sábado, 24 de agosto de 2024

Pescar

Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
 
Se vires alguém com fome não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar, prescreve a máxima oriental, uma alegoria em que “fome” representa as nossas carências comuns e “pescar” aquilo que há que fazer para as suprimir. Convém não nos deixarmos iludir pelo seu laconismo: ela subentende todo um programa educativo, em função do qual nunca se deve perder de vista a autonomia, o esforço, o mérito de quem aprende. Sendo nossa sina ter necessidades e desejos, não há como fugir de procurar eliminá-los, quer fazendo-nos à vida quer vivendo à custa de outrem. Acontece que a máxima exclui esta segunda possibilidade. Por isso, se cabe a quem educa expor os segredos e as técnicas da pesca, é bom que as canseiras desta fiquem por conta do educando; aquele aponta o caminho, mas é este que o há de percorrer. 
Na cegueira idealista que ganhou asas na parte final do século passado, e veio por aí fora, as pessoas julgaram que deviam dar peixes de mão beijada. Ficaram tão sôfregas pelo facto extraordinário de terem arrancado os rebentos às garras das privações que elas próprias haviam conhecido que adoravam exibi-los como troféus, assim como quem apresenta ex-votos ao santinho da abundância. O que estava a dar era escolher para eles os atalhos mais fáceis, arredar calhaus e espinhos, preservar a todo o custo de dificuldades, evitar o contacto com cruezas, resguardar dos vendavais como se resguardam flores em estufa. Entre outras mariquices, não é que a certa altura passou a ser fino chamar aos filhos príncipes e princesas? 
Um nadinha de juízo teria segredado que tratar por príncipe é o mesmo que colocar-se em lugar de súbdito e, portanto, sujeitar-se à tirania; que superproteger significa atrofiar; que dar tudo corresponde a inibir de pescar, a tirar razões para ir à luta, não apenas no momento em que se dá, mas pela vida fora. Mas neste ambiente prazenteiro não se preparava para a vida, antes para cenários de fantasia. Uma enorme maldade foi incutir aversão ao trabalho contra a corrente na qual o mundo avança, um mundo que exige cada vez mais capacidades, competências, esforço, entrega; desvalorizá-lo quando é ele que sustém todo o edifício da sociedade; transformá-lo numa fonte contínua de conflitos quando a verdade é que, para além das coisas materiais que deve trazer, também costuma presentear-nos com satisfação, autoestima, realização. Mas isso não interessava, havia que livrar os cachopos dele como da lepra. E no caso de tal não ser possível, o que acontecia em noventa e nove vírgula nove por cento das vezes, deveriam encaminhar-se para doutores ou então aspirar no mínimo a empregos de escritório onde não tivessem que vergar a mola ou sujar as mãos. 
Dezenas de carnavais depois já se percebeu o fracasso deste modelo, que só vigora por uma questão de inércia e por fingirmos ainda acreditar nele. Por mais que se culpem os tempos, os morangos com açúcar ou as redes sociais, a perceção corrente é a de que ele tem produzido fornadas de cidadãos eticamente falhos, frustrados, mal educados (e obviamente também mal-educados), cuja mentalidade os queen de freddy mercury retratavam com ironia na canção “I want it all, and I want it now” – eu quero tudo e quero-o já. Ainda assim esta é a versão ligeira, generalista do falhanço. Quem está mais dentro do assunto dá por si a lidar com um número crescente de garotos entregues às vontades com que a natureza os deu, inquietos, sobrexcitados, arrogantes, manipuladores, que aos doze anos têm mentalidade de quatro e para quem o registo normal anda habitualmente à volta de uma sobranceria palerma. De cortar o coração e, para quem olhe para o futuro, ficar deveras apreensivo. 
É que isto não implica que ao mesmo tempo a malta não carregue já muitos sonhos de vida fácil, consumo abundante, riqueza, fama, glamour. Como entretanto têm sido criados em ambientes de ficção, o esforço com o qual deveriam dar-lhes forma naquilo que sabem ser o mundo real, a vida em sociedade, a existência em bloco, só podem meter-lhes medo. Daí o desejo inconsciente de permanecerem na infância, pois é mesmo disso que se trata: o grosso da garotada exibe todos os sintomas do pânico de crescer. Aliás não é por acaso que se deixam viciar por esse novo mundo virtual que lhes puseram à frente. Fugir a uma qualquer realidade assustadora não é o papel de todas as alienações?

Nordeste - set. 2019


Manuel Eduardo Pires
. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.

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