no coração do social. A condição psíquica que ele
implica – o furor, a folia – não é só uma categoria
lúdica, ele é também um facto humano sobre o
o qual não mais se acaba de reflectir”.
(Louis Gernet)
Tradição e Significado
É nas terras arcaicas e isoladas do Nordeste Transmontano, no ciclo das festas do Inverno, que se iniciam no dia de Todos-os-Santos e que podem prolongar-se até ao Sábado de Aleluia ou ao Domingo de Páscoa, que o panorama temático e funcional destas festividades, em que participam os mascarados, mostra aspectos significativos. Estes estão representados, fundamentalmente, nas seguintes festividades: “Festas dos Rapazes” propriamente dita, festas de Santo Estêvão, festas de Natal, Ano Novo e Reis e Carnaval. As festas de S. João e de S. Pedro, embora não estejam incluídas no ciclo das festas de Inverno, contam, igualmente, com a participação dos mascarados.
O povo, por vezes, considera também o Entrudo como que sendo um santo. Veja-se, a este respeito, o que diz Coelho: “O povo meio comicamente, meio a sério, faz do Entrudo um santo; a expressão Santo Entrudo é muito usual.” (1993: p. 299)
Como já foi referido, o Entrudo urbano ou rural dos nossos dias, tem a sua origem nas antigas festas da Natureza, ligadas à agricultura, as festas Saturnais romanas e as Lupercais celebradas em honra de Pan, o deus dos rebanhos. “Pan é a divindade mais importante do séquito de Dionísio [Baco, na mitologia romana]; deus dos pastores e dos rebanhos, considerou-se originário da região da Arcádia, mas o seu culto espalhou-se por todo o mundo helénico e inclusive para além das suas fronteiras”. (Francesc-Lluís Cardona 1996: p. 126)
O aspecto demoníaco de Pan era consequência da sua cornamenta caprina e do seu corpo peludo. Os seus membros inferiores de bode faziam dele uma figura medonha. Como as artes de sedução nem sempre resultavam, utilizava a força, embora nem sempre tivesse o êxito que pretendia. Um dos seus poderes mais característico era, sem dúvida, o de causar pânico entre as pessoas, obrigando-as a fugir aterrorizadas. Celebravam-se, em sua honra, as festividades agrárias do início da Primavera.
Nesses tempos, e nessas festas (Saturnais/Lupercais) em honra do deus Pan, protector dos rebanhos, eram permitidos àqueles que as que festejavam, todos os excessos, tanto no uso e abuso da comida e bebida, como no escape às regras e comportamentos socialmente estabelecidos, organizando-se, para tal, em associações ocultas. Estas ilicitudes eram efectuadas pelos próprios sacerdotes, que erguiam verdadeiros cultos de apelo à fecundidade, isto no momento mais propício do ciclo da Natureza, ou seja, a aproximação do seu rejuvenescimento que se processava com a entrada na Primavera.
Este era também o momento da purificação e expurgação das pessoas e das comunidades, o que se processava pelos rituais de crítica social institucionalizada e a sua divulgação em praça pública.
A célebre expressão popular “É Carnaval ninguém leva a mal” encontra, assim, a sua razão de ser nestes devassos rituais, próprios destas celebrações, uma devassidão permitida e que, a par de outros ritos expurgatórios constitui, ainda hoje, a sua principal característica.
Ao transpormos esses rituais para a nossa realidade cultural, e no caso concreto do Carnaval de Podence, encontramos a sua representação nos castigos que os mascarados aplicam às mulheres que se atrevem, nesse dia, a sair à rua, “as chocalhadas” como rito regenerativo e fecundante que os espampanantes Caretos revivem e a crítica social expressa na publicação e encenação dos “casamentos” burlescos e ridicularizados dos jovens casadoiros. Estamos, pois, perante rituais expurgatórios de um tempo de passagem que se consubstancia no desfecho do Inverno e o início na Primavera.
Na actualidade, e apesar da “cristianização” que todas estas práticas festivas sofreram ao longo de dois milénios, consideramos poder-se atribuir o mesmo sentido aos rituais carnavalescos que se encontram em algumas localidades do Nordeste Transmontano, e que decorrem no Domingo Gordo, Carnaval, Quarta-Feira de Cinzas e, posteriormente, a meio da Quaresma.
No Nordeste Transmontano, são várias as localidades rurais que no Carnaval se mantêm fiéis às suas tradições e ritos. Estas festas são sinónimo de comunicação e ponte entre idades, sexos e estatutos sociais.
A título exemplificativo, deixamos aqui registado, alguns dos rituais executados em algumas aldeias do distrito de Bragança:
- Na aldeia de Paradinha Nova, os habitantes, no dia de Carnaval, constroem bonecos de palha e repartem-nos pelos bairros da aldeia. Quando chega a noite, prendem-nos nas árvores e destroem-nos à pancada, utilizando paus;
- Em Pinela, na segunda-feira de Carnaval, ao final da tarde, os homens constroem um boneco e escondem-no numa casa à escolha, sem o dono da casa escolhida saber. Na terça-feira de Carnaval à tarde, os restantes habitantes saem à rua e dão a volta à aldeia à procura do Entrudo (boneco). Na casa onde o Entrudo for encontrado, os donos têm que lhes dar de comer. Na quarta-feira, à tarde, os habitantes queimam o Entrudo (o boneco);
- Em Babe, na terça-feira de Carnaval à noite, os habitantes mascaram-se e vão a casa dos vizinhos sem se deixarem reconhecer. A estes mascarados dá-se o nome de “farramechos” ou “farramusqueiros”;
- Na aldeia de Penhas Juntas, no dia de Carnaval, os rapazes desfazem a cama às raparigas e as raparigas aos rapazes, e nada os trava; caso seja necessário, entram pela janela e deitam farinha e açúcar na cama. À noite, os rapazes e as raparigas da aldeia também se vestem de Caretos e vão pedir pelas casas;
- Em Carrazedo, na noite de Carnaval, os rapazes da aldeia constroem um boneco de palha e colocam-no à porta de casa das moçoilas. Por sua vez, cada uma delas, no decorrer da noite vigia a sua porta e, se o boneco de palha se encontrar à sua porta, vai colocá-lo à porta de outra moça. De manhã, onde estiver o boneco de palha, é sinal que a moça dessa casa não irá casar;
- Em Bouça e Ferradosa, os homens prendem dois burros, e com um arado fingem que estão a arar. Depois, dois homens trazem um saco de cinza, e fingem que vão semeando, enquanto atiram cinza às pessoas;
- Nas aldeias de Podence, Ousilhão, Vila Boa, Varge, Salsas e Baçal, nos dias de Carnaval, os homens da aldeia mascaram-se de Caretos e saem à rua em magotes barulhentos, espalhando o “terror, excitação e riso”.
É nesta região, que todos os anos, na altura do Carnaval, as populações se unem e se organizam de forma a defender os valores culturais e etnográficos da cultura popular do Nordeste Transmontano, mantendo viva a tradição.
Os caretos de Podence, ao contrário do que acontece noutras localidades desta região, têm sido mais divulgados devido ao interesse dos habitantes que conjuntamente com a comunicação social (rádio e televisão) promovem os eventos que celebram, em especial na quadra carnavalesca.
O facto de todos os anos se celebrar o Entrudo com a presença forte dos caretos de Podence, bem como as digressões que estes fazem pela Europa acompanhados pela comunicação social, também contribui para a manutenção viva desta tradição secular.
Mariana Especiosa do Rosário
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Sem comentários:
Enviar um comentário