Sob o vento gelado de Fevereiro, Nuno Ferreira larga Torre de Moncorvo pela eco-pista onde dantes existiu a antiga linha do Sabor e junto à qual Lauro António, em 1978, filmou uma cena marcante do filme «Manhã Submersa». Em Carviçais vai à procura da famosa posta à mirandesa do «Artur» e termina a cruzar lameiros e choupos e ribeiras límpidas a caminho de Mogadouro.
Fevereiro de 2010. Deixo Torre de Moncorvo numa manhã de orvalho, pela eco-pista na antiga linha do Sabor. As árvores parecem enredo de um thriller, braços e hastes esticadas no manto branco de uma névoa geladiça. A linha fechou em 1988 e os carris desapareceram há muito mas os antigos apeadeiros ainda lá estão e aparecem-me quando menos espero, no meio do nevoeiro. QUINTA D'ÁGUA leio numa casa branca. Ao lado, a placa agora inútil reza PARE ESCUTE E OLHE.
Na antiga estação de Larinho, onde o António do «Manhã Submersa» (Vergílio Ferreira) apanha o comboio que o levará ao seminário, foi instalado um café para apoio à eco-pista. Lauro António filmou ali em 1978 um António solitário, de mala humilde ao lado, a estação envolta na fumarada da locomotiva a vapor.
A caminho de Carviçais, o vento sacode as nuvens por cima da Serra do Reboredo e do maior jazigo de ferro da Europa. Não neva, não chove, uma abóbada cinzenta mantém o mundo suspenso no frio. Chego ao asfalto perto de Felgar. Uma placa onde se lê ATENÇÃO AOS COMBOIOS foi mantida e pintada junto à estrada.
Passo junto ao comboio de casas baixas em banda do bairro da Ferrominas onde nasceu o primeiro núcleo do Museu do Ferro e chego a Carviçais à chuva - uma danada chuva fria de ensopar os ossos - a perguntar pelo «Artur» e pela sua posta mirandesa. A maldita terra nunca mais acaba. Uma recta interminável para quem caminha ao frio. Abrigo-me um bocadinho junto à antiga estação de caminho de ferro e contínuo.
O consolo chega finalmente em forma de posta mirandesa e no calor aconchegante da casa decorada em madeira. Não apetece sair dali mais. Sonho com um quarto por cima mas estão todos ocupados. Acabo por deixar Carviçais depois de me irritar com o dono de outra residencial que me pergunta: «Para que é que você anda a pé? Quer ficar famoso?»
No dia seguinte, num ermo a uns dois, três quilómetros de Estevais, encontro dois velhos aldeões no campo com um cavalo a puxar uma pequena carroça de metal. Por segundos, pergunto-me como reagirão quando erguer a máquina fotográfica naquela manhã de frigorífico longe de tudo. Peço para fotografar. A senhora, de lenço na cabeça, pega na forquilha e posa com ela na mão, um sorriso delicioso nos lábios. Uns segundos depois, segura a rédea do cavalo. Os últimos rurais no campo e com orgulho.
Atravesso uma paisagem de lameiros e choupos e ribeiras muito límpidas. Saúdo um pastor solitário perdido numa das mais perdidas e esquecidas paisagens portuguesas. Um cavalo parece abrigar-se da chuva debaixo de um grande carvalho na Quinta das Quebradas. Já vou perto de Castelo Branco quando um arco-íris pinta o céu por cima da Serra de Mogadouro.
O vento gelado corre de um lado ao outro da principal avenida de Mogadouro. A antiga vila dos Távoras cresceu nas últimas décadas em prédios e moradias no meio do campo. «Aqui em Mogadouro grande parte da povoação cresceu devido aos emigrantes. Dessa avenida para baixo, por exemplo. Agora, há muitos que procuram vender e regressar à Suíça ou à França porque aqui não há emprego. A agricultura morreu e indústrias?», comenta um habitante .
No centro da povoação, foram construídos equipamentos modernos que lembram os do Parque das Nações em Lisboa, enquadrados por arranjos urbanísticos que não parecem pertencer ali. É Sábado, os edifícios - a biblioteca Trindade Coelho (natural de Mogadouro), o Turismo - estão fechados e por perto não há ninguém. Ali perto, foi construído ainda um grande Centro Cultural onde posso permanecer no Espaço Internet das 10h00 às 22h00. No final, por mais que circule por ali, guardo sempre um sentimento a solidão e esquecimento. Onde estão as pessoas para estes equipamentos? O poder central sabe que eles existem?
Reforçando o sentimento da abandono, as notícias sobre a região dão conta de burlões intrujando os últimos velhos habitantes, de leigos a substituir nas missas padres que já não chegam para as encomendas, de acessibilidades prometidas que não chegam e de bebés a nascer em ambulâncias.
No Domingo, subo à torre do castelo e ao que resta das muralhas, assisto à missa dominical na igreja Matriz ali ao lado e dou por mim a observar a reunião dos que restam, dos que ainda resistem. As naves da igreja encheram mas muitos vieram de carro e em táxis das aldeias da zona. Mogadouro voltará a esvaziar como um fole mal a missa termine.
Desço de Mogadouro até à Ponte de Remondes. Aqui e ali, uma ambulância dos bombeiros da vila. O Sabor em Fevereiro corre célere em tons verde-garrafa abafado por um capacete de nuvens baixas e teimosas que não deixam ver o Sol. Até que já ao fim do dia, uma lâmina tardia de luz inunda as encostas, ilumina o perfil das oliveiras e realça as fissuras pedregosas das fragas.
Vou encontrando lameiros muito verdes à medida que me aproximo de Lagoa. Na aldeia, apesar de ser sábado, o frio empurrou as pessoas que não foram à missa para dentro de casa ou dentro dos cafés. Entro num onde sou recebido como um extraterrestre pelo dono. Parece que cometi o erro de pedir uma informação a uma mulher. Um velho a aquecer-se junto a uma salamandra observa-me com um olhar hostil. Quando ela sai, vira-se para a minha mesa: «O café é meu, ouviu, é meu. Ela é só minha empregada».
No exterior, as pessoas, na maioria idosas, vão deixando a igreja e desaparecendo no ar gelado. Sento-me no exterior a perguntar a Deus que mal fiz eu. Um casal saúda-me: «Não tem frio?» No dia seguinte, em Mogadouro, a explicação do costume: «O senhor desculpe mas estava com a barba por fazer, o cabelo comprido, as pessoas têm medo...»
in:cafeportugal.net
(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».
Uma bela viagem onde também entramos pela qualidade da narrativa. Descritiva , com as palavras jogadasor mãos de mestre, dános uma visão dos lugares e gente das Terras do Sul do Distrito.
ResponderEliminar