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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 5 de outubro de 2024

Couto Misto: há 160 anos, um microestado ibérico foi riscado do mapa

 A 29 de Setembro de 1864, a assinatura do Tratado de Lisboa, refinando pormenores das fronteiras ibéricas, pôs fim ao Couto Misto. Este artigo relembra uma curiosa anomalia na nossa História.

O Couto Misto foi um microestado de cerca de 27 quilómetros quadrados que acomodou, até 29 de Setembro de 1864, uma pequena fatia da actual província de Ourense
e do actual município português de Montalegre.

Esta é a história de um peculiar microestado, fruto de deliciosas e complexas circunstâncias geradas no seio da Idade Média. Falamos do Couto Misto (ou Couto Mixto, na sua versão galega), praticamente tão antigo quanto a existência portuguesa como estado independente. Durou cerca de sete séculos.

A política medieval

A narrativa que escreve na pedra a Idade Média como uma época linear onde reis detinham um poder absoluto, dominando largas porções de terra, é tudo menos precisa. Na verdade, desde a queda do Império Romano até praticamente ao século XV, a fragmentação de poderes na Europa era a norma. Em períodos conturbados de invasões, como as bárbaras e as muçulmanas, os monarcas dependiam dos exércitos e da influência das famílias nobres mais poderosas para criar exércitos capazes de defender o território. Logo, concederam a estes nobres, e mais tarde à Igreja, cuja religião unia os habitantes europeus, extensões de terra sobre as quais exerciam poderes que habitualmente eram exclusivos do rei. Actos como administrar justiça ou cobrar impostos, por exemplo. Na verdade, estes senhores ficavam com um duplo poder nas mãos: sobre as terras e os camponeses.

Estes domínios do clero e da nobreza ficaram conhecidos como senhorios, uma marca profunda do período feudal na Europa que prevaleceu, na maior parte dos estados, até ao século XIX. Aliás, a imunidade que estes senhorios possuíam causava muitas vezes problemas aos reis. Entre outras benesses, os senhorios podiam proibir a entrada de funcionários reais ou mesmo escusar os seus donos e habitantes do pagamento de impostos do rei.

Quando, a partir do século XIII, no caso português, a figura real começou a combater os abusos senhoriais, esforçando-se por chamar a si de novo os poderes que concedera em anos de desespero, o domínio dos senhores passou a ser menos pronunciado. Em Portugal, a maioria dos senhorios eram honras, quando pertencentes à nobreza, ou coutos, no caso de estarem nas mãos do clero. Estes últimos foram praticamente extintos na sua forma mais poderosa no século XV, sobrando aquilo que ficou conhecido como coutos de homiziados.

O funcionamento do Couto Misto

Ora, mas então, se estes coutos e honras eram tão problemáticos para os reis, porque é que estes os mantiveram esta variante de homiziados? Antes de mais, homiziados eram abrigos da Justiça. Se nos debruçarmos sobre um mapa medieval, reparamos que os coutos de homiziados nacionais se situavam, na sua grande maioria, nas terras fronteiriças. Eram uma espécie de refúgio para criminosos, incentivados então a defender estas parcelas de território onde ninguém lhes podia tocar. Se estes espaços fossem conquistados pelas hostes leonesas ou galegas, perderiam os seus direitos.

O Couto Misto / Couto Mixto incluía os territórios de Santiago de Rubiás, Rubiás (hoje pertencentes ao município de Calvos de Randín) e Meaus (actualmente no município de Baltar), bem como uma parcela de Montalegre. Fotografia actual de Meaus: Fronteira Esquecida.

O Couto Misto foi sobrando como uma relíquia desses tempos. Manteve-se porque a sua localização fronteiriça implicava problemas que nunca foram contemplados. Ninguém sabe muito bem os moldes exactos da sua criação, mas é provável que a incerteza das fronteiras que se manteve até ao tratado de Alcanizes em 1297 foi adiando a real responsabilidade portuguesa ou espanhola sobre um território que, aplicado aos dias de hoje, cobria as aldeias galegas de Rubiás, Santiago de Rubiás e Meaus, bem como uma parte inabitada do actual concelho de Montalegre. Existindo num interior recôndito de ambos os reinos e insignificante no seu tamanho e importância geográfica, o Couto Misto foi-se mantendo por pura inércia burocrática.

O curioso neste território é que era independente; e tendo sido fundado pela casa senhorial de Bragança no século X, é até mais antigo do que Portugal. Mas como estado independente, as suas nuances parecem-nos hoje estranhas. Por exemplo, os seus habitantes não tinham uma nacionalidade própria. Podiam considerar-se, por vários motivos ou preferências, portugueses, espanhóis… ou simplesmente não ter qualquer filiação.

A escolha entre Portugal e Espanha manifestava-se de uma curiosa forma: ao contrário de todos nós, que temos a nacionalidade definida no nascimento, os habitantes deste Couto escolhiam-na no dia em que casavam. Se bebessem um copo à saúde do rei português, durante a boda, a sua aliança era lusa; se, pelo contrário, saudavam o rei espanhol ao sorver vinho, então a sua aliança era com nuestros hermanos. Conforme a escolha, pintavam um P de Portugal ou G de Galiza na porta de casa e ficava claro. Por causa disto, não havia obrigação de uso de documentos pessoais e, logo, não estavam sujeitos a deveres que ocorriam ao estatuto de ser português ou espanhol, como pagar impostos ou servir no exército. Eram mistos.

Os habitantes podiam também possuir armas, quando tal era proibido em qualquer um dos reinos vizinhos para membros do povo, frequentar feiras e mercados portugueses e espanhóis sem pagar qualquer tipo de taxa na compra de produtos e reservavam o direito de asilo que presidira à sua origem, sendo que as autoridades vizinhas não podiam entrar no Couto em perseguição de um criminoso, excepto se este tivesse cometido homicídio. Existia, aliás, uma estrada de seis quilómetros saindo do Couto Misto rumo à Galiza, o Caminho Privilegiado, e sinalizada por marcos bem visíveis, onde as autoridades, mesmo espanholas, não podiam revistar quem quer que fosse.

Celebrado a 29 de Setembro de 1864, o Tratado de Lisboa ditou o fim do Couto Misto.
A questão de Olivença ficou, porém, de fora deste documento. 

Democracia, fim… e ressurreição

Esta excepcionalidade levou a que muita gente se mudasse para o Couto. Apesar de ser povoado por gente de índole duvidosa, o número de direitos era extremamente atraente. Entre as já mencionadas, havia uma característica que distinguia este estado de praticamente todo o panorama político medieval: o seu administrador era votado. No caso, um juiz, ladeado por um homem de acordo proveniente de cada uma das três aldeias do lado galego. Todos eram eleitos pelos chamados vizinhos, os habitantes, e dirigiam política e legislativamente este pequeno estado. Deixavam apenas os crimes de sangue para as justiças portugueses e espanhola. De resto, exerciam o seu poder em total autonomia.

A grande reserva do poder legal e existência do Couto residia numa arca onde ficavam guardados todos os documentos assinados pela estrutura administrativa do juiz com os seus três homens de acordo. Abrir a arca só seria possível com três chaves, uma por cada homem de acordo. Esta mesma arca, que carregava toda a documentação desde os inícios do estado, foi destruída durante as Invasões Francesas, no início do século XIX, com os exércitos napoleónicos a ignorarem por completo o estatuto especial do Couto.

Em 1864, Portugal e Espanha finalmente resolveram a questão com a assinatura do Tratado de Lisboa a 29 de Setembro – ou seja, há 160 anos – onde foram tratadas outras questões, relativamente ao controlo dos rios fronteiriços e ao estabelecimento dos mesmos como fronteiras naturais entre os países. Curiosamente, um dos assuntos que ambos os países evitaram abordar nesse momento – que foi o último grande acordo sobre fronteiras luso-espanholas – foi precisamente a questão de Olivença… O Couto Misto foi absorvido por Espanha e, em troca, Portugal recebeu outras três aldeias, situadas antes na fronteira comum.

No entanto, a memória desta curiosidade política não está morta. Desde meados dos anos 1990 que vários historiadores têm reavivado o interesse por aquele que é, de facto, um dos estados mais antigos da Europa. Em 1998, surge a Associação dos Amigos do Couto Misto, composta maioritariamente por habitantes de Santiago de Rubiás, Meaus e Rubiás. À frente da igreja da primeira, podemos hoje encontrar a estátua do último juiz do Couto Misto, um português chamado Delfim Brandão.

Os habitantes, que falam galego com um toque de português, têm-se esforçado por manter viva a memória desta anomalia, restaurando as heranças históricas monumentais e tentando forçar a votação no senado galego de uma lei que permita a dupla nacionalidade aos habitantes do trio de aldeias. Portugueses e galegos organizam muitas vezes actividades culturais comuns, respeitando as tradições de ambos os lados. Ainda hoje, de forma honorária, as populações mantêm a eleição dos homens de acordo e do juiz, todos os anos, num evento que atrai muitos turistas e mantém viva a memória do Couto Misto, um estado desaparecido, mas não morto.

Bruno Fernandes

1 comentário:

  1. Este fato, da existência do Couto Misto, me era totalmente desconhecido. Agradeço ao Henrique Martins, pela pública desse fato histórico, que abrange o povo da Galízia, pelo lado espanhol e de Montalegre, pelo lado português.
    Parabéns ao historiador Bruno Fernandes pela pesquisa e publicação do presente artigo, de indelével valor cultural e histórico.
    Estou sempre aprendendo com os portugueses.
    Muito obrigado!

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