segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Uma andorinha - ou a felicidade de um garoto de Meles no fundinho de uma mão

Por: Carlos Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)


 Cinco anos depois de a Guiomar Silva Clemente ter divulgado esta fotografia - documento que tão fielmente retrata a realidade da minha geração em Meles -, volto à conversa que a Guiomar nos proporciona. E volto, para quê? Para recordar um dos episódios mais felizes da minha vida, que a Carma, a senhora da direita que tantos ares dá a ela,  me proporcionou, não teria eu então entrado ainda na primeira.

A Carma vivia, se estou certo,  na última casa ao fundo do povo, à esquerda no sentido de quem desce. Uma casa que a partir aí de fins de maio era a menina dos meus olhos, sempre que calhava de a minha Mãe Laura, a minha avó,  ir ao Sobralhal. 

Aquela casa, aqueles beirais, ai! aqueles ninhos, chegadinhos uns aos outros,  de andorinhas sem parar a entrar e a sair! 

"Anda, garoto!", dizia com carinho minha avó, bem no sabendo ela por que  apertava eu o passo ao passar ali. 

E a Carma, a quem de caminho a minha avó dava sempre as boas-horas, bem no sabia também. As andorinhas...

Uma vez,  nāo andaria eu de vaca ainda com o Eduardo, e já não sei se ia com a minha avó se com a minha tia e madrinha Beatriz, repetia-se a ida ao Sobralhal.

O Sobralhal era longe, depois do Pontão por aquela ladeira arriba mordia o lombo, mas para o Sobralhal, as andorinhas, aqueles beirais, eu estava sempre pronto...

Com a minha avó ou com a minha madrinha, para o caso tanto dá. O que eu sei é que, pouco antes de chegar à casa da menina dos meus olhos, a Carma, "anda, garoto!", se terá apercebido de quem descia e, comigo a chegar a tempo de a ver meter os dedos num dos ninhos, tirou uma andorinha já vestida da ninhada, passando, cúmplice, como que o mundo inteiro para a minha mão. Uma andorinha!

Dali ao Sobralhal, qual Pontão, qual ladeira por ali arriba até lá cima... 

E do Sobralhal à Rua da Igreja, com a andorinha aconchegadinha na mão, mais contcho que o ti Abilho co cabalo, corri a dar a boa nova ao meu Pai Luís, ainda com a senhora Justina, mulher do ti Abilho, na varanda, a testemunhar tanta alegria no garoto...

O que valeu à andorinha - ao mundo inteiro que naquele dia, há quase setenta anos, a Carma pôs na minha mão - é que por junho naquelas aldeias de Salazar não faltava fartura de moscas, e a andorinha, já vestida, dormia sempre de papinho cheio...

Bem quereria, hoje, retribuir à Carma, a senhora da direita que tantos ares dá a ela na foto que aqui nos traz, um dos episódios mais felizes da minha vida. Mas há retribuições que só uma andorinha, aquela andorinha, pagaria...


Carlos Pires
é natural de Macedo de Cavaleiros, tendo adoptado a pequena aldeia de Meles, onde crestou à  solta nas férias grandes, como o seu verdadeiro berço. Como jornalista, fez parte das Redações do "Tempo", "Portugal Hoje", " Primeira Página", "Liberal", "Semanário" e da revista de economia "Exame" (de que foi editor). Em Bragança, colaborou no semanário "Mensageiro de Bragança" (1970-72), tendo sido co-fundador do semanário "ÈNÍÉ - uma voz do Nordeste Português" (1975) e da publicação  "Domus", da Casa de Cultura da Juventude de Bragança (1977-78).
Foi assessor de imprensa de Maldonado Gonelha, ministro da Saúde (1983-85).
Entrou para o Infarmed em fins de 2000, depois de ter sido assessor de imprensa da ministra Elisa Ferreira, nos dois governos de António Guterres, primeiro no Ministério do Ambiente, depois no Planeamento (1995-2000).
No Infarmed criou o Gabinete de Imprensa, tendo sido porta-voz da instituição durante mais de uma dúzia de anos.
Alguns aspetos marcantes: a iniciativa da realização de um curso para jornalistas (2001), ministrado por peritos do Infarmed, em que os principais órgãos de informação estiveram representados, sobre o ciclo de vida do medicamento; a elaboração do jornal da instituição, "Infarmed Notícias", trimestral (de que é coordenador/editor/redator). A edição especial de Janeiro de 2018, com 120 testemunhos sobre o INFARMED na altura conturbada da ideia controversa da sua deslocalização para o Porto (depois editada em livro); e ainda a publicação de um livro, editado pela Âncora, "Redondilhando", que nasce no seio da instituição e cujo prefácio foi assinado por Ernesto José Rodrigues.

1 comentário:

  1. A tua memória desses tempos, cá pelas aldeias frias e pedregosas da nossa terra, no caso que nos contas e recordas, na aldeia de Meles, o verão trazia sempre um zumbido constante, um coro de moscas que se multiplicavam como se o ar lhes pertencesse. Era uma fartura negra e ruidosa, uma nuvem viva que se erguia do esterco, das eiras, dos currais aquecidos pelo sol. As moscas pousavam em tudo, no leite acabado de ordenhar, no pão de centeio ainda quente, nas mãos calejadas das mulheres que amassavam o sustento.
    No meio dessa abundância minúscula, a “tua” andorinha fazia o seu festim. Rasgava o ar em voos rápidos e certeiros, engolindo vida em pleno voo. Para ela, os dias eram fartos, e a fome uma lembrança distante. Bastava-lhe o calor e o rumor da aldeia, a natureza ainda lhe garantia mesa posta.
    Mas para o homem, ai, o tempo era outro.
    Enquanto o céu dava moscas em demasia, a terra dava pouco. As geadas tardias, a secura dos montes e a pobreza dos solos deixavam as despensas quase vazias. Nas casas de granito e madeira, o pão era contado, o azeite racionado, e o fumeiro pendurado no escuro parecia uma promessa longínqua. Havia mais fome que fartura, mais silêncios do que risos.
    E era curioso, pensava-se, como o mundo sabia distribuir mal a sua generosidade, fartura para as asas, miséria para as mãos.
    A “tua” andorinha, ligeira e contente, cruzava o céu em festas… Os homens e as mulheres, com a enxada ao ombro e o estômago vazio, bem a viam passar e suspiravam, talvez por inveja, talvez por esperança.
    Tempos em que a vida seguia o seu compasso desigual. Os bichos sempre com o que comer, e o homem sempre com o que sonhar…
    HM

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