sexta-feira, 7 de junho de 2013

OVO, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“ – Mas nem bocado agora me podia entrar, meu irmão! Com uma galinha inteira me atochei! E depois uma fritada de ovos! E de vinho branco um quartilho!
[in Contos. Eça de Queiroz]

O formidável romancista muito padeceu porque a tentação sobrepunha-se à frugalidade que a sua delicada saúde exigia, adorava galinhas e ovos debaixo de inúmeros preparos, sendo confesso praticante do sétimo pecado mortal – a gula – quando lhe apresentavam ovos queimados. O autor da Cidade e as Serras, atochava uma galinha, cujos ancestrais eram galinhas selvagens do Norte da Índia, e que o homem domesticou por volta de 2000 a.C., mas como se comiam ovos de outras as aves (o ovo sem outra designação é o da galinha), só mais tarde é que ganhou a universalidade. Todos sabemos da existência de outros ovos comercializados, mas é-lhes mencionada a origem: avestruz, codorniz, gansa e pata.
Os egípcios, os gregos e os romanos revelaram-se expeditos criadores de galinhas, tudo indica que estes últimos as introduziram nas ilhas britânicas, os portugueses levaram-nas para o Brasil, os nativos terão visto um galináceo pela primeira vez ao anoitecer de uma sexta-feira, dia 24 de Abril de 1500, segundo a carta de Pêro Vaz de Caminha, o zangado connosco Cristóvão Colombo também as levou na primeira viagem.
Ao longo dos milénios os ovos têm sido considerados como alegoria da abundância e prosperidade, em termos simbólicos considera-se que contém o gérmen a partir do qual se desenvolve a matéria, explicando-se por si só. Os celtas, os gregos, os egípcios, os cananeus, os tibetanos, os vietnamitas, os chineses, os siberianos, os japoneses e outros povos defendiam que o nascimento do mundo partia de um ovo. O ovo cósmico, nascido das águas primordiais, incubado à superfície pela pata Hamsa, diz-se na Índia que é o Espírito, o Alento divino, que se separa em duas metades dando origem ao céu e à terra. Esta dualidade vamos encontrá-la noutras doutrinas, o ovo de Leda dá nascimento a dois Dióscuros, frequentemente, a partir de Eurípides, admitia-se que era a própria Leda quem, devido aos seus amores com Zeus, tinha posto um ovo (ou então dois), gerando os dois casais: Pólux e Clitemnestra, Helena e Castor.
O simbolismo que estabelece a ligação do ovo à génesis do mundo e a sua diferença progressiva continua a ser objecto de estudo, por o aludido gérmen propiciar a multiplicação dos seres. Os espanhóis quando chegaram a Cuzco verificaram que o templo inca de Coricancha exibia como principal ornamento uma placa de ouro de forma oval, flanqueada pelas efígies da Lua e do Sol.
O ovo deu origem a grande número de mitos, é símbolo da renovação periódica da natureza, atente-se na tradição dos ovos de Páscoa, dos ovos coloridos em dezenas de países. O historiador e filósofo das religiões Mircea Eliade, defende que o ovo é: em vez de um nascimento, um retorno, uma repetição.
O ovo é símbolo de maternidade, as imagens da Virgem grávida que podemos observar nas Igrejas e Museus, mostram entre os dedos das mão repousada no ventre cheio, um ovo, o óvulo, por isso são chamadas Senhoras do Ó, a forma do ovo, é a forma da letra o.
Diversas sepulturas, descobertas na Rússia e na Suécia, têm gravados ovos de argila mostrando emblemas de imortalidade e ressurreição, em sepulturas gregas apareceram estátuas de Dionísios com um ovo na mão, promessa e signo de retorno à vida.
O ovo expressa-se em numerosos signos a gerarem teorias que por seu turno deram origem a milhares de livros, a milhares de obras em todas as artes, inspirando poetas e romancistas. O ovo obriga os filósofos a meditar, um dos cineastas mais geniais da história do cinema Ingmar Bergman realizou o Ovo da Serpente, terrível alegoria da peste nazi. A mensagem do génio do mal dissecada por Bergman, é compensada pelo ovo quanto imagem de aconchego, de repouso, de estarmos em sossego no ventre materno.
Terá sido Santo Agostinho quem formulou a ideia de o ovo representar a ressurreição de Cristo, a Igreja a partir do século IV proibiu a sua consumição durante os quarenta dias da Quaresma por ser gordo, aí reside a razão de ser benzido no sábado de aleluia. O interdito levou a grande acumulação de ovos, dessa ocorrência virá o costume da utilização de ovos em jogos, concursos, festas e na confecção de comeres e lambiscos, caso das bolas e folares. Até ao século XVII, os ovos pintados e coloridos apenas se ofereciam no dia de Páscoa.
Alimento completo, a casca de um ovo de galinha de sessenta gramas pesa sete, é calcária, porosa e forrada por uma membrana, no espaço mais arredondado tem um espaço chamado câmara-de-ar, que aumenta de volume à medida que o ovo envelhece, quanto menos fresco for o ovo, mais ele flutua junto à superfície num tacho de água. A clara, trinta e cinco gramas de massa translúcida de água e albumina, a gema dezoito gramas contém o germe (visível se o ovo está fecundado, a não impedir o ser comido), mais a lectina (gorduras com fósforo), o ferro, as vitaminas A, B, D, e E, são a sua essência. Alimento plenamente equilibrado o ovo é relativamente pouco energético, setenta e seis calorias, contém todos os ácidos aminados imprescindíveis ao homem.
Desempenhando importante papel na dieta das gentes nordestinas, os ovos chegavam à cidade para serem vendidos de porta a porta, ou no mercado, apesar de na cidade existirem numerosos galinheiros domésticos. As compradoras mais desconfiadas acerca da frescura dos ovos olhavam-nos e rodavam-nos cuidadosamente nas mãos, desconheço se alguma seguia a recomendação da senhora Beeton, que defendia a aplicação da língua no extremo mais redondo do ovo, estando quente é sinal de frescura. São múltiplas as propriedades culinárias dos ovos, ligam ingredientes como pastéis e almôndegas, fazem parte da composição de numerosas receitas de biscoitos, bolos, doces, gelados e massas. Na cozinha, dá consistência às ligações, a panados, dourados, recheios, emulsões, saladas, guarnições e sobremesas.
No domínio das bebidas entra na composição do leite de galinha, do consagrado cocktail servido frio ou quente, o egg-nog, e em licores. A indústria alimentar elevou o ovo à condição de produto de grande consumo, dado seu baixo custo e às numerosas composições culinárias de fácil confecção que permite.
Na cozinha urbana o ovo ganhou a afeição das cozinheiras pela versatilidade a permitir utilizá-lo de toda a forma e feitio, independentemente da sua própria individualidade representada em centenas de receitas, um receituário escrito por Rosa Maria intitula-se 100 Maneiras de Cozinhar Ovos.
Na cozinha das aldeias cresciam em importância, como produto principal de refeições modestas, quebrando a monotonia do consumo de carne de porco, na categoria de elemento crucial na confecção de bolos e doces de colher. No dia a dia, um comer onde entravam ovos era um autêntico ovo de Colombo, a evidenciar a mais valia económica do poleiro, como o dão a entender as duas quadras transcritas do Cancioneiro Popular Português.

A mulher da aldeia
Quando foi à vila,
Co’a cestinha de ovos
E a galinha em cima,
Ao passar da ponte
Caiu-le a cestinha,
Quebraram-se os ovos,
Fugi’a galinha.

Como já referi as mulheres das aldeias vinham à cidade venderem a criação e ovos, resultando dessa prática duplo lucro a dividir pelas compradoras e vendedoras. As primeiras adquiriam produtos de grande valor qualitativo, as segundas conseguiam réditos amortecedores da pungente falta de dinheiro na sua escorrida bolsa.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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