Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
As carícias, os beijos sabedores e o feitiço de atração de Samael, deixaram Rrava sem ação e ela deixou que ele a sentasse no chão, sentando-se ele próprio a seu lado.
O anjo acariciou-lhe o rosto e o cabelo enquanto ela reclinava a cabeça para trás e perguntava sonhadoramente: — Que tenho de fazer para ver como são as coisas fora do jardim? Como posso conhecer esses homens que constroem as suas próprias grutas onde querem?
— Se o Pai te deixasse sair, era fácil… — Atirou Samael.
— Mas Ele nunca nos proibiu de nada, — ela abriu os olhos, intrigada — pensas que vai impedir de sair? Nem ao menos um bocadinho?
— Sim, tenho a certeza que não vai querer que saias, mas tens a certeza que nunca vos proibiu nada? — O anjo esboçou um sorriso conhecedor.
— Bem, — corrigiu-se ela —, disse-nos que não comêssemos nada de uma destas árvores. — Apontou uma modesta macieira carregada de maçãs vermelhas e reluzentes.
— Mas por quê? — Insistiu Samael.
— Não sei. — A jovem exibiu uma expressão de criança, enquanto encolhia os ombros. — Nunca pensei nisso, se calhar vai fazer-nos mal.
— Não faz mal nenhum, é mentira. — Lillian recuperou lentamente a forma humana ante o olhar espantado de Rrava, enquanto exibia as suas formas por baixo da túnica curta cor-de-ferrugem que a cobria. — Podes comer de tudo o que existe no jardim e nada te fará mal.
— Esta é Lillian. — Apresentou Samael, sem se levantar. — Também já viveu neste jardim, como tu. Ela tem razão, nada neste jardim te fará mal, a proibição é uma prova da vossa obediência.
Como que para o provar, Lillian apanhou uma das maçãs mais baixas nos ramos, trincou-a e mastigou-a sonoramente, após o que. passou lentamente a língua pelos lábios exuberantes.
O anjo, aproveitando a voluptuosa cena, puxou novamente o rosto de Rrava para o seu e beijou-a longamente, emitindo uma vez mais as ondas de desejo que Lillian sentiu.
Os pequenos orbes[1] luminosos e quase translúcidos, que se escondiam entre a folhagem, libertaram-se em rodopios em volta dos amantes, como que a festejar o amor.
Sem que ninguém se percebesse, Adam surgiu na entrada da clareira, logo ao lado de Lillian, que estremeceu ao vê-lo.
O homem ficou estático, tentando perceber o que via; a sua Rrava estava deitada no chão abraçada e aos beijos a outro homem e ali, a seu lado, estava a mulher revoltada que fugira de junto dele.
— Lillian? — A voz dele, quase inaudível, dir-se-ia não querer perturbar os amantes. — Não te foste embora?
Os orbes, percebendo a presença do intruso, compreenderam que o plano podia de Samael podia ruir de um segundo para o outro. Voaram rapidamente em volta de Lillian e Adam, envolvendo-os em rodopios e atraindo sobre eles um deleitante raio de sol.
Novamente as inexplicáveis ondas de desejo envolveram, desta vez o antigo casal. O homem olhou-a de alto a baixo e ela ofereceu-lhe a maçã, com a parte trincada voltada para ele.
Após alguma hesitação, ele deu uma sonora trincadela no fruto, deixando algum do sumo escorrer do canto da boca. Aproveitando a deixa, Lilian beijou-o no local, para que não se perdesse.
Adam apertou-a contra si e, embalados pelo desejo sobrenatural que os consumia, envolveram-se numa união carnal em que cada um tentava a supremacia sobre o outro.
Saciados, os dois casais, estavam sentados no chão em círculo.
Adam ainda estava incrédulo com o regresso de Lillian e a presença de outro humano no jardim. Sempre acreditara que, para além deles e do Pai, não existia mais ninguém parecido no mundo. Bombardeou-os com perguntas, apoiado por Rrava que sempre se calava quando ele a interrompia.
O interesse de Rrava voltou-se por fim para as “finas peles” com que se cobriam os estranhos. Queria saber do que eram feitas e para que serviam. Samael, porém, estava mais interessado em convencer Adam de que a vida fora do jardim era livre e que podiam fazer e andar por onde quisessem, ao contrário do que acontecia ali.
Lilian ensinou Rrava a juntar várias folhas grandes e costurá-las com fibras de uma trepadeira para formar uma saia grosseira. Ela aprendeu tão rapidamente, que fez outra para Adam que ficou um pouco confundido quando lha pôs à cintura.
