quinta-feira, 7 de março de 2013
AQUÉM DO MARÃO O associativismo regionalista transmontano em Portugal e na diáspora - O Club Trasmontano, de Lisboa (1905-)
Uma das primeiras instituições regionalistas portuguesas de âmbito provincial foi, precisamente, o Club Trasmontano (actual CTMAD), sediado em Lisboa.
A casa-mãe transmontana surgiu há 100 anos, num contexto de afirmação do associativismo voluntário, forma de solidariedade dum mundo atingido pela modernização capitalista e pela afirmação liberal ocidental.
O Club Trasmontano pretendia, originalmente, congregar uma comunidade migratória interna na capital do país. Conterrâneos de elevado estatuto social e económico juntaram-se para formar um grupo de defesa e promoção duma região e duma subetnia.
Seguia-se um critério misto de inscrição, ou naturalidade ou consanguinidade (e tanto para residentes no país como no estrangeiro), a categoria de “sócios beneméritos” podia contemplar estranhos, desde que tivessem prestado “serviços relevantes” à “província de Tras os Montes” (embora sem direito de voto ou a ser dirigente) e permitia a presença de amigos ou conhecidos dos associados; revelava, portanto, uma grande abertura, apesar da centralidade do parentesco.
Pugnava pela “mais estreita fraternidade” no seu seio e seguia a divisa “Um por todos e todos por um”.
Mas este Club era também um espaço selecto de confraternização entre conterrâneos bem posicionados. Surgira num tempo em que as associações voluntárias eram socialmente
muito estratificadas na sua frequência: havia clubes para a burguesia e os aristocratas, outros para as classes médias, e outros ainda para o operariado.
Tal sociabilidade, porém, não implicava uma actividade exclusivamente elitista. Como Durkheim (1989: 150-2) salientou no respeitante à solidariedade orgânica, quanto maior é a divisão do trabalho nas sociedades maior é a interdependência entre os indivíduos. Nesse sentido, foi prática corrente a assistência material (bodo aos pobres, apoio na procura de emprego, bolsas de estudo, etc.). Mais, a própria prática filantrópica inseria-se numa vontade de aproximação, não só simbólica como física. Os corpos partilhavam danças, saberes e comida, o olfacto, a audição e a visão, em festas e bailes, em comemorações e conferências. Cumprindo o estatuído, realizaram-se ainda inúmeras reuniões das famílias dos sócios, jogos lícitos, saraus recreativos e literários e excursões (ver órgãos impressos e imprensa
regionalista, e Grémio de Trás-os-Montes, 1933).
Outros espaços de sociabilidade foram as conferências e palestras. No entanto, estas também foram muito importantes para a criação dum sentimento de pertença e para uma comunhão de valores, imagens e representações sobre a terra de origem, a pequena pátria, o torrão natal, e sobre a subetnicidade dos comprovincianos transmontanos. Tal fica claro por um rápido relance pelos títulos e temas da maior parte destas intervenções: a maioria delas versa assuntos transmontanos, e muitas concentram-se na própria questão da identidade sociocultural.
Há também uma grande atenção à melhoria das condições de vida na província, à aposta no seu desenvolvimento, através da reflexão e propostas sobre casos e sectores concretos. Mesmo quando se fala de intelectuais e doutras personalidades marcantes, é quase sempre por serem naturais da região e assim se poder demonstrar como a região é valiosa, para se exaltar a regionalidade (ver, p. e., o escritor Trindade Coelho e o poeta Guerra Junqueiro). Aprofunda-se, também, a doutrina regionalista, em articulação com a imprensa militante (ver séries de artigos “Acção regional”, publicados no semanário Traz-os-Montes em 1925/6).
Também os congressos e outros fóruns vão nesse sentido da afirmação regionalista. Mais: são os formatos ideais para uma afirmação de força perante as autoridades públicas. Veremos isso mais adiante, num subcapítulo agregador, dado serem iniciativas co-organizadas.
A existência e actividade da casa-mãe serviram como guia para as restantes (e para os comprovincianos); como estímulo para a emulação, como exemplo de boas
práticas e como marco relevante e por todos reconhecido da presença regionalista. Refiram-se as constantes centrais: a construção dum espaço congregador da comunidade
imigrante da capital; e a invenção do território da regionalidade, envolvendo um trabalho demetamemória, i.e., a representação elaborada por indivíduos ou grupos sobre a própria memória (Candau, ap. Sobral, 2004: 141).
A identidade transmontana foi um processo de construção de representações, valores e crenças comuns e para serem partilhadas por determinados indivíduos e grupos. Este processo implicou uma vontade colectiva, um projecto desenvolvido ao longo de algum tempo e a estruturação duma socialização mnemónica por comunidades mnemónicas(Zerubavel, ap. Sobral, 2004: 142).
Ou seja, tais comunidades propuseram a partilha dum passado social memorizável e
relativamente consensual. Porém, essa partilha é matizada pela diferenciação social,
estendendo as observações de Parkhurst (1996) para a regionalidade duriense.
O projecto regionalista implicou, então, uma abordagem do espaço (do território de pertença) mas também do tempo (dum certo passado histórico, geracional,vivencial).
Os recursos mnemónicos foram variados: o impresso (signos identitários como os cartões de sócios, folhas volantes, jornal, opúsculos, actas), central para a construção da identidade grupal duma comunidade imaginada, tal como salienta Anderson (1993: 6, 24-5 e passim); o evento social (iniciativas assistenciais,14 festas, bailes, recepções), cultural (exibições de ranchos folclóricos, exposições de artes plásticas, de artesanato, biblioteca/ gabinete de leitura) ou sociocultural (festas anuais, excursões turístico-culturais à região, recepção/ reuniões com dirigentes congéneres, conferências, congressos).
Para a biblioteca privilegiava-se estatutariamente a aquisição de obras para informação/autoformação (“encyclopedias e livros de instrucção pratica e de educação” — Club Trasmontano, 1905:
Mas também nela se criou uma colecção especial, a do regionalismo transmontano, que abarca sobretudo cinco tipos de obras: 1 9as ligadas a estas instituições (incluindo as actas dos congressos); 2) as obras mais doutrinais (ver, p. e., Deusdado, 1934); 3) as monografias locais e obras descritivas de âmbito provincial (guias, roteiros, resenhas históricas ou etnográficas, etc.); 4) jornais da imprensa local e regional; 5) as obras de intelectuais ou de notáveis ligados à província (sobretudo de ficcionistas).
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRÁTICAS,
Daniel Melo
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