Por: César Urbino Rodrigues
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Depois do último texto que publiquei aqui, no Facebook, sobre o populismo na política, o caso do deputado ex-Chega, Miguel Arruda, permite-nos reflectir um pouco mais e recordar os pressupostos básicos da vida em sociedade.
1 – A vida em sociedade tem como objectivo estruturante conseguir dar a cada membro o nível de realização pessoal de forma a atingir a sua felicidade, que fora da sociedade, é impossível. Isto equivale a dizer que a sociedade tem de assumir como objectivo a chamada justiça social e que não privilegie uns em relação aos outros, mas os trate a todos na base dos mesmos critérios. Para o efeito, toda a organização política e, por conseguinte, todo o titular de qualquer órgão do aparelho de Estado, têm de se sujeitar a dois princípios incontornáveis:
- a ética da reciprocidade, que obriga todos os cidadãos e, com maioria de razão, todos os órgãos do aparelho de Estado a lidar com os outros cidadãos ou partidos políticos, de acordo com os mesmos critérios éticos e cognitivos que exige para si. Ninguém tem o direito de exigir, para si, direitos que não reconhece aos outros, nem de impor, aos outros, deveres que não admite para si.
- a defesa intransigente da verdade, sempre que ela seja possível, não a confundindo com opinião ou convicção. Se, no caso da verdade, só pode haver uma e ninguém a pode questionar, no caso da opinião, cada um pode ter a sua e ninguém pode ser molestado ou prejudicado por isso.
2 - Em segundo lugar, para que uma democracia seja saudável, tem que assentar no melhor regime político, no melhor sistema económico e no melhor programa de governo.
2.1 - Em relação ao regime político, e tendo em conta o princípio da ética da reciprocidade, por mais esforços que os ditadores façam para «vender o seu gato por lebre», só é aceitável um regime que respeite o pluripartidarismo, a separação de poderes - legislativo, executivo (governo e presidência da república) e judicial - e o voto popular, sem condicionamentos de qualquer espécie. Ou seja, só é admissível um regime republicano, laico e democrático.
Não obstante as lacunas e falhas que os regimes democráticos podem deixar transparecer, a sua comparação com qualquer regime de ditadura – à esquerda ou à direita – não deixa dúvidas de que a democracia não tem alternativa, como o caso do Miguel Arruda demonstra cabalmente. De facto, todos sabemos que ele foi eleito pelo Chega, um partido que se tem fartado de criticar a democracia e exaltar o Estado Novo de Salazar, com o argumento de que este era incorruptível, enquanto que, após o 25 de Abril, houve muitos casos de corrupção. Só que, se vivêssemos ainda no Estado Novo e o Ventura fosse o «Salazar» dos nossos dias, o caso do Miguel Arruda nem sequer poderia ser noticiado por causa da «censura de imprensa», nem julgado por causa da subordinação do poder judicial ao poder político, como aconteceu com a morte de Humberto Delgado pela PIDE, cujos autores foram obrigados, por Salazar, a esconder, numa garagem do Estado, o automóvel em que se deslocaram, além de nunca terem sido julgados, antes do 25 de Abril.
2.2 - Em relação ao sistema económico, direi que, neste momento, existem 3 hipóteses:
- o colectivismo marxista, com a estatização da economia, que perdeu qualquer credibilidade com os estrondosos fracassos nos países ditos comunistas, incluindo a China, um país que só saiu da miséria quando abandonou o colectivismo marxista.
- o socialismo democrático ou social-democracia, em que o Estado e os privados podem e devem coexistir na dinamização e no controlo da actividade económica, sobretudo em áreas fundamentais como a Educação, a Saúde, a Segurança Social, a actividade bancária e a Defesa, por exemplo, sempre de olho nos chico-espertos que gostam de fazer valer os seus interesses particulares, vendendo-os como se fossem os interesses colectivos, como parece estar a acontecer com o projecto do governo em relação à Segurança Social, que pretende privatizar o sistema das pensões, enchendo assim os bolsos de alguns fundos privados, que, ao menor aperto, decretam falência e deixam de as pagar.
- o liberalismo ou neoliberalismo, em que toda a actividade económica do país é entregue ao sector privado, enquanto a economia der lucro aos mais ricos, mas devolvida ao Estado quando houver prejuízos para suportar, como aconteceu na crise de 2008 - em todo o mundo e não só em Portugal - com os abusos e as falcatruas dos Bancos dos países mais desenvolvidos, a começar pelos EUA, desde o Leman Brothers, que faliu, ao Goldman Sachs, que só não faliu porque o governo de George Bush lhe deitou a mão, depois do desastre nacional e internacional do Leman Brothers. Em Portugal, os Bancos mais responsáveis pela crise foram o BPN, autorizado por Cavaco Silva a Dias Loureiro, e o BES, da família Espírito Santo. Nestes casos e noutros de menor dimensão, foi o Estado, ou seja, o contribuinte, quem teve de suportar os custos do desgoverno dos Bancos privados, que atingiu valores superiores a 22 mil milhões de euros.