Rrava estava felicíssima com a nova habilidade e fez um pequeno corpete com que ocultou os fartos seios. Como agradecimento, abraçou e beijou Lillian nos lábios, encostando o seu corpo quente ao dela. A mulher renegada sentiu-se estranhamente excitada, surpreendida porque pensava que tal só acontecia com homens e principalmente com o “seu” Samael. A outra, porém, não se imobilizara e correu a apanhar mais uma maçã que partilhou com ela após dar a primeira mordida.
— Sabias que estamos fechados num jardim e muitas pessoas iguais a nós, vivem para além dele? — Adam interrompeu o potencial idílio entre as duas. — O Pai alguma vez te falou deles?
— Não. Nunca. — Confirmou Rrava. — A primeira vez que ouvi isso foi contado por ele. — Apontou Samael com o queixo.
— Claro que Ele não quer que saibam. — Interveio Lillian intempestivamente. — Quer vos manter aqui presos na ignorância. Também eu não sabia e tive de ir lá fora para ver com os meus olhos. A minha desobediência foi castigada, transformando-me numa serpente! — Samael arregalou os olhos, horrorizado com a mentira, mas ela não se refreou. — Queria submeter-me ou matar-me, mas não conseguiu, porque os anjos protegem-me.
— Transformou-te em serpente? — Adam estava espantado. — O Pai fez isso?
— Sim! — Ela insistiu na mentira, para horror de Samael. — Assim poderia matar-me com mais facilidade, mas os anjos esconderam-me e ensinaram-me a sair da forma a que fui condenada. — Sorriu ao ver os olhares de admiração deles. — Se vierem connosco, eles também vos protegerão.
— Depois Ele não virá atrás de nós também? — Rrava mostrou-se atemorizada. — Certamente nos quererá matar por fugirmos.
— Levar-vos-emos para a Terra dos Homens, onde vivem em grande número. — Corroborou Samael. — Eu e os meus irmãos velaremos para que o Pai não vos encontre. Lá podereis viver como quiserdes.
— Podereis ter roupas como as nossas. — Incentivou Lillian antes de se aperceber que o lobo os observava à distância, desconfiado. — Voltou… — sorriu —… lobo….
— Não é estranho que, tirando o lobo, não haja mais nenhum animal à vista? — Observou Adam.
— Sim, já tinha reparado. — Confirmou Rrava. — Apenas Samael como melro e ela como serpente…
— Lobo! — Chamou Lillian. — Vem cá, não tenhas medo, sou eu, Lillian! — Deu alguns passos na direção dele, que começou a recuar e a rosnar.
— Vão-se embora! — Latiu ameaçadoramente o lobo. — Vão-se embora daqui! — Eriçou os pelos do cachaço enquanto puxava as orelhas para trás ameaçadoramente. — O teu lugar não é aqui, Lillian, criança desobediente, vai-te para a terra enferma de onde vieste, vai-te embora em nome do Criador!
[1] Corpo esférico ou circular. = BOLA, ESFERA, GLOBO
"orbe", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Manuel Amaro Mendonça é licenciado em Engenharia de Sistemas Multimédia pelo ISLA de Gaia. Nasceu em janeiro de 1965, em Portugal, na cidade de São Mamede de Infesta, no concelho de Matosinhos; a Terra de Horizonte e Mar.
Foi premiado em quatro concursos de escrita e os seus textos foram selecionados para mais de duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras e é membro fundador do grupo Pentautores (como o seu nome indica, trata-se de um grupo de cinco autores) que conta já com cinco volumes de contos publicados.
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (2015), "Lágrimas no Rio" (2016), "Daqueles Além Marão" (2017), “Entre o Preto e o Branco” (2020), “A Caixa do Mal” (2022), “Na Sombra da Mentira” (2022) e “Depois das Velas se Apagarem” (2024), todos editados e distribuídos pela Amazon.
Colabora nos blogues “Memórias e Outras Coisas… Bragança” https://5l-henrique.blogspot.com/, “Revista SAMIZDAT” http://www.revistasamizdat.com/, “Correio do Porto” https://www.correiodoporto.pt/ e “Pentautores” https://pentautores.blogspot.com/
Outros trabalhos estão em projeto, mantenha-se atento às novidades em http://myblog.debaixodosceus.pt/, onde poderá ler alguns dos seus trabalhos, ou visite a página de autor em https://www.debaixodosceus.pt/
Sem comentários:
Enviar um comentário