quinta-feira, 6 de junho de 2013

LEITE, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“Porque não me verteste como leite, e me coalhaste como queijo”
[Job 10.10 Antigo Testamento]

A literatura clássica do Ocidente e do Oriente revela-nos o elevado apreço em que o leite era tido, o rito carregado de simbolismo da ordenha das fêmeas e todos os actos subsequentes ligados à preparação e consumo dos derivados é vivo exemplo de tal. É símbolo de fecundidade, associando-se ao fogo celeste, no mito hindu da Batedoura do Mar do Leite é a essência da criação, outras lendas e mitos acerca da criação entroncadas no leite fazem parte do património imaterial do Egipto, Grécia, Japão, Médio Oriente e Ásia. No Lácio pré-romano a deusa-mãe era a Deusa do Leite, Lat, Latona, na mitologia greco-romana, à deusa Lat dedicaram-lhe a ilha de Malta, escrita na forma primitiva do seu nome, Ma Lata. No italiano de agora late é leite.
Um santuário dedicado a esta deusa pelos egípcios, recebeu dos gregos o nome de Latópolis. Na Arábia, Al-Lat é o feminino original de Alá, e o leite entra no rol das delícias do paraíso.
Os gregos preferiam o leite de cabra e ovelha, os romanos também bebiam leite de camela, égua, mula e burra, o queijo fazia parte da alimentação regular das populações rurais. A infeliz Popeia na ânsia de agradar a Nero banhava-se em leite de burra, ela acreditava que este tratamento à pele, a deixava brilhante, lisa e sedosa.
A crença de que algumas cobras conseguem chupar o leite das mulheres, vacas e outros mamíferos lactantes (que animava os serões invernais nas aldeias transmontanas, e não só), radica-se na associação da serpente primitiva com a Grande Deusa do universo. O antropólogo José Gabriel Pereira Bastos na obra A Mulher, o Leite e a Cobra enumera episódios recolhidos em todo o País, relatando actos das cobras a chuparem traiçoeiramente o leite do seio das mulheres, Na Ásia o leite da fêmea de zebu e da de búfalo é sagrado. Na opinião de São Paulo é alimento de estômagos delicados, de meninos e de todos os que não podem receber alimentos sólidos (1 Coríntios3,2 e Hebreus 5,12). O pseudo Dionísio Aeropagita comparava os ensinamentos de Deus ao leite, afirmando:”As palavras inteligíveis de Deus comparam-se à agua, ao leite, ao vinho e ao mel, porque têm como a água o poder de fazer nascer a vida, como o leite o de fazer crescer os vivos, como o vinho em reanimá-los, como o mel o de curá-los e conservá-los”.
As virtudes do leite no tratamento de todo o género de doenças foram exaltadas por Dioscórides, Hipócrates e Galeno tendo as suas sentenças transitado pelos séculos fora, em Portugal esses “ensinamentos” persistem até agora no âmbito da medicina popular, sendo o leite de burra apregoado como o melhor para certo tipo de doenças mesmo no âmbito da medicina científica.
Para os celtas era bebida da imortalidade e das mézinhas curativas, os cristãos na Idade-Média associaram-no à boa mãe, a Senhora do Leite é a mãe que amamenta amorosamente o filho, a má mãe deixa a serpente mamar na teta, a iconografia existente demonstra esta dualidade: a Senhora representa o bem, a serpente o mal.
A Infanta D. Maria quando saiu de Portugal a fim de casar com o Duque de Parma levou um receituário dividido em cadernos, um dedicado às receitas de leite – o Caderno dos manjares de leite (1480).
A alimentação dos nascituros nos primeiros meses estava confinada à aleitação, por essa razão as mulheres rezavam e imploravam para não secarem os peitos às mães. Em Sisbuselo, concelho de Montalegre, as mulheres iam à Capela de S. Mamede (advogado das mulheres que andam a criar), fazer-lhe promessas de cereais, cabritos e cabras, enquanto bebiam raspas dos pés do Santo misturadas com leite, e: “Para terem mais leite as mulheres comem madressilvas, azeitonas e caldo de couves”, na aldeia de Carviçais, concelho de Moncorvo, refere o V volume da Etnografia Portuguesa de Leite de Vasconcelos.
A desmama aí pelos dois anos de idade nem sempre era pacífica, quando a criança insistia na prática da mama, a mãe untava os peitos com azebre a obrigar à rejeição dado o sabor amargoso do seio, em matéria de desmame tardio é exemplo D. João III, pois só a aceitou quando já tinha feito três anos.
Por razões de economia mesmo nas meios rurais mais povoados por rebanhos bebia-se pouco leite, embora António Lourenço Fontes em Etnografia Barrosã, volume II, afirme que: “Vinho, se o há, bebe-se.
Ou então, leite frio de vaca ou cabra”. A pouco mais de uma centena de quilómetros de distância, poucos anos antes da época da publicação da obra do conhecido Padre Fontes, o cientista social Jorge Dias verificou que em Rio de Onor não acontecia o mesmo, estando quase ausente, leia-se: “Café e leite são alimentos praticamente desconhecidos. O leite só se usa nas doenças, o resto vai todo para os vitelos”, pág. 155 de Rio de Onor: Comunitarismo Agro-Pastoril.
A lengalenga que a dado trecho entoa: “E a cabra deu o leite/E o leite é para as velhas...”, corrobora as observações de Jorge Dias.
Ninguém desconhecia o valor do leite enquanto alimento, valiosa poção empregue no combate a doenças ou debilidades, mas a penúria obrigava a transformá-lo em queijo e manteiga, nos dias nomeados, os que podiam empregavam-no na confecção de bolos e doces de colher.
O abastecimento de leite à cidade até aos anos setenta do século XX fazia-se através de leiteiras que andavam de porta em porta, embora, pelo menos a partir dos anos quarenta, três leitarias o fornecessem, bem como natas e manteiga.
As ditas leitarias talvez não se predispusessem para os clientes imitarem Almeida Garrett bebendo “chá preto com leite e torradas”. No entanto, são um curioso indicador da estrutura social de Bragança ao tempo, já que na comparação com as nove casas de pasto e três pensões anunciadas, as leitarias indicam hábitos de consumo menos vulgares, além de estabelecerem clara diferença entre a alimentação operada na cidade e a conseguida nas aldeias. As ditas leitarias pertenciam a António Augusto Dias, António Manuel Nogueiro e Maria Madalena Fabião.
O costume de o palato ser deliciado com natas é bem mais antigo que as leitarias, podendo-se afirmar que o ilustre Braganção, Fernão Mendes, o Bravo, deve às ditas cujas natas o facto de ter forçado D. Afonso Henriques a conceder-lhe a mão de uma irmã, tornando-se cunhado do rei Fundador. O grande guerreiro partilhava alegre refeição de natas com o rei e outros nobres, quando deixou escorrer pela barba um fio delas. Os restantes convivas riram-se do aspecto do Braganção, este não gostou, zangou-se, exigiu casar com a irmã do rei, por sinal casada com um dos gozadores, e casou.
No que tange às artes culinárias o leite entra na composição de sopas, caldos, cozedura de diversos peixes, de certas carnes, bolas, folares, massas, pastelões, molhos, gratinados, sobremesas, doces, fabricação de manteiga, queijos, iogurtes, natas frescas e gelados. No referente a bebidas pode ser tomado simples, misturado com café e chá, aromatizado com xarope de frutas, achocolatado e baunilhado.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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