que valemos para o progresso das nossas terras e obstando, o que nos for possível, ao descalabro da nossa pátria! 
Liberdade, Independência e Verdade, eis a nossa divisa. 
Com ela saltaremos por cima de todos os obstáculos, romperemos todas as barreiras, ligar-nos-emos a ela por o mais indissolúvel elo da nossa dignidade, conservando--nos sempre à altura suficiente para que nos não possam atacar os nossos inimigos. 
Não tomamos por Iábaro qualquer facção política que um dia, mais tarde, nos possa obrigar a um desmentido, porque jamais admitiremos neste jornal qualquer retractação.
 (…)
 Queremos independência porque, novos como somos, não desejaríamos, ver-nos já sujeitos a mandatos imperiosos, obrigados a militar em campos de tal ordem que mais nos conviria ser-lhes inimigos, que transigentes adeptos.

 No entanto, analisando com mais pormenor o seu conteúdo noticioso, verificamos que a capa da independência é posta em causa, como acontece no seguinte texto: 

Realizou-se, há dias, um comício patriótico, presidido pelos srs. Bernardino Machado, Fuschini e Gomes da Silva. 
O Defensor do Povo e vários jornais perguntam: o que querem os senhores? 
É exactamente o que nós lhe perguntamos, o que lhe deve perguntar o povo. E sabem porque? 
Porque os dois primeiros senhores foram já ministros de Estado e o segundo Cú-ligado aos progressistas nesse belo tempo das gravatas vermelhas… Devem recordar-se…


 Alem disso esses homens que ousaram nesse comício pedir a liberdade foram os primeiros a cortá-la, assinando em tempos uma reforma de polícia que privou o povo da capital de todos os seus direitos e que mandaram dissolver as associações comerciais e industriais de Lisboa unicamente porque protestaram contra a coacção dos seus direitos. 
Eis ai o que neste momento se passa na capital e que para a semana, talvez dê assunto para mais largas considerações.

 Todavia, os assuntos políticos ou da res publica não diziam respeito apenas às lutas político partidárias. Na época, como agora, havia problemas que eram do interesse de toda a população e com os quais todas as forças partidárias naturalmente se preocupavam. A construção da ponte no Pocinho, que permitisse a travessia do Douro sem ser através das ancestrais barcas, era um desses problemas.
 Por isso, O Moncorvense, por diversas vezes, se debruça sobre esse assunto, chegando a dedicar-lhe praticamente uma página inteira, reivindicando não só a sua construção, mas sugerindo também soluções financeiras concretas:

