sábado, 28 de junho de 2025

"ALTARES DE PALAVRAS E FUMO"

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


Há um cenário urbano contemporâneo. Um mundo movimentado. E uma vida quotidiana a desenrolar-se com pressa e sem distração. Não é um palco de grandes heróis. Apenas uma humanidade que anda perdida. Uma humanidade ausente de uma qualquer direção com um brilho que seja mais forte do que a luz dos seus tantos dispositivos. 
E eis a terra fértil de inquietações onde nascem os gurus de si mesmos. Distribuidores gratuitos de palavras generosas a qualquer alma que ouse respirar sem um entusiasmo contagiante. Ali está ele ou ela, no café da esquina, no escritório ao lado, no jantar dos amigos, o colega de trabalho, a vizinha simpática, o parceiro inesperado da fila do supermercado, o parente cheio de opiniões, a amiga sonsa. O pregador da felicidade instantânea, disponível para curar o mundo, não porque o mundo lhe pediu para ser curado, mas porque há algo de profundamente terapêutico em cuidar das dores dos outros enquanto se ignoram as próprias ruínas.
Diante de qualquer situação menos boa que diga respeito a terceiros, as suas antenas omniscientes erguem-se captando, de imediato, o que julgam ser o "verdadeiro" problema e, com a confiança de quem nunca tropeçou, ou a sábia experiência de uma vida aos tropeções, desfilam prognósticos, conselhos e soluções como se o mundo fosse um puzzle que só a sua superior inteligência sabe montar ou desmontar.
Diagnosticam e apontam a infelicidade com a precisão de uma roleta e infelizes são todos os que não seguem os seus certeiros conselhos transformadores. 
“Ama-te mais”, “sê a tua melhor versão”, “o que precisas está dentro de ti”, “o teu propósito é tudo”… Ai quanto alívio, dizem eles, se os outros se entregassem à simplicidade destes seus mantras pré-fabricados, reciclados e infalíveis e das promessas de que o universo, elemento em voga, conspira sempre a favor de quem pensa positivo, rodeado de boas vibrações. Afinal, é tudo uma questão do mindset adequado e a felicidade é só um estado de espírito, já ali, ao virar da esquina! 
E há toda uma espiritualidade secreta por trás dos cânticos sagrados destes especialistas, não no autoconhecimento, mas no conhecimento profundo das fissuras alheias. Observam com olhos aguçados as rachadelas das vidas de quem os cerca e, como sábios profetas que se julgam, decretam soluções com a autoridade de quem nunca se engana. Os mestres prontos a iluminar o caminho de quem nunca pediu para ser iluminado, num ato de promoção pessoal disfarçado de compaixão. O passatempo insaciável de quem transforma cada interação num púlpito!
São tantos os messias das almas perdidas! E quem precisa de olhar para dentro quando a vida imperfeita dos outros é tão mais fácil de resolver? A beleza tragicómica desta compulsão para restaurar o que não lhe pertence, motivada por uma genuína - e equivocada - certeza de soberania! 
Por isso, um dia, num desses encontros metafóricos que acontecem por obra do acaso, alguém perguntou a um dos mestres: “Mas e tu, és feliz?”. “Não sou, mas posso parecer! Afinal, vivemos na era dos sacerdotes da pequena glória e a vida é um teatro sublime, um espetáculo de proporções divinas!”.
Saberão eles que é tão fácil, aos mais atentos, reconhecer no brilho dos seus olhos a exaustão de quem não pratica nem vive o que prega? A fachada do conhecimento, da confiança, do bom senso e da retidão, a esconder amargas e profundas inseguranças?
Há algo de poeticamente irónico nestes salvadores das gentes que os rodeiam: a maioria deles não consegue encontrar o próprio caminho nem com uma bússola. Um detalhe particularmente interessante é que a sua luz não parece iluminar muito bem as suas próprias sombras. As suas vidas são um mosaico de escolhas pessoais erradas e de problemas emocionais não resolvidos. Generosidade curiosa, esta, de tentar salvar os outros enquanto o próprio barco tem um rombo de grandes dimensões, sem solução à vista! 
Afinal, talvez a suposta preocupação e ajuda sejam menos altruísmo e mais uma anestesia para as próprias dores. Porque, verdade seja dita, é muito mais fácil constatar os defeitos alheios do que se encarar ao espelho. É muito mais fácil pregar a virtude, a honra e a empatia, do que colocar os olhos e a atenção no seu próprio caos. É infinitamente mais fácil proclamar o amor universal do que lidar com o facto de nunca ter sido amado verdadeiramente por alguém e nem sequer ter conseguido, alguma vez, amar-se a si mesmo. Mas a “sapiência” deste mais comum dos mortais é acreditar que isso não importa, pois se pensa dizer as coisas certas com arrojo suficiente, até a própria incoerência lhe soa como verdade! E quem precisa de confrontar os seus abismos quando há tanto trabalho a fazer na alma do vizinho?
Na ausência de um propósito claro para as suas vidas, autoproclamados voluntários nos propósitos humanos, a pregarem o desapego e a leveza, estes apóstolos da bem-aventurança, tão necessitados de se sentirem úteis e indispensáveis, mas reféns do seu desejo íntimo de aprovação e aplauso, vão continuando a sua dança para serem admirados e, principalmente, invejados. “Que pessoa sensata!”, alguém murmura, e o ego do iluminado cresce uma fração invisível. Demasiado ocupados a erguer catedrais de aparência, são prisioneiros num ciclo de vaidade, onde o reconhecimento por parte do outro é a única coisa que valida as suas existências. 
Mas quando as luzes da ribalta se apagam e as telas ficam escuras, a vida continua indiferente ao brilho que os seus egos tentaram emular. 
O tempo, como sempre, é o juiz mais honesto. Os conselhos dados com tanta certeza, as certezas cheias de superioridade, tudo isso desaparece no ar como fumo de um incêndio esquecido. As pessoas que um dia ouviram esses gurus da sabedoria continuam a seguir o seu caminho, com ou sem as respostas por eles oferecidas, e assim seguem adiante, acumulando novas estórias para interpretarem e novas dores para explicarem.
Porque, no final, o mundo é um palco demasiado grande para atores tão pequenos. Pois o que existe para aplaudir, quando a ovação é o som mais desnecessário? Quem sabe, um dia entendam, numa qualquer nota de rodapé do livro infinito da história humana, estes senhores das frases feitas que soam a máximas milenares, das poses, das observações quase divinas, que a fé não é uma marca registada sob o nome de alguém, assim como a felicidade, sobretudo a alheia, não é um projeto que eles possam completar. A vida e o seu percurso são compostos por valores que se pretendem ser sentidos por cada um, na luz e escuridão que a cada um pertencem. E resta apenas o que sempre esteve ali: uma pessoa comum, com os seus medos e esperanças. 
Talvez aceitem um dia, estes iluminados, as escuridões - as deles e as de todos. E que aqueles silêncios desconfortáveis, mas repletos de significados, sejam mais úteis do que qualquer um dos seus conselhos mal formulados. E percebam eles que o maior ato de bondade não é salvar o outro da sua vida, mas simplesmente caminhar ao lado dele, ao mesmo ritmo. Porque o imperfeito, mas real, por si só, já é perfeitamente suficiente.
… E era uma vez uma humanidade que andava perdida, desintegrada no silêncio do tempo, como pó levado pelo vento.


Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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