segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Greves gerais: Uma muito breve história

 Ao contrário do que possa parecer, muito antes de haver as noções de esquerda e direita, dicotomia ideológica saída da Revolução Francesa, já existiam paralisações equivalentes às greves dos dias de hoje.

em domínio público - “A greve”, pintura de 1886 da autoria do alemão Robert Koehler.

No longínquo ano de 1152 a.C., artesãos que trabalham na Necrópole Real de Deir el-Medina viraram as costas ao trabalho e vieram embora da construção. O motivo radicava em algo familiar: o faraó Ramsés III não cumpriu com o pagamento dos salários e estes artífices especializados, cientes de que as suas habilidades não eram possuídas por mais ninguém (e também de que Ramsés III vivia obcecado com os preparativos da sua morte), recusaram-se a trabalhar. O faraó cedeu e pagou-lhes.

CC - A greve no Estaleiro Naval Vladimir Lenine, em Gdansk, em Agosto de 1980, foi um marco no estertor da Polónia comunista. Fonte: Zygmunt Błażek / European Solidarity Centre

PARA LÁ DO TEMPO DOS FARAÓS

Não é por acaso que direito à greve é um dos mais discutidos, e poderosos, da história do trabalho. Afinal, procura regular relações de poder. Durante muitos séculos, o trabalho foi visto como uma oferta divina e, nas sociedades feudais, entre as quais as que vigoraram na Europa desde a Idade Média até à Revolução Francesa, trabalhar era uma benesse oferecida pelos privilegiados aos restantes, que deviam estar agradecidos. No entanto, a tensão entre a opressão dos privilegiados e a exploração dos camponeses nunca foi de fácil resolução. O grande problema de campesinato foi a sua dificuldade em reunir um número suficiente de indivíduos para se fazer ouvir. Um descontente é simplesmente murmúrio, mas 500 já fazem um ruído difícil de ignorar.

Nos momentos em que, como classe, os servos da gleba e os trabalhadores de baixa classe se conseguiram reunir, a Europa foi atravessada por revoltas violentas que causaram mortos em ambos os lados. As Jacqueries, em França, e a revolta de Wat Tyler, em Inglaterra, são dois exemplos famosos de como a crise do final do século XIV, em grande parte derivada da mais mortífera epidemia de Peste Negra de que temos registo, explodiu sem qualquer hipótese de ser parada por desejos divinos; e perante a falta de outros instrumentos, a violência tornou-se no único recurso dos que se sentiam desagradados com as suas condições laborais.

EM DOMÍNIO PÚBLICO - A morte em 1381 de Wat Tyler, durante a Revolta dos camponeses em Inglaterra, ilustrada nas Crónicas de Jean Froissart.

A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE

É a Revolução Industrial que traz a greve como alternativa à revolta armada. A consciência de todos os trabalhadores fabris, iguais no seu tormento e agrupados nos mesmos espaços, tornou muito mais fácil e imediata a ideia de parar a produção simplesmente pela recusa de trabalhar.

A palavra inglesa “strike”, designando estas acções, refere-se a uma das primeiras instâncias em que o operariado agiu não apenas determinado em não trabalhar, mas também em impedir os outros de o fazer. No porto de Londres, destruiu (em inglês, “struck”) os mastros onde se acoplavam as velas dos barcos mercantes, interrompendo assim o fluxo comercial. Em Portugal, usamos “greve”, que vem, como muitos outros termos e noções históricas, de uma inspiração francesa. “Gréve” baptizava o cascalho nas margens de um rio, e no Sena pariense, um local em particular, la Place de la Gréve, era escolhido pelos descontentes e irritados como local de reunião para discutir os seus problemas com os patrões e o seu emprego.

A greve ficou assim associada a um grupo de operários que está de braços cruzados num local, sem trabalhar. O grande legado das greves nos séculos XVIII e XIX está na sua capacidade de mobilizar os trabalhadores para alcançar os seus objectivos. A reacção do habitual lado mais forte da equação foi muitas vezes de intimidação e de exercer a sua influência junto de sucessivos governos próximos dos motores da economia para que o próprio Estado acabasse com as greves. A polícia e o exército foram muitas vezes os braços armados desta resistência. Tal como podemos verificar se pegarmos na primeira greve geral moderna (já lá vamos).

É possível encontrarmos exemplos de greves gerais noutros períodos históricos. Roma, por exemplo, concebia o conceito informal de secessio plebis (a retirada da plebe), em que os cidadãos da cidade se retiravam da cidade e deixavam os patrícios, as classes mais altas da sociedade romana, entregues ao seu próprio destino. Era um conceito dos tempos monárquicos, uma tentativa de equilibrar a relação de poderes entre mais ricos e pobres. Roma fechava efectivamente, porque não existia ninguém para trabalhar; e em 1835, a cidade de Filadélfia parou também graças a um ensaio de greve geral por melhores salários e uma jorna diária de trabalho de dez horas – ambos os objectivos foram alcançados. Mas foi em 1842 que Inglaterra viveu o primeiro exemplo deste movimento que conseguiu uma expressão nacional.

Em domínio público - Em 1835, a jornada de trabalho de dez horas era uma das reivindicações dos trabalhadores em greve. Nesta faixa da Associação dos Carpinteiros da Filadélfia, podemos ver um carpinteiro a apontar para o relógio, indicando ao seu colega que é hora de terminar o trabalho. 

A PRIMEIRA GREVE GERAL MODERNA

Uma depressão económica atingiu os ingleses e a primeira tentativa das fábricas e patrões de diminuir custos passou pelo despedimento de trabalhadores ou cortando a talhe de foice os seus salários. Boa parte destas indústrias encontravam-se no centro de Inglaterra, em regiões mineiras como o Lancashire, o Staffordshire e York, e estas medidas algo draconianas afectaram quase um milhão de trabalhadores. Estes eram sinais de que o cidadão comum pouco contava na grande arquitectura económica da nação. No entanto, o móbil da revolta foi a recusa da Câmara dos Comuns, a mais representativa do parlamento britânico, passar um gigantesco pacote de medidas relativas ao alargamento do direito ao sufrágio entre os cidadãos mais pobres. Era literalmente gigantesca, um calhamaço com 300 quilogramas e 3,3 milhões de assinaturas de gente comum do Reino Unido. A proposta foi rotundamente rejeitada de goleada.

À frustração popular, o poder político respondeu: e então? A população contra-respondeu com fúria. Os mineiros de carvão do Staffordshire reuniram-se em plenário e juraram não voltar a trabalhar até verem os seus salários repostos e as suas condições de trabalho melhoradas – algo só possível se o rejeitado pacote laboral passasse nos Comuns. Entusiasmados com a vontade férrea dos colegas, trabalhadores de outros sectores juntaram-se-lhes na vontade de parar a produção do mais representativo sector económico britânico: a indústria. De Manchester a Preston, a grande máquina britânica parou, com todos os sectores que lhe estavam associados, desde os apanhadores de algodão até mecânicos de moinhos a participarem. Grandes comícios de trabalhadores foram realizados a 7 de Agosto, confirmando a acção ilegal e, no dia seguinte, de fábrica em fábrica, um grande magote proletário foi chamando os colegas a juntarem-se a uma grande marcha que se dirigia às principais cidades do coração industrial do Reino Unido, como Preston e Manchester. Em vários casos, entraram em fábricas e forçaram a paragem das máquinas. Em Preston, por exemplo, esta acção levou a confrontos com as forças policiais, daí resultando quatro mortos. Noutras cidades, os confrontos levaram a mais vítimas mortais.

CC BY-SA 4.0 - O Memorial dos Mártires de Preston homenageia os trabalhadores tombados na primeira greve geral da era moderna. Fonte: Francis C. Franklin

Esta, aliás, foi a reacção generalizada do governo de Robert Peel a esta inesperada contestação organizada. Era inegável que este movimento, apesar de ter surgido espontaneamente, estava organizado, com decisões tomadas em plenários gerais reunindo todos os trabalhadores, mas baseados em decisores locais. Numa estranha antecipação histórica, seria exactamente o modelo preconizado mais tarde por Karl Marx nos seus escritos sobre a luta laboral. Peel pediu ao seu ministro da Administração interna, James Graham, que resolvesse a questão e este, expedito, fundiu militares e polícias numa força cuja única intenção seria dispersar a greve por quaisquer meios necessários. Mais de 1.500 grevistas foram presos, incluindo aqueles vistos como líderes do movimento, e com isto, a grande contestação social foi-se diluindo. Para servir de exemplo a todos os que tentassem algo de semelhante, o governo chegou a planear um julgamento em Londres, a céu aberto, com todos os envolvidos. No entanto, alguém chamou à atenção de que, assim sendo, ficaria implícito de que tal demonstraria também uma capacidade organizativa por parte dos trabalhadores que não importava salientar. Seria muito mais proveitoso apresentar a Greve Geral de 1842 como o movimento espontâneo de um punhado de maltrapilhos.

Demoraria mais de 30 anos, até 1871, até os sindicatos fossem reconhecidos legalmente. O impacto da greve geral de 1842 foi óbvio: devidamente organizada, a força proletária era extremamente eficaz na exigência dos seus direitos. E hoje ainda será?

Bruno Fernandes

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