Já aborrecemos; estamos disto certos, mas talvez não voltemos ao assunto.
 Temos excogitado todos os meios e este, que vamos expor, é o último reduto, porque está tudo explorado e sem resultado, infelizmente.
 Não há dinheiro – é a resposta.
 Estamos de acordo que não há dinheiro.
 Quem conhece o estado caótico da nossa pública administração, quem compreende o abismo em que estamos prestes a cair, não encontrará banal a resposta do governo, porque ela encerra uma triste verdade.
 Ponhamos de parte os comentários e apreciações desta verdade, tão repetidos pelos órgãos mais importantes da nossa imprensa, encaremos de frente a nossa situação, confrontando-a com a situação económica do país, e cotizando a resposta do governo com as exigências das nossas necessidades, vejamos se a ponte, fazendo-se, pode depauperar o tesouro, como muitas outras empresas e melhoramentos equívocos que a cada passo se realizam sem utilidade prática e fim útil para o povo.
 Já demonstrámos, fundados nos rendimentos das barcas, que a construção da ponte dava ao governo, ou à empresa construtora, rendimentos reais e positivos.
 Esta demonstração, de que os nossos leitores se recordam, era baseada na arrematação das barcas que, rendendo actualmente um conto e setecentos mil reis, garantem o triplo do rendimento à ponte, se esta for construída, porque o movimento actual dos transportes é reduzidíssimo, o que não sucederia estando a ponte feita.
 Estando, pois, a ponte orçada em sessenta a setenta contos, os direitos da portagem dariam à larga o juro do capital empregado, não prejudicando aqueles que quisessem encarregar-se da sua construção.
O governo, tendo já por mais de uma vez sido informado pelos dirigentes da nossa política das bases acima expostas, faz ouvidos de mercador e continua dizendo que não há dinheiro.
 Do governo nada temos a esperar; e isto, ainda que custe aos nossos políticos, é uma verdade e verdade por eles reconhecida e até confessada.
 A construção da ponte não tem sido posta de parte pelos nossos amigos políticos,como  muitos julgam.
 Têm-se empenhado todos os esforços, feito todas as tentativas, envidado todos os meios e, se para os nossos amigos é desairoso o não conseguimento do que se pretende, não o é menos para a política do distrito da guarda, que tem acompanhado a política daqui, fazendo coro com ela nas reclamações apresentadas por várias vezes aos nossos governos.
 E que mais obrigação têm eles de conseguir melhoramentos para o distrito do que os seus antecessores ou os seus adversários?
 Que fizeram uns e outros?
 Nada.
 Censuram-se por que se não impõem?
 Estão resolvidos a isso. E valerá a imposição? Duvidamos, porque as imposições para surtirem efeito é indispensável que não partam de um ou dois, isoladamente, mas que todos as secundem e aqui não se dá isto: o povo fica indiferente, os municípios, que lucram com os melhoramentos, não reclamam, os políticos, que se acham disseminados pelo distrito, não se importam.
 No Pinhão, onde está estudada também uma ponte, já por mais de uma vez se reuniram no local os povos dos concelhos limítrofes e, em massa, protestaram conta a indiferença dos governos, e os governos da primeira vez mandaram estudar o projecto, e se os protestos continuarem, mandarão pô-lo em execução.
 Aqui … nada!
 Só se ouve carpir e lamentar, nada mais; de que serve isso?
 Mostrem que querem, que empregam os meios, que é verdade o que se diz, que a ponte não dá prejuízo, antes lucro, que tudo o que se assevera não é fantasia, mas a pura verdade.
 E para isto podem os municípios concorrer.
 Sabem como? Da maneira seguinte: 
O projecto está orçado em setenta contos, insignificante quantia para o orçamento de um país e até para os municípios limítrofes que mais directamente aproveitam com o melhoramento. 
(…)
 O governo não pode ou não quer dar os setenta contos, pois bem: peça-se-lhe metade daquela quantia e o município daqui e o de Foz Côa ponham a outra parte, o que não lhes é difícil nem oneroso, tomando para base os seguintes dados.
 Suponhamos que são trinta e seis contos, dezoito para cada município. Dezoito contos, a seis por cento, levantando um empréstimo no Banco Hipotecário por noventa e nove anos, dá o juro de um conto e oitenta mil reis.
 Partindo da hipótese de que a ponte dá de direitos de portagem três contos de reis, dividindo esta quantia pelos dois municípios, pertence a cada um a quantia de um conto e quinhentos, que deduzidos dos juros pagos pelo capital, ainda dão um saldo a favor de quatrocentos mil reis.
 Quatrocentos mil reis em 99 anos dão um capital acumulado de trinta e nove contos e seiscentos mil reis, o que dá em resultado que, em acabando o contrato com o Banco, tem o município os juros pagos e duplicado o capital só com a receita da ponte!
 (…)
 E se o governo não cedesse a metade da quantia orçada?
 Nesse caso havia um único recurso – mostrar aos governos que se não brinca impunemente com a boa fé popular, e que as necessidades dos povos, as mais urgentes, estão superiores aos esbanjamentos injustificáveis de toda a ordem, que a cada passo se fazem e para que sempre sobeja dinheiro, quando eles aparecem.

 LINGUAGEM ACUTILANTE E BREJEIRA

 Como se pode constatar em algumas das citações que fizemos e noutros textos dos diversos títulos sem exceção, a linguagem utilizada pelos articulistas, quando se reporta a temas da política, não é nada meiga para com a classe política em geral e para com os adversários políticos em particular. Vejamos, por exemplo, o seguinte extrato do Jornal de Moncorvo:

Movendo-lhe uma guerra acintosa em que por armas tinha a intriga e a mentira; numa campanha de descrédito imoralíssima e prejudicial manejada torpemente no estrangeiro; numa batalha em que a sua bandeira era a falsidade; traindo a sua pátria, a oposição progressista que não pudera derrubar o ministério Hintz-Franco quando se bandeou para os republicanos atraiçoando El-Rei, provocou agora uma crise financeira que criou dificuldades ao governo e galgou afinal as cadeiras do poder. Os conselheiros do Rei republicanizados por coligação venceram afinal neste assalto quando um povo inteiro vivia sossegado e tranquilo com inteira confiança no seu governo, 
Triste e vergonhosa vitória! Pobre e infeliz Pátria! 
Senhores da governação pública, os progressistas começaram desde logo a sentir os males que desastradamente tinham causado: para conseguirem um suprimento de 500: 000 libras precisaram de empenhar 72: 000 obrigações da companhia dos tabacos; e agora para contraírem novo empréstimo vão também empenhar as linhas férreas do pais; e quem lhes arranja todo este dinheiro é o conde de Burnay que tanto difamaram. 
Para iludirem o povo continuaram no governo como se estivessem ainda na oposição a desprestigiar e desautorizar os seus antecessores, inventando os orçamentos suplementares e arguindo de ilegais em relatórios dirigidos a El-Rei muitas das suas medidas.
 (…)
 «Aprés moi le deluge»; neste estado de coisas o governo nefasto que nos rege lançou mão da violência que campeia infrene por todo o país: estamos em plena época de Terror sob o consulado deste MINISTÉRIO NEGRO. 
Neste regime imperando o ministério de Sedltz, é de recear «one dungs evacuationt». 
Alerta, pois, pela nossa parte! Ânimo! Coragem! 
É do domínio de todos que o governo tenciona reintegrar o concelho de Alfândega da Fé a despeito de não ter meios de vida ainda mesmo que a sua câmara lançasse a máxima percentagem legal. 
Anunciam e defendem esta medida os progressistas deste distrito, à frente dos quais está Eduardo José Coelho e muitos do nosso círculo, entre os quais se contam Camilo e Álvaro de Mendonça; e até alguns filhos de Vila Flor, que não têm rebuço de propor o bacharel Barbosa, que em um jantar político em Mirandela brindou à reconstituição do concelho de Alfandega da Fé! 
(…)
 Votar no candidato progressista na presente ocasião é, não só indecoroso, mas praticar uma traição que não se justifica em verdadeiros patriotas, porque o simples retraimento é uma cobardia: é indispensável guerreá-lo com todas as forças. 
(…)
 Os nossos patrícios que no momento presente não forem pelo concelho de Vila Flor, são traidores, ou vendidos na esperança de receberem algum osso do governo. 
Lutar contra os progressistas é para nós a vida: assistir passivamente ao triunfo do candidato governamental é uma cobardia; votar com o governo é uma traição indigna e infame, imprópria de gente que se presa. 
(…)
 É urgentíssimo escorraçar essa corja que paira em volta do nosso concelho, como o abutre em roda da presa. Querem armar-nos a cilada infame de nos deixarem sem um representante nosso em cortes, que advogue com energia e entusiasmo os nossos direitos, para assim melhormente porem em execução o seu plano infernal e maldito. 
(…)
 É um traidor todo o cidadão que não votar no candidato regenerador. É um traidor todo o que votar no snr, Barbosa.

CONTEÚDO INFORMATIVO

 Numa rápida análise dos conteúdos informativos dos diferentes títulos que temos vindo a citar, verificamos o seguinte: 

 • o conteúdo informativo é muito escasso, sobretudo se comparado com os textos de intervenção política;
 • as poucas informações reproduzidas são quase sempre de natureza particular e relativas a figuras da alta burguesia local;
 • num ou noutro caso, aparecem algumas – escassas – notícias que fogem ao espartilho destes critérios e que se reportam a melhoramentos públicos há muito desejados ou a pequenos escândalos locais.

 O que atrás dizemos quanto ao conteúdo noticioso relacionado com algumas das figuras da alta burguesia local pode comprovar-se através de várias citações, de que respigamos as seguintes:

Com demora de dois ou três dias foi a Santa Comba da Vilariça, de visita ao seu amigo Lopes Antunes, o sr. Governador Civil Dr. Ferreira Margarido.
 Na semana passada foi ao Pocinho o sr. Dr. Ferreira Margarido de visita a seu primo o conselheiro José Cavalheiro, digno Governador Civil da Guarda, passando dois dias com ele na sua quinta, onde largamente conferenciaram também sobre o modo mais fácil de levar a cabo a construção da ponte naquele sítio, melhoramento este de tanta necessidade como talvez não haja outro igual entre os dois distritos da Guarda e Bragança que ela liga, e diremos até as duas províncias de Trás-os-Montes e Beira Alta.
 Já regressou da sua importante quinta da Silveira a esta vila e partiu ontem para o Porto com demora de dois ou três dias o nosso amigo António Caetano de Oliveira, antigo par do Reino. 
(…)
 De visita a Moncorvo esteve algumas horas aqui o grande proprietário António Bernardo Ferreira, que levou boas impressões do panorama geral desta pitoresca vila e seus arredores.
 Tinha vindo com veneranda mãe, a ex.ma snrª D. Antónia Adelaide Ferreira, assistir à importante vindima das suas lindas e numerosas plantações de vinha no Monte Meão, e de lá veio só ele aqui, onde sua octogenária, respeitável e filantrópica mãe possui também uma casa importante. Parece que levou boas impressões de nós e da nossa terra. 
(…)
 De visita à sua quinta da Silveira e ao nosso ilustre amigo António Caetano de Oliveira, estiveram ali uns ingleses com suas filhas, passeando por Moncorvo e Vila flor gostando muito de ver estas duas vilas e o lindo e atraente panorama da Vilariça.
 O nosso amigo Padre Guerra, que esteve uns dias, poucos, ausente, já regressou para abrir o Colégio de Santo Antonio, continuando à testa de tão útil estabelecimento e que de tantos benefícios tem sido para os chefes de família que dele se vão aproveitado e que nós continuaremos a recomendar, porque o achamos digno disso. 

 Este nosso amigo, desejando retirar-se já neste ano, porque tem outras aspirações e um futuro mais largo, fez o sacrifício de ficar ainda arais algum tempo, até que seu pai, actualmente sub-inspector adido ao Liceu de Vila Real, e que está prestes a reformar-se, e que deseja vir para aqui viver, possa assumir a direcção do estabelecimento, porque o nosso amigo Padre Guerra está cansado, e só a dedicação pela família o obrigou a modificar as suas resoluções, violentando-se a perder aqui mais algum tempo, porque outros interesses o chamam e convidam para outra localidade, onde tinha já casa arrendada para viver. 
Folgamos em que isto assim suceda, porque o Colégio não acabará como aí se insinua, o que, dando-se, seria de grande prejuízo para a terra, como todos calculam. 
E convença-se a terra de que o Colégio é de mais utilidade para Moncorvo do que para quem o explora, porque os interesses que tem dado são nulos, e tem-se susten tado mais por capricho do que pelos lucros.

 Do jornal O Moncorvense

 Teve uma feliz délivrance a Ex.ma Sr.ª Dª Adelina Silva, virtuosa esposa do Sr. Alberto Guerra e irmã do nosso amigo Constâncio de Carvalho. 
Este osso colega há já uns dias que se acha bastante adoentado, o que deveras sentimos. 
Desejamos-lhe seja breve o seu restabelecimento. 
Entre a nova vereação, ultimamente eleita, deparámos os nomes dos Srs., Dr. José Dias Gallas e Dinis Pontes. À Câmara, pois, os nossos parabéns por contar entre os seus membros estes dois espíritos de reconhecida lucidez e carácter justiceiro, de quem este concelho tudo tem a esperar.
 Felicitamos também o nosso amigo, o Sr. Abel Adriano de Almeida Gomes, pela talentosa gerência que vem de cumprir desde a ocasião que tão merecidamente lhe foi confiada. 
Regressou do Porto, onde estava tratando os seus padecimentos a Sr.ª Dª Augusta Campos, carinhosa esposa do Sr. Abílio de Campos.

 Do jornal O Independente do Norte

 Para lá da ponte do Pocinho, que já referimos atrás, também o Hospital local e as minas do Reboredo eram objeto das preocupações dos jornalistas locais de então:

Três engenheiros, emissários do sr. barão de Saint Clair, começaram no dia 8 os estudos da linha de feno que virá do Pocinho às minas do Reboredo. 
Parece-nos que sempre teremos a tão almejada ponte sobre o rio Douro, devido aos esforços da Companhia exploradora que ultimamente se organizou no Porto, segundo informações de pessoas fidedignas. 
A abertura deste caminho-de-ferro é o início do próximo engrandecimento de Moncorvo, pois que, alem dos pobres encontrarem trabalho com que possam valer às suas necessidades, o comércio e a indústria, ainda que em pequena escala, vão-se pouco a pouco levantando desta apatia monótona e esterilizadora. É um bem que todos reconhecem e que todos desejamos. Oxalá que esse empreendimento se realize, ao menos para que o povo necessitado, trabalhando, se alivie de tanta miséria, miséria a que se poderia valer se os políticos da nossa terra olhassem, como deviam e devem, para este estado de coisas; mas hoje não há politica, a não ser a politica de compadres, que é como dizem a politica dos edazes e dos intrujões.

 Do jornal O Independente do Norte

 Dir-se-ia que Moncorvo tem um hospital. Engano. Moncorvo até hoje não tem tido um hospital, mas sim um antro, uma pocilga, onde os desgraçados que se vêem na necessidade de recorrer à caridade, longe de encontrarem conforto, agasalho e carinho, encontram miséria, abandono, desprezo e, por vezes, maus tratos. Parece isto impossível, mas é um facto, facto que todos reconhecem e apontam, facto que a todos revolta, mas que ninguém teve ainda até agora o desassombro e coragem de tornar público, para que aqueles que, pelo seu desleixo e incúria, deram causa a semelhante estado de degradação e abandono, fossem apontados, fossem estigmatizados por um tal procedimento. Para este não há qualificativo apropriado, porque têm sido defraudados os interesses dos desgraçados e infelizes, que tanto careciam de amparo e protecção. É um facto verdadeiramente assombroso, mas que, não obstante, persiste há quase 16 anos.

 Do jornal Moncorvo

 Quanto aos escândalos, não deviam haver muitos porque são poucos os casos reportados. Citamos apenas um texto desses:

Na semana finda houve nesta vila uma tentativa de estupro na pessoa duma menor de 12 anos.
 Chame-se a fera Antonio da Costa, natural de Outeiro, comarca de Mangualde e achava-se aqui em companhia duns cegos que são tocadores ambulantes. 
Felizmente que não chegou a consumar-se esta infâmia, por isso que aos gritos da menor acudiu bastante gente, incluindo o administrador do concelho, que prendeu semelhante infame. 
Acha-se preso nas cadeias desta vila e consta-nos que é mui brevemente julgado.

 Do Jornal de Moncorvo

CONTEÚDO LITERÁRIO

 Finalmente, relativamente ao conteúdo literário, esboçam-se algumas tentativas tanto ao nível do folhetim, como ao nível da poesia. Por uma questão de curiosidade, reproduzimos uma das poesias de O Independente do Norte, da autoria de Gonçalves Cerejeira, não o Cardeal, mas eventualmente um seu antepassado: 

Nos braços de Sílvia

 Nos braços de Sílvia
 Dorme, hetaira desgrenhada,
 Rosa pálida a sonhar!
 Já vem rindo a madrugada,
 E em teu rosto ainda há luar…

 Dormes agora cansada
 De abraços e beijos dar,
 Como estrela desmaiada,
 Duma luz crepuscular…

 És tão bela assim deitada
 Num leito de lupanar,
 Loira Flor da Vid’airada!…

 Ah! Não te poder beijar
 Essa face desbotada
 Como quem beija um altar!…

 CONCLUSÃO

 Como facilmente se pode constatar, os jornais que apareceram em Moncorvo no século XIX tiveram na sua génese objetivos de interesse público, filtrados e purgados, no entanto, pelos pontos de vista e pelos interesses dos seus responsáveis. E mais do que informativos, os jornais daquele período foram sobretudo armas ao serviço do combate político-partidário, na arena política da refrega entre regeneradores e progressistas, os dois maiores partidos de então.

 César Urbino Rodrigues*
* Doutor em Teoria e História da Educação pela Universidade de Valladolid. Professor Universitário.

- Nascido na aldeia de Peredo dos Castelhanos, concelho de Moncorvo, no ano de 1946, fiz o ensino secundário no Seminário de Macau, no período de 1958-1967. 
- Depois do serviço militar obrigatório, de 1969 a 1972, fui professor de 1972 a 2012, desde a Escola Preparatória Eng. Moura Pegado, em Macedo de Cavaleiros, até ao ensino secundário no ex-Liceu Nacional de Bragança e na Escola Secundária Abade de Baçal. Fui ainda professor na Escola do Magistério Primário de Bragança, durante 6 anos, e professor do ensino superior, no ISLA de Bragança e no I.Piaget de Mirandela, durante 7 anos.
Fiz a licenciatura em Filosofia, na Universidade do Porto, o Mestrado em Filosofia da Educação, na Universidade do Minho, com uma tese sobre “As coordenadas fundamentais da Educação no Estado Novo” e o doutoramento em Teoria e História da Educação, na Universidade de Valhadolide, com uma tese sobre “A representação do Outro no Estado Novo – o Outro cidadão nacional e o Outro país vizinho”.
Co-fundador do jornal “A Voz do Nordeste”, fui seu director entre 1985 e 2007. Fui o segundo jornalista português a ganhar uma acção no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos contra o Estado Português.

1 comentário:

  1. Estimado Professor e Caríssimo Amigo. Bem-vindo à Equipa de Colaboradores. Obrigado! Grande abraço.

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