Eu faço a minha escolha pelo socialismo democrático/social-democracia, tendo em conta dois ditados populares: «pia de muitos, bem comida e mal lavada» e «cada um puxa a brasa à sua sardinha». O primeiro é uma descrição rigorosa do regime colectivista marxista, enquanto que o segundo é uma chamada de atenção sobretudo para o risco do egoísmo subjacente ao neoliberalismo, ainda que também não esteja totalmente escondido no socialismo democrático, embora em menor grau.
2.3 - Quanto ao programa de governo, pode variar não só de partido para partido como de primeiro-ministro para primeiro-ministro do mesmo partido e cabe aos eleitores fazerem a sua escolha, tendo sempre em conta os dois provérbios populares anteriores.
3 - Em terceiro lugar, permite-nos concluir que a qualidade da acção política de qualquer titular do aparelho de Estado – desde o poder judicial ao poder legislativo e ao poder executivo no governo e na presidência da República - não se mede pelo que dizem os seus titulares sobre a qualidade do seu trabalho, mas pelo controlo que os eleitores têm sobre o aparelho de Estado, coisa que nos regimes autoritários está totalmente fora de hipótese, ainda que nenhum regime político nos possa garantir a 100% esse controlo.
No caso do Miguel Arruda, por exemplo, apesar de vivermos em democracia, ele cometeu o crime que cometeu e outros mais podem também cair em comportamentos contrários às leis e aos 2 princípios enunciados logo de início deste texto.
No entanto, esses comportamentos não são uma consequência intrínseca da democracia, mas do carácter e da personalidade dos titulares dos órgãos do aparelho de Estado, independentemente dos partidos a que pertençam, podendo coexistir criminosos e demagogos em todos eles, tanto na política como na justiça. Só que, em democracia, a liberdade de expressão e a independência (teórica, pelo menos) do poder judicial em relação ao poder político dão-nos algumas possibilidades, ainda que limitadas, de os infractores serem responsabilizados criminal e politicamente. E digo limitadas porque, infelizmente, tanto o poder judicial como a comunicação social podem padecer dos mesmos problemas que o poder político, desde a corrupção à incompetência. Pôr procuradores que fizeram parte dum governo da AD a investigar o António Costa é o mesmo que porem o Fernando Madureira do FCP a arbitrar um jogo do Benfica ou do Sporting com outro clube qualquer. E transformar a comunicação social, nas tvs, numa feira de comentadores que, na maior parte dos casos, nada têm que abone a seu favor no desempenho dessa função, é um exercício de manipulação da pior espécie.
Em todo o caso, os cidadãos eleitores terão sempre a possibilidade de corrigirem alguns desses problemas em eleições seguintes, o que não acontece nas ditaduras.
4 – Concluindo:
4.1 - Não há alternativa ao regime democrático, embora este possa ter níveis diferentes de democraticidade, havendo sempre o risco de o nosso voto ir parar a pessoas sem qualquer respeito pela verdade e pela ética da reciprocidade.
4.2 – Quanto ao sistema económico, não podemos aceitar nenhum sistema económico que, sob a capa do dinamismo do sector privado dos mais ricos, contribua para o «empanturramento» de alguns à custa dos menos favorecidos pelo Estado, num desprezo total pela justiça social.
4.3 - Quanto ao programa de governo, quando votamos é como se estivéssemos sempre a apostar no “totoloto” e nunca sabemos o que nos vai calhar. Compete a cada um despir-se do seu egocentrismo psicológico, do seu egocentrismo cognitivo e do seu egocentrismo ético e votar com a razão e não com o coração.
César Urbino Rodrigues, natural da aldeia de Peredo dos Castelhanos, concelho de Moncorvo, estudou 9 anos no Seminário de Macau, fez a licenciatura em Filosofia na Universidade do Porto, o Mestrado em Filosofia da Educação na Universidade do Minho, com uma tese sobre «As Coordenadas fundamentais da Educação no Estado Novo», e o doutoramento na Universidade de Valhadolid, em Teoria e História da Educação, com uma tese sobre a «Representação do Outro No Estado Novo. Foi professor no ensino secundário, na Escola do Magistério Primário de Bragança, no ISLA de Bragança, no Instituto Piaget de Mirandela e DAPP na Escola Superior de Educação de Bragança.
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