Tudo estava a postos para a matança do primeiro animal. Helena apareceu nesse instante. Era uma rapariga ligeiramente mais nova do que eu. Habituada a estas andanças, era destemida e corajosa. O seu pragmatismo não tinha grandes zonas cinzentas, tudo era preto ou branco. Ainda era muito jovem e, portanto, não tinha grandes preocupações. Muito trabalhadora, metia mãos a tudo que aparecesse.
Não sem trabalho, lá conseguiram prender o porco ao banco. Eram muitos homens mas todos faziam falta. O animal, vaticinavam, pesaria os seus duzentos quilos. Fiquei impressionada pois nunca julgaria que pudesse pesar tanto.
Acompanhei, a alguma distância, o posicionamento de cada homem. O animal queixava-se e grunhia em desespero. Ninguém lhe poderia valer. Todos gritavam e sentia-se o frenesim e a responsabilidade daquele instante. Por breves momentos, cristalizou-se o silêncio. Vi a faca na mão do meu avô e ato contínuo um guincho dilacerante cortou o ar.
Doeu-me aquele estertor de morte. Fechei os olhos e tentei não ver o sangue que esguichava para o recipiente de barro que Helena tinha na mão esquerda enquanto com a direita o ia mexendo para que não coalhasse. Os homens largaram o pobre animal que já não se mexia. Riam nervosamente e davam os parabéns ao meu avô. A faca tinha chegado diretamente ao coração provocando a morte instantaneamente. Havia respeito por aquele ser que, desde tempos imemoriais, era sacrificado para alimentar as gentes da nossa terra.
Fui até ao ribeiro. O chocalhar da água das pequenas cachoeiras acalmava-me. Precisava afastar-me daquele lugar de sofrimento.
Chegou-me, ao longe, a repetição de todos os passos. O segundo animal dava luta. Afastei-me mais. Ainda tinha nos ouvidos o grito do primeiro.
Senti frio e resolvi que era melhor voltar para casa. Para meu espanto, as mulheres estavam sentadas nos dois escanos e nos pequenos tripés que o meu avô fizera, como se não tivessem nada que fazer. Reparei que havia mais um pote ao lume com água a ferver. A tia Engrácia levantou-se e deitou lá para dentro o sangue do primeiro porco. Viu a minha cara de estupefação e riu-se.
Novo grito de dor. O segundo estava morto. Uma lágrima aflorou nos lindos olhos azuis da minha avó Elvira.
O cheiro de pelo queimado entrou-me pelas narinas. Chamuscavam o primeiro animal e não demorariam a chamuscar e limpar o segundo. Fui ver. Os manhuços de palha, bem manejados por mãos experientes, cumpriam a sua função. Era interessante observar o trabalho desenvolvido pelos homens.
Perfeitamente limpo, as orelhas e o reto bem lavados, retiradas as unhas, estava pronto a ser pendurado. Pesava duzentos e dez quilos e era, efetivamente, um valente animal.
Todos os homens eram poucos para cumprir o objetivo de o suspender. Não foi tarefa fácil mas, depois de muita luta, lá conseguiram pendurá-lo numa das traves de castanho do cabanal.
Beberam, cada um, o seu copo de vinho e voltaram-se para o segundo animal. O meu avó voltou-se para o que já estava pendurado e, com mestria de cirurgião, abriu-o. Fiquei impressionada com a sua segurança. Sem danificar nenhum dos órgãos, foi retirando pela ordem ancestralmente estabelecida, todas as peças.
A minha tia, finalmente, atreveu-se a ir até ao palco principal. Deparou-se com o espetáculo do primeiro porco, imenso, já dependurado, numa das traves de castanho, para escorrer. Nesse momento, com muito cuidado, procedia-se à retirada das tripas que seriam utilizadas para fazer os diferentes tipos de chouriços.
Engrácia, Alexandrina, Adelina, Glória e Helena preparavam-se para uma das tarefas mais difíceis de realizar: a lavagem das tripas. Agarraram nas bacias com as do primeiro animal e dirigiram-se para o pequeno ribeiro.
O segundo porco estava quase pronto para ser suspenso ao lado do seu irmão.
Na cozinha fazia-se o almoço. O tio Zé Tarela entrou com o fígado do primeiro porco para ser assado na brasa. Isaura, atrás dele, com o recipiente do sangue que seria utilizado para fazer as chouriças doces. Graciano, já bem bebido, trazia nas mãos um bom bocado de carne da barriga que, também, seria assado na brasa para se comer ao almoço.
O guião cumpria-se na íntegra. As minhas avós, a ti Aurora, a ti Ana e, claro, a minha tia encarregavam-se da comida. Eu cirandava por aqui e por ali, tentando captar todas as cenas da matança.
Fui até ao pequeno curso de água gelada onde se enregelavam as mulheres. Nunca teria imaginado que se pudessem lavar as tripas daquela forma, nem mesmo que se pudessem usar para fazer o fumeiro. Nunca tinha pensado nisso.
Disseram-me para experimentar e eu, um pouco incomodada com o conteúdo das ditas, enchi-me de força e coragem e pus mãos à obra. Tiveram a gentileza de me dar uma que já estava vazia. Juntamente com ela deram-me umas palhas e ensinaram-me a usá-las. Ensinaram-me a escamá-las e a virá-las. A água estava absolutamente gelada. Deixei de sentir as mãos. Fui salva pela avó Maria que me veio chamar para ajudar a minha tia.
Foi a primeira matança em que participei, que me deixou lembranças indeléveis. As emoções que senti, tão antagónicas, tornaram-me mais forte. Aprendi a dar valor ao trabalho hercúleo da nossa gente que, mesmo com vidas tão difíceis, sorri e tem sempre um agrado para nos meter na mão quando fazemos “o favor” de a ir visitar.
Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com
Alguns dos nomes aqui referidos não me são estranhos, conheci Gebelim e os seus hábitos, de certa forma Gebelim fez parte da minha vida.